13.7.07

«Será a Igreja legítima herdeira destas histórias?»

Recebi hoje um mail de Nelson Anjos, que transcrevo com autorização expressa do autor. Fui eu que dei relevo a algumas passagens.

Permito-me chamar a vossa atenção para o comentário que faço na segunda parte deste post.

Joana Lopes

Acabei de ler o seu interessante livro "Entre as Brumas da Memória" e, porque antevejo o meu comentário algo extenso, não vou abusar, para o efeito, do espaço do seu blog. Desconheço também se criou algum forum específico para a sua discussão, razão porque opto pelo e-mail.

A razão imediata destas considerações e dos dois aspectos principais que aqui vou abordar prende-se com o facto de também ter participado do tempo, das experiências e das andanças que o livro descreve. E do instinto solidário que a lembrança das "mesmas" recordações sempre desperta.

“Mesmas”, entre aspas, constitui a matéria da primeira questão. Ao ler o seu texto dei comigo a ter dificuldade em me rever na experiência que relata e que, supostamente, deveria ser no mínimo semelhante à minha: também fui católico, militante da Acção Católica (JOC – Juventude Operária Católica) e também militante da LUAR. Acontece porém que, principalmente no que respeita a vivência católica, a nossa experiência e as nossas recordações estão longe de terem sido as “mesmas”. A razão é simples: ao tempo em que os factos se passavam
Portugal era Lisboa e o resto era província. E isto era de facto verdade. A intervenção dos católicos progressistas na vida social, que descreve no seu livro, não teve lugar no país: circunscreveu-se a Lisboa.

Em Tomar, pequena cidade de província onde então vivia – hoje ainda menos cidade e mais província – a realidade, como deve supor era outra. E eram de longe muito mais divulgados e tinham mais impacto na opinião e sensibilidade locais os tais “cursilhos” ou cursos de cristandade, que as encíclicas de caris social inspiradas pelo Vaticano II. Julgo que os “cursilhos” representavam a contra-resposta dos sectores mais conservadores da igreja às propostas das “Popullorum Progressio” do concílio. Uma espécie de Contra-Reforma da altura. Tratava-se de uma terapia de choque, de oito ou quinze dias, a que não havia demónio, por mais maligno que fosse, que resistisse. Ainda me lembro de ouvir a minha mãe recomendar o remédio ao meu pai, para lhe tratar o mal de ser propenso a aventuras extraconjugais: “ – Vai, e verás que vens de lá mudado!” (naquele tempo o Francesco Alberoni ainda não tinha separado o sexo do amor e a Ana Lopes ainda não tinha proclamado a dignidade do trabalho sexual ).

O cristianismo de província era profundamente apolítico e associal. E a razão pela qual dele me viria a afastar também não se deveu a razões dessa natureza. Apenas não encontrei lá Deus. Nem sequer aquele que, na asserção de Feuerbach foi criado pelos homens à sua imagem e semelhança. E quanto mais me falavam dele mais incompreensível se me tornava. Creio que foi Kierkegaard (ou Emmanuel Lévinas ?) que disse/escreveu que, para falar de Deus todas as palavras são obscenas.

Mas embora não tenha encontrado Deus, reconheço ter encontrado óptimas pessoas e um espaço onde se cultivavam francos e saudáveis afectos. O Padre Adalberto Ramos, como se diria hoje, era um tipo “bué fixe”. E o velho Pároco David Paixão deve ter sido o primeiro adulto a oferecer-me um cigarro. Teria eu os meus 14 ou 15 anos. “ - Fuma um cigarro! O tabaco abre o espírito!” – disse, estendendo-me o maço de SG-Filtro, a meio de uma das nossas intermináveis e inconclusivas discussões sobre a existência, ou não, de Deus. Creio que se por lá tivesse continuado, mais tarde ou mais cedo ter-me-ia convidado para ir com ele à rua das prostitutas.

Posto isto, e não me querendo alongar muito, creio que, para além de se circunscrever a uma elite – como muito bem refere – a experiência de que dá testemunho no seu livro foi também circunscrita em termos de abrangência territorial. O que, contudo, na minha perspectiva, de modo nenhum a deslustra.

Passemos à segunda questão, que o serão já vai longo. Deverá de facto a igreja católica ser considerada a legítima herdeira deste património de história e de histórias? – Não tenho resposta taxativa e explicito resumidamente as razões da minha dúvida. Quando desertei da guerra colonial, na Guiné, fi-lo com o apoio de ex-padres; fui recrutado para a LUAR por ex-padres; participei em actividades da organização com ex-padres; estive preso com ex-padres. Alguns deles mesmo já ex-católicos ou até ex-cristãos. Como eu próprio. Ora, considerando todos estes “ex”, será que a igreja católica terá de facto alguma coisa a ver com tudo isto?

O leitor deseja-lhe continuação de boa escrita e o ex-jocista, à maneira de antigamente, deixa-lhe

Saudações jocistas (era assim, não era!?)

nelson anjos


Há vários temas neste post que mereceriam resposta ou comentário, mas vou restringir-me a um.

N.A. pergunta se a Igreja católica deve ser considerada «legítima herdeira deste património de história e de histórias». Quer se queira quer não, ela É herdeira – ela e nós. Não apaguemos nada nem ninguém das fotografias do passado. Para o bem e para o mal, nem a Igreja portuguesa nem nós seríamos hoje os mesmos sem estas etapas da década de 60, vividas em pleno fascismo e no auge das esperanças e das derrotas do Vaticano II.

Mas, entre todos os ex- que somos e os que lá estão hoje que mais se aproximam dos ideais (passe o chavão) que defendíamos, há enormes diferenças que tenho vindo a tentar compreender. Eles vivem o cristianismo de um modo muito mais «privado» (individualmente ou em pequenas comunidades). Consideram-se Igreja APESAR de muitas coisas – do papa, dos bispos, da maior parte dos dogmas em que não acreditam. Não têm grande esperança em mudanças a este nível e, sobretudo, não se empenham, activa e publicamente, para que aconteçam. Há razões culturais para isto - por exemplo, o facto de as hierarquias de toda a espécie terem hoje muito menos importância do que no passado, o que é verdade mesmo nas culturas e práticas empresariais (isto daria pano para mangas, mas não numa tarde de 6ª feira, no mês de Julho...).

E no entanto...
Dizia-me recentemente alguém que muito prezo (com menos vinte anos que eu) que sempre invejou os pais porque viveram num tempo em que admiravam profundamente o papa que tinham – João XXIII...
Por isso, talvez alguns tenham, de vez em quando, uma visão nostálgica e escatológica, na qual um papa de um futuro longínquo possa ser mulher, casada com um muçulmano e, de preferência, chinesa...

Brincadeiras à parte, nunca serei eu a atirar-lhes a primeira pedra.

2 comments:

maria disse...

Faz-me muito bem ler estas coisas todas. Eu não tenho ilusões nenhumas com o papado. Com o Estado do Vaticano vai ser sempre para o espetáculo. E para ir firmando o poder que conseguir. A Igreja também é isso. Assumo. Mas ainda vou encontrando nela Cristo. Isto para mim é o essencial.

Respeito, respeito muito, pessoas como a Joana e o Nelson. Porque se alguma vez sair de mansinho gostava de ter a vossa dignidade.

Joana Lopes disse...

mc: receber mensagens como esta sua dão-me muito prazer. Obrigada.