24.4.08

Os «católicos progressistas» e a deserção

As diferentes posições tomadas relativamente ao problema da deserção durante a guerra colonial provocaram um encadeamento de textos na blogosfera, que tenho tentado manter actualizado.

Alguém me recordou, entretanto, que também os chamados «católicos progressistas» tiveram um papel neste domínio – o que é verdade.

Não vou falar aqui do posicionamento face à guerra colonial em geral, nem da evolução do mesmo, embora seja nele que se inscreve a problemática da deserção.

Tenho escrito repetidas vezes que uma das características da oposição dos católicos à ditadura, para o bem e para o mal (mais para o bem, na minha opinião), foi a grande maleabilidade com que as múltiplas organizações e publicações se interligavam e agiam em diversas plataformas – legais, semi-legais e clandestinas. É nesse contexto que deve ser entendido como se lidou com refractários e desertores.

Nunca existiram tomadas de posição «colectivas» ou quaisquer incentivos generalizados para que se fugisse. Mas houve sempre uma natural aceitação / aprovação / sentimento de dever de apoio / apoio efectivo a refractários e desertores.

Diria que não foram elaboradas nem invocadas teorias sobre o tema – não as tínhamos, pura e simplesmente. Não me lembro de ouvir alguém discutir se x era mais corajoso que y por decidir ir ou decidir ficar, se era mais meritório fugir ou não fugir, se era melhor desertar individual ou colectivamente (questão que ainda hoje me parece absolutamente bizantina).

Numa mancha alargada de pessoas, que ia muito para além dos católicos (e que, para simplificar, diria que abrangia quem estava, activamente, na oposição e não era membro primeiro só do PC, mais tarde também dos chamados partidos da extrema-esquerda), foi crescendo o número daqueles que recusavam qualquer hipótese de ir matar e/ou morrer em África. E, dentro deste extenso universo, sabia-se que haveria sempre alguém que, se necessário, ajudaria outros a «dar o salto». Dentro da tal informalidade organizativa, acabava por se chegar à porta certa – quantas vezes por portas bem travessas (*).


Confesso que, perante a discussão desencadeada na blogosfera, cheguei a duvidar do simplismo destas minhas recordações. Decidi então conferi-las (e acabar por confirmá-las) com Nuno Teotónio Pereira que, neste caso como em muitos outros, esteve sempre no centro das operações. (Uma casa que ele tinha em Marvão, perto portanto de uma fronteira, foi ponto de partida para várias fugas, concretizadas com grande recurso à imaginação.)

Fomos demasiado pragmáticos, pouco «ideológicos»? Talvez. Mas a Bíblia, enquanto a lemos, não nos dava grandes pistas neste domínio e o centralismo democrático da Igreja deixava-nos já perfeitamente indiferentes.

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(*) Tenho a perfeita consciência de que estou a falar essencialmente de Lisboa e, repito, de quem «aparecia» em actividades oposicionistas.

5 comments:

Aqueduto Livre disse...

Olá.

Gostei muito, mesmo muito, do seu "centralismo democrático da igreja". Suponho eu que se estará a referir à...Católica?

Como foi "roubar" a expressão aos leninistas do Partido (supõe, e bem, que estou a falar do Partido Comunista Portugês), apetece-me colocar as coisas neste terreno: ela há démarches,e praxis, desconcertantes!

Quando pensamos que estamos a navegar em oceanos distantes,estamos, isso sim, a fazer navegação de cabotagem, com a costa à vista e, em territórios semióticos conexos.

Não lhe parece?

Depois, esta "polémica" (que azedou, aqui e acolá; com "elevação", no dizer de Vitor Dias, entre ele e o intelectual [não com o político]Pacheco Pereira...]sobre a deserção, no teatro de guerra ou a partir dos quartéis, com armas ou sem elas, a refracção "militante", ou ainda, uma outra de que se fala pouco:sem ideologia, sem razão, porque sim!

Em Paris, em 1968, encontrei alguns jovens desertores, sem ideologia (alguns foram recrutados pela LUAR... e não só).

Portanto, a juntar aos do PCP, das FAP, dos Maoistas, dos Católicos, dos Protestantes e Testemunhas de Jeová (que os houve, também...]teremos de acrescentar: os apolíticos.

Parece-me, no entanto, que a discussão a haver será (ou deveria ser...) sobre a importância relativa da refracção, das deserções no processo de debilitação do Exército Colonial e no processo que levou ao golpe de estado militar ( a abrilada, como a Joana diz, carinhosamente, num outro post) levado a cabo pelo Movimento dos Capitães Profissionais/MFA. Recordemo-nos que, ab initio, as movimentações dos capitães assentaram numa contestação às promoções "repentinas" dos civis que, sem passarem pela Academia, quando em combate (os Alferes milicianos) eram promovidos a Capitães.

Quando se abrem os grandes baús da História...é nisto que dá!

Zé Albergaria

PS - Outra questão importante (sobretudo para historiadores, como o Rui Bebiano), mas para a qual eu não estou, minimamente,preparado. Deverá apurar-se as sequências estatísticas desses movimentos: a importância da repetição e da grandeza no processo histórico (desde a Diplomatica...)são determinantes para se entender se, este e aquele episódio, são, ou não, acontecimentais.

João do Lodeiro disse...

O que seria bom ouvir falar, e que ninguém fala, é da deserção do estado português que, com a conivência dos opinion makers portugueses, há 30 e tal anos que foge das suas responsabilidades para com os portugueses que viviam nas sua ex-colónias. Essa é a maior deserção de todas!

