20.4.08

Foram diferentes os Maios


Passei dois dias num colóquio sobre Maio de 68, leio muito do que vai aparecendo em jornais franceses e não só, comprei livros que já li e outros que estão em fila de espera. Começam agora a aparecer na blogosfera portuguesa os primeiros textos sobre o tema e ainda nem sei se chegarei a meter-me na conversa.

Por hoje, vou por uma via marginal mas que me parece de algum interesse.

Apercebi-me há alguns dias, por uma afirmação de Fernando Rosas (precisamente no colóquio sobre Maio de 68 acima referido) e por uma conversa posterior com outras pessoas que também estavam presentes, que, de um modo geral, os jovens portugueses, pelo menos os então ligados a partidos ou a grupos radicais de inspiração marxista, estariam de tal modo ideologicamente concentrados na luta contra a guerra colonial e contra o colonialismo que teriam passado relativamente ao lado das influências libertárias do Maio de 68 francês. Nomeadamente no plano dos costumes, «os camaradas» – e, muito mais ainda, «as camaradas» – ter-se-iam mantido firmes, numa militância mais ou menos espartana.

Curiosamente, no mundo em que eu então me movia – o tal dos chamados «católicos progressistas» –, a situação foi completamente diferente. Vivíamos (e se o plural aqui não pode ser «universal», está muito longe de ser majestático) um processo de ruptura com a Igreja, moribundas ou já defuntas que estavam as esperanças depositadas no Concílio Vaticano II e num qualquer posicionamento dos bispos portugueses contra o fascismo. Éramos, e agíamos como podíamos, contra a guerra colonial e contra a do Vietname, a favor de todos os Luter King do universo, mas bem mais abertos a latinidades (sul-americanas ou francesas) do que a bater de asas em Moscovo, Pequim ou Tirana.

100% francófonos, vivemos os acontecimentos de Paris com um entusiasmo, certamente um tanto pueril, mas garantidamente genuíno, no plano da cultura em geral (com leituras de Marcuse, Althusser, etc., etc.), mas, também, a nível dos comportamentos. Os tabus ligados à família e à sexualidade vinham a ser postos em causa desde há algum tempo, de tal modo tínhamos sido especialmente sujeitos a repressão neste domínio. Por exemplo, a revista O Tempo e o Modo publicou um caderno especial sobre Casamento, que foi apreendido pela PIDE, em Março de 1968. Os acontecimentos de Maio em França encontraram assim terreno fértil, em conjunto com muitos outros factores. Acabaram muitos casamentos, vacilaram outros. (Dizia-se mesmo, por graça, que os únicos a querer então casar-se eram os padres – e fizeram-no.) Pelo menos em Lisboa, foi grande a repercussão de tudo isto e correram mesmo boatos, perfeitamente fantasiosos, sobre bacanais que nunca existiram. Mas foi grande o turbilhão.

Quando, em Julho de 68, o papa publicou a encíclica Humanae Vitae sobre a regulação da natalidade, onde eram condenados todos os métodos anticoncepcionais, esperar que a acatássemos era como pedir que voltássemos a acreditar no pai Natal.


Discuta-se pois se o que se passou em França foi uma revolta ou uma revolução, uma derrota ou uma vitória, se tudo deve ser enterrado ou mantido de chama acesa.

Mas Maio de 68, em Portugal, passou-se em diferentes palcos e usou vários figurinos.

11 comments:

F. Penim Redondo disse...

Não se deve esquecer que uma grande parte da juventude estava na guerra em Àfrica, ou na eminência de ir para lá.

No meu caso aconteceu partir para a Guiné no dia 1 de Maio de 68 como tenente dos fuzileiros.
Em Bissau assinava "O Jornal" que chegava às minhas mãos quase com uma semana de atraso.

Foi por essa via que fiquei a saber do Maio de 68 e do que se seguiu durante dois anos (fui impedido de vir à "metrópole", por castigo).

Estava em pleno mato quando, pela rádio clandestina de Argel (creio eu), fiquei a saber que o Salazar tinha caído da cadeira.

Joana Lopes disse...

Claro, mas havia os que ainda estavam nas Faculdades, os mais velhos e... as mulheres.

Mesmo assim: um amigo meu que estava em África, quando voltou, em 69, encontrou todos os amigos e o próprio casamento de pernas para o ar.

Anónimo disse...

Eu estava exilado em Paris desde o início dos anos 60, onde conheci o António Brotas, a Maria Lamas, o Palma In´cio, o Vasco Castro, o Fernando Pereira Marques, etc., etc..Estava com outros companheiro no café Du Luxembourg, no Boulevard S. Michel quando no dia 3 de Maio de 68 começaram, em Paris, na zona da Sorbonne, os confrontos com a polícia. A partir desta data fui um militante activo e permanente de la Revolution du Mai 68. Foi maravilhoso e inesquecível ver, por exemplo, a queda do Governo e a dissolução do Parlamento e a ida do De Gaule à Alemanha pedir ajuda às tropas francesas aí radicadas na sequência do fim da Última Guerra nazi. A paixão da memória é imortal. José Casimiro

Joana Lopes disse...

Obrigada, José Casimiro.
Se quiser mandar-me um pequeno texto com a sua vivência desses dias, eu ponho-o como «post». Queria MUITO ter aqui testemunhos desse tipo, mais do que fazer grandes dissertações.

Anónimo disse...

Corrigenda: de Gaulle.
José Casimiro

Shyznogud disse...

"Queria MUITO ter aqui testemunhos desse tipo," e depois eu roubo-os ;-)

Anónimo disse...

Joana Lopes, não será fácil enviar um pequeno texto sobre o Maio 68, por que eu vivi-o empenhada e intensamente desde o primeiro ao último dia. Até passei a dormir na Sorbonne, onde, entre outros serviços, foi criada uma "enfermaria", criada pela Fac de Medicina, par dar apoio aos manifestantes que tinham sido vítimas das cargas policiais ou do gás lacrimogénio lançado pela polícia.
José Casimiro

Joana Lopes disse...

Obrigada pela resposta, José Casimiro.
Duas hipóteses: ou tem um texto longo já preparado, manda-mo, eu ponho na íntegra num outro blogue que tenho para esse efeito, com excertos neste; ou escolhe UMA história, um episódio que sirva como testemunho - de histórias globais, está o mercado cheio...
Fico a aguardar.O meu e-mail está no perfil.
Mais uma vez, obrigada.

Um abraço

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Não sei como é que o Fernando recebia "O Jornal" na Guiné, pois ele só se veio a publicar depois do 25 de Abril.
Quanto à interpelação da Joana Lopes encontra o meu testemunho em
http://trix-nitrix.blogspot.com/2008/04/o-maio-de-68.html ou no blog do Fernando

F. Penim Redondo disse...

As partidas que a memória nos prega...
Tive que ir ler a minha correspondência da época para tentar perceber o que realmente aconteceu.
A Maria Rosa só foi ter comigo a Bissau três meses depois de eu lá chegar.
Ela é que me mandava o "Diário de Lisboa", pelo correio, de vez em quando.
Não havia portanto nenhuma assinatura de "O Jornal" ao contrário do que a minha desgastada memória me ditou.
Foi portanto pelo Diário de Lisboa que fui sabendo, com grande atraso, dos acontecimentos internacionais.
Obrigado pela correcção Jorge.

Joana Lopes disse...

Jorge: já li. Amanhã «respondo-lhe» no Brumas.

Fernando: isso está mau! Mas ainda deves saber de cor o Capital, não?