7.12.09

Quando os anos se desfazem














Mário Soares nasceu há 85 anos. «Na minha idade os anos desfazem-se, não se fazem!», diz numa longa entrevista ao «i», em que fala do passado, das suas relações com o PCP e com Cunhal, do que pensa sobre as condições políticas actuais.

Pater familiae ou «máximo denominador comum entre a esquerda e a direita», quer se tenha concordado com ele muitas vezes, discordado ou não quase sempre, ninguém o apagará de vários volumes da nossa história recente, que mais não seja pelo indiscutível carisma que não se vislumbra, nem com muita boa vontade, em quem hoje ocupa várias funções que ele foi exercendo.

2 comments:

José de Sousa disse...

1
Queres saber como evoluíste ao longo dos anos? Pois, recorda o que foste sentindo e pensando perante o Mário Soares e ficarás a sabê-lo. Esse “especialista de ideias gerais”, como num dia de mau humor lhe chamou o Vitorino Magalhães Godinho, aí está a intervir sem quaisquer paragens, nem descansos. E se as suas ideias continuam a ser gerais – e que outras se poderão exigir– elas, como talvez nunca, são ideias de renovação e arejadas contra qualquer bafio. Expressas em linguagem simples e com um bom senso que chega a ser mais do que isso, com um “excelente senso”. É um dos mais novos daqueles velhos que ainda temos. Que continue assim. Ele fala do Pai e dos seus 92 anos, mas o João Soares, julgo que já na sua idade, tinha sofrido a amputação duma perna e andava com uma prótese.
Há uma história que se contava na minha família e que eu vou “transcrever” tal como a lembro. Não a ofereço com selo de garantia da verdade e até acontece que terei de fazer um certo acerto de datas para que eu a veja como autêntica. É uma história talvez ignorada pelo próprio Soares.
O meu avô, Chagas Franco, era muito amigo do João Soares e do Augusto Casimiro. Um e outro frequentavam-lhe a casa, brincavam com a minha mãe e os meus tios duma forma “moderna”, sem aqueles alheamentos e dignidades próprios da época. Por exemplo: podiam gatinhar com eles e fazerem coisas do mesmo género. Um deles improvisava-lhes versos. Julgo que o Augusto Casimiro. Enfim, amigos muito próximos.
O João Soares tinha um filho, o Tertuliano, que seria da geração da ninhada do Chagas Franco, mas não sei se participavam todos nas mesmas brincadeiras e se o Tertuliano estava incluído naquele convívio.
O meu avô era um homem muito certinho até uma certa altura. Julgava-se na família. Casado com alguém mais velho do que ele e cardíaco e doentinho, eternamente sentado na sua cadeira, como havia tanta gente na altura, sem que se soubesse muito bem o que assim a invalidava, podia ter-lhe acontecido, às tantas, que encontrasse a sua mulher como algo de imprestável. Resumindo, o meu avô passa a aparecer violentamente trespassado pelas setas de Amor. Ilícito e adúltero. Com consequências familiares.
Não vou coscuvilhar aqui a sua vidinha, embora gostasse de me aperceber (melhor) do que era para ele a Mulher. Certamente era de forma tão diferente que, nem com mais um seculizinho acrescentado de permeio, a afastaria mais das várias formas como, hoje, os homens “vivem” a Mulher.

José de Sousa disse...

2
Aconteceu, ainda histórias de família, que havia por aquela época uma rapariga (que eu vim a conhecer com os seus 60 anos) generosa com tudo o que pudesse levar uma comenda e com grande preferência por canapés de gabinetes oficiais. Constava que um seu irmão, militar, ia progredindo com aqueles seus esforços. Aconteceu, pois, à volta de 1916, que o meu avô tombou inebriado de paixão por essa bela jovem. Teria 17 ou 18 anos. O meu avô uns quarenta. Nem faltava o canapé oficial. O seu Chagas Franco era, à altura, Governador Civil de Lisboa.
Conhecendo isso, o João Soares procurou-o e pespegou-lhe um discurso de moral. Um apetite tão voraz, uma cambalhota na sua vida por aquela, aquela que... e a família, aquela família tão amada, tão sua, até então. Discursos de moral, quem os atura! Parece que o meu avô era, ainda por cima, dado a cóleras extremas. As suas paixões seriam todas um tanto desmedidas. Foi a casa buscar uma pistola (era oficial do exército) e passou a andar à procura do João Soares para, acertando-lhe, acertar aquelas continhas que ele tinha como desacertadas. Nada de duelos, era tiro no homem e acabava-se a questão.
Julgo que ,enquanto durou a fúria, não o encontrou. O que se seguiu depois, e entre os dois, não consta na história. O meu avô, uns anos mais tarde, escreve um livro de parceria com o João Soares e entretanto oferece-se como voluntário para a guerra e a jovem acompanhou-o como madrinha de guerra ou enfermeira ou coisa assim. O meu avô dedica-lhe um romance, “As Sacrificadas”. E. às tantas, foi viver com ela para Paris. E tiveram uma filha. E chamou o filho rapaz, o meu tio, para junto de si.Ali viveram uns bons anos.
Ele teve essa filha mais tarde, depois da guerra acabar, e o João Soares também. Não uma filha, mas um filho. O Mário Soares. E foi assim que Mário Soares foi possível por um encontro e um desencontro. O encontro no leito dos seus pais e o desencontro na rua daqueles dois amigos.
Claro que isso só se o Chagas Franco, encontrando o seu amigo João Soares, o tivesse morto a tiro. Ou à facada, ou de qualquer maneira. A fúria era tanta...