Anónimo disse...

Tarde, mas boas horas, dei com este blogue e respectivo "post". Se ainda for a tempo, apesar de terem passado já oito meses desde a data do "em dia", faço um pequeno comentário:

A Joama disse que o posicionamento dos Católicos em relação à Guerra Colonial (ir ou desertar) não era uma posição colectiva. Claro. Num assunto destes só mesmo a consciência pessoal devidamente assumida era aceitável.

Porém quero referir o meu caso pessoal (que poderá ter sido igual ao de muitos outros). Em vésperas de embarcar, com uma trílice ou quádrupla posição de ser contra aquela guerra, a favor da auto-determinação dos povos das colónias e das suas lutas de libertação e de assunção da sua maioridade cívica, de ser não-violento e contra a matança de outros seres humanos e, o que é resultante desta última posição, anti-militarista, eu estava numa enorme tensão psicológica que me impelia fortemente para a deserção. E é aqui que eu quero referir que, embora as decisões sejam pessoais, tivemos na altura sempre um espírito colectivo de análise que nos permitiram assumir posições de âmbito mais ambrangente. Com diversos amigos, alguns deles comuns da Joana e meus, reunimo-nos em casa da saudosa Natália e aquele que sabemos ter estado então no centro de muitas destas actividades insitiu comigo para eu pensar muito bem na decisão a tomar, pois que era tempo de a sangria para o estrangeiro (de militantes e activistas) parar e criar internamente algumas forças de rsistência e de mudança. Acabei por aceder em embarcar para Moçambique, mas avisando que se em teatro de guerra me visse confrontado belicamente com a Frelimo eu aí desertaria. À posteriori acho que isso era uma ilusão difícil de efectuar, pois poderia ser abatido por uma das duas forças em combate. Felizmente, enquanto em teatro de guerra sempre consegui activamente evitar o confronto, até que passei para uma especialidade militar, a Engenharia, onde a minha actvidade era muito mais construtiva, na verdadeira acepção do termo.

Mas os contactos com o grupo de amigos continuou e senti sempre o seu apoio durante a maior parte do tempo da minha comissão (aparte alguma correspondência "desviada"). Ofereceram-me uma assinatura da «Vida Mundial» que fui recebendo sempre e a censura praticamnete nunca apreendeu nenhum número duma assinatura que fiz da «Croissance des Jeunes Nations», que me serviram também de ponte com alguns autóctnes intelectualmente mais evoluídos. Em resumo: senti a presença e o "peso" de grupo. Não era um ser exclusivamente individual. Até na minha acção.

Jorge Conceição disse...

Tarde, mas boas horas, dei com este blogue e respectivo "post". Se ainda for a tempo, apesar de terem passado já oito meses desde a data do "em dia", faço um pequeno comentário:

A Joama disse que o posicionamento dos Católicos em relação à Guerra Colonial (ir ou desertar) não era uma posição colectiva. Claro. Num assunto destes só mesmo a consciência pessoal devidamente assumida era aceitável.

Porém quero referir o meu caso pessoal (que poderá ter sido igual ao de muitos outros). Em vésperas de embarcar, com uma trílice ou quádrupla posição de ser contra aquela guerra, a favor da auto-determinação dos povos das colónias e das suas lutas de libertação e de assunção da sua maioridade cívica, de ser não-violento e contra a matança de outros seres humanos e, o que é resultante desta última posição, anti-militarista, eu estava numa enorme tensão psicológica que me impelia fortemente para a deserção. E é aqui que eu quero referir que, embora as decisões sejam pessoais, tivemos na altura sempre um espírito colectivo de análise que nos permitiram assumir posições de âmbito mais ambrangente. Com diversos amigos, alguns deles comuns da Joana e meus, reunimo-nos em casa da saudosa Natália e aquele que sabemos ter estado então no centro de muitas destas actividades insitiu comigo para eu pensar muito bem na decisão a tomar, pois que era tempo de a sangria para o estrangeiro (de militantes e activistas) parar e criar internamente algumas forças de rsistência e de mudança. Acabei por aceder em embarcar para Moçambique, mas avisando que se em teatro de guerra me visse confrontado belicamente com a Frelimo eu aí desertaria. À posteriori acho que isso era uma ilusão difícil de efectuar, pois poderia ser abatido por uma das duas forças em combate. Felizmente, enquanto em teatro de guerra sempre consegui activamente evitar o confronto, até que passei para uma especialidade militar, a Engenharia, onde a minha actvidade era muito mais construtiva, na verdadeira acepção do termo.

Mas os contactos com o grupo de amigos continuou e senti sempre o seu apoio durante a maior parte do tempo da minha comissão (aparte alguma correspondência "desviada"). Ofereceram-me uma assinatura da «Vida Mundial» que fui recebendo sempre e a censura praticamnete nunca apreendeu nenhum número duma assinatura que fiz da «Croissance des Jeunes Nations», que me serviram também de ponte com alguns autóctnes intelectualmente mais evoluídos. Em resumo: senti a presença e o "peso" de grupo. Não era um ser exclusivamente individual. Até na minha acção.

Joana Lopes disse...

A sua experiencia só vem confirmar as minhas recordações e o que digo no post: Havia um grande espírito de apoio a quem decidia desertar ou não. Acredito, como diz, que, a páginas tantas, a sangria pareceria exagerada.