30.3.08

Sobre o vídeo holandês – ou nem por isso

Ando atrasada em leituras, só ontem vi o filme do holandês Geert Wilders e só hoje li o que nalguns blogues foi escrito sobre o assunto. Está tudo dito e, no entanto...

Quando entrei há pouco no Arrastão, o post em que Daniel Oliveira comenta o filme já tinha 102 comentários. Ainda li uns tantos, até que parei, extasiada, neste:

«Se é ateu devia abster-se de falar de religião. Porque não se deve falar daquilo que não se percebe. Uma religião não se limita àquilo que está escrito nos livros. Implica um sentimento que um ateu não consegue experimentar e muito menos entender. Um ateu pode ter opinião sobre pessoas religiosas, mas não sobre religiões.»

Total disparate. Além disso, fiquei numa situação esquisita, porque já fui convictamente crente e hoje sou ateia. Ou seja, já «experimentei» e já «entendi» e, por um qualquer processo de estupidificação que me escapou, deixei de poder falar de religião. É mais ou menos isto, não é?

Mas falo. Porque se há coisa que me exaspere, e que veio outra vez para a ordem do dia com esta discussão sobre o vídeo, é o respeito que muitos ateus de pura gema, da raça mais politicamente correcta que imaginar se possa, têm, ou se sentem obrigados a dizer que têm, pelas religiões. Como se destas não tivessem vindo – e não continuassem a vir – pelo menos tantos males como bens para a humanidade. Como se, mais tarde ou mais cedo, todas não tendessem para fanatismos e radicalismos que fazem milhões de vítimas. A História está aí para o mostrar.

Respeito merecem os crentes, não as crenças. Sobretudo os que são vítimas do obscurantismo das hierarquias cristãs, os que se suicidam ou matam em nome do radicalismo no mundo islâmico, os que se deixam morrer por motivos religiosos, miseravelmente, nas margens do Ganges.

O vídeo holandês é horrível? Certamente. Mas não passa de um episódio mais ou menos burlesco. Porque, como diz Rui Bebiano num comentário ao post que ele próprio escreveu sobre este assunto:

«É muito mais grave a subestimação do radicalismo islâmico, ou a invenção desculpabilizante de algumas das razões invocadas para o seu avanço, do que um filme de execrável propaganda racista do qual daqui por uns meses já ninguém se lembrará.»

9 comments:

Cláudia [ACV] disse...

Joana,olá,
leio este post depois de já ter lido os do Rui Bebiano (que acaba de referir) e do Henrique Fialho (do blogue Insónia). Reparo que no seu e no do Henrique é veiculada uma mesma convicção, a de que o fenómeno religioso é intrinsecamente negativo. O Henrique, se bem percebi, afirma essa convicção como decorrência directa da sua condição de ateu; já a Joana, afirmando-se também ateia, invoca um balanço de factos históricos. Ora, tal asserção, a mim (e não apenas, penso honestamente, por professar uma religião), parece-me tão inarguível quanto a de que, por exemplo, o fenómeno político (outra formulação humana velha de milénios, que lida com poder, crença, ritos, mobilização de largos grupos) trouxe mais males que bens à humanidade. Como é possível fazer tal contabilidade? A ideia de que a religião (ou a política, ou a organização patriarcal da sociedade, ou etnicidade, ou outras) são A raiz de um determinado mal, parece-me distópica. Creio que o extremismo (as suas diferentes manifestações) tem origem a jusante, em algo de muito primordial na condição humana, com consequências em diferentes expressões de dinâmica colectiva, e que, por isso mesmo, as misérias geradas no seio dessas expressões não são motivo para as considerar inválidas.


Um blogo-abraço, bom resto de domingo.

Joana Lopes disse...

Obrigada, Ana Cláudia, pelo seu comentário.

Não se trata de uma questão de contabilidade (tinha começado por pôr «mais males», mudei depois para «pelo menos tantos», mesmo antes de o seu comentário chegar), mas sim de uma força de expressão.

Mas, ao contrário do que diz, eu não acho que o problema esteja só a jusante. Precisamente, situo-o também a montante, na essência das religiões em si, precisamente porque alienam o homem da sua condição (sei que estou a usar terminologia datada, faço-o propositadamente).

Julgo também, ao contrário de si, se bem a percebi, que são (também)convicções deste tipo que separam crentes de não crentes.

Repito: muito obrigada e volte sempre.

F. Penim Redondo disse...

Para a Ana Cláudia:

Eu tenho há muito posição identica à da Joana.

Considero que a fé, ao introduzir entidades ou verdades indiscutíveis, acima e para além das regras da convivência civil, acaba sempre por assumir o carácter de ameaça à sociedade humana.

A convivência em sociedade funda-se num contrato tácito entre os cidadãos que, para ser democrático, não pode estar à mercê de "indiscutíveis".

Um monge ou um eremita, vivendo em retiro ou no isolamento, podem sem problemas definir os seus absolutos e ninguém tem o direito de lhos negar.

Em sociedade a questão é muito mais complicada.

Joana Lopes disse...

Excelente, Fernando.
Explicitaste uma série de coisas com que concordo e que tinha deixado implícitas na minha resposta à Ana Cláudia. É por razões como as que apontas que não acredito que o diálogo inter-religioso seja um caminho eficaz para a aliança entre as civilizações - a não ser, talvez, num plano puramente táctico.

Cláudia [ACV] disse...

Joana,
[não quero ser chata, mas gostava de acrescentar isto]

Estamos, então, em desacordo: não vejo em que é fundamental à condição não-crente a convicção de que as religiões são formulações nocivas. O que afasta ontologicamente um crente dum não crente é, tão simplesmente, a sua concepção do real, a crença num plano que transcende o mundo físico. Um não-crente concebe o mundo tal como o podemos percepcionar fisicamente, sem lhe encontrar qualquer outra dimensão. A partir daí têm decorrido uma enorme multiplicidade de conceitos e linhas de actuação, ao longo da História. Há ateus que são anti-religiosos, outros para quem a religião é apenas algo em que não se revêem; tal como há crentes que impõem intransigentemente a teocracia a toda uma sociedade, e outros que defendem a convivência, o respeito por outras crenças e convicções que não a sua, num plano de cidadania. Crer numa realidade metafísica não transporta o desprezo (ou a alienação) da condição da vida humana tal como a conhecemos; por essa razão tantas religiões consideram a vida humana um valor sagrado. Há quem tenha levado o "agora", para benefício do "depois", a extremos, mas também poderia invocar actos extremos decorrentes da convicção ateia, por esta ordem de ideias.

Fernando, é bom lembrar que fé e dogma não são sinónimos, e não podem ser confundidos como tal. A fé, qualquer fé, é feita de convicção, esperança e dúvida, e não tem nada de fundamentalmente incompatível com a vivência em sociedade. E já que fala em cidania: muito antes de se regular (coisa que só acontece há duzentos anos, e apenas numa parte do globo) segundo um contrato entre cidadãos, a vivência em sociedade já era praticada, tal como a coabitação entre religiões e outras convicções. Com a instauração do liberalismo, iniciou-se um processo que ainda não acabou, e que, a ser aprofundado (ou levado para outras zonas), implica a redefinição da vida em sociedade de forma não-orgânica, o que transporta problemas sem precedentes: como respeitar as diferentes liberdades (religiosa, política, etc) e criar um quadro de convivência o mais abrangente possível? Há duzentos anos que não há "indiscutíveis" colectivos, ainda que possa haver quem tenha grandes certezas individuais/grupais. Tem-se caminhado, com altos e baixos, no sentido da acomodação social de diferentes valores. Isto provoca choque, tensão, debate, arregimentação, mas isso não me parece ser mau. Não numa democracia.

Joana Lopes disse...

Ana Cláudia,
Não é fácil discutir temas como estes em Caixa de Comentários, mas continuemos.

Eu estou de acordo com muito do que escreve, talvez com quase tudo.
E não penso que seja «fundamental à condição não-crente a convicção de que as religiões são formulações nocivas» - há muitos não-crentes que acham o contrário.

O que pretendi dizer (voltemos ao «post» inical) é que, no meu entender, a história das religiões mostra que, da sua existência/vivência, têm vindo, não só mas também, muitos males ao mundo (retiro a tal «contabilidade»). Concretizando numa afirmação propositadamente simplista e indemonstrável: a humanidade viveria melhor, em comunidade global, se tivesse contado e contasse só consigo própria.

Acredite que é sempre um prazer trocar ideias consigo (começámos,há cerca de um ano, no RCP, lembra-se?)

Um abraço

F. Penim Redondo disse...

Ana Cláudia, antes de mais creio ser importante esclarecer que esta discussão, para mim, só faz sentido no plano institucional.

Quer isto dizer que a relação íntima de cada cidadão com as suas crenças, que está fora do espaço público, não só escapa por natureza a qualquer intervenção externa como é digna de todo o respeito.

As opiniões que expressei têm a ver com a forma como as organizações de carácter religioso se inserem na sociedade e, como diz a Joana, com o historial conhecido dessa inserção.

Num plano comezinho posso falar de experiências pessoais como a participação numa Assembleia de Freguesia, na zona de Lisboa, que discutia a atribuição de grande parte dos recursos disponíveis à Paróquia. Estando eu em minoria e tendo tomado a palavra para questionar a justeza de tal decisão fui severamente castigado pela maioria dos presentes.

Naquele microcosmos a bondade daquela decisão era inquestionável, indiscutível. Sempre que a "relação de forças" o permite a tentação de silenciar o incréu tende a regressar.

A Ana pode dizer, com boas razões, que outras convicções que não as religiosas também têm proporcionado erros semelhantes.
É verdade.
A diferença essencial é que nesses casos, por mais fanáticos que sejam, têm quase sempre que fundamentar os seus exageros em alguma teoria cuja falsidade pode ser demonstrada mesmo que com grande dificuldade.

Se a formulação da teoria em causa não for passível de contestação no plano racional, científico, então ela pode vir a tornar-se tão perigosa como qualquer religião se as circunstâncias o permitirem.

Parecem ser as voltas da história a determinar quando uma crença se torna intolerante; os muçulmanos pelo que sei fizeram de Lisboa uma cidade de pacíficos convívios inter-religiosos, muito diferente dos radicalismos que hoje campeiam no mundo islâmico.

Contrariamente, o catolicismo que hoje pretende ser sinónimo de civilização ainda há poucas centenas de anos queimava os hereges na via pública, dando espectáculo.

Não tenho a intenção de perseguir ninguém, apenas acho que este perigo deve estar sempre nas nossas consciências, para dele nos defendermos, e não deve ser calado por meras razões de cortesia.

Cláudia [ACV] disse...

Joana [lembro-me bem daquela manhã no RCP, foi uma inédita - felizmente bem acompanhada - e simpática experiência, para mim] e Fernando, agradeço esta troca de ideias. Já não é a primeira vez que me acontece trocá-as mais interessantemente em modalidade caixa-de-comentários que em outras mais expectáveis :)

Cláudia [ACV] disse...

Joana [lembro-me bem daquela manhã no RCP, foi uma inédita - felizmente bem acompanhada - e simpática experiência, para mim] e Fernando, agradeço esta troca de ideias. Já não é a primeira vez que me acontece trocá-as mais interessantemente em modalidade caixa-de-comentários que em outras mais expectáveis :)