12.4.10

Spínola, o nosso herói


Ao ver ontem que tinha sido inaugurada em Lisboa uma nova avenida, a minha primeira reacção foi apenas de indignação, sobretudo ao ler que, para Cavaco, «ao homenagear a figura do marechal António de Spínola, a Câmara Municipal de Lisboa pratica um acto de grande justiça, a que todos nos devemos associar com o maior júbilo».

A memória tende a ser curta para todos, mas talvez nem se trate de falta dela no caso do presidente de todos nós: muito provavelmente, ele rejubila-se mesmo quando pensa em Spínola e em tudo o que a sua figura e a sua complexa vida representou. (Menos compreensível, digo eu cheia de boa vontade, é ver António Costa associado ao evento, mas adiante.)

Podia lembrar aqui apenas, e seria o suficiente, a ligação de António de Spínola ao ELP / MDLP, organizações terroristas responsáveis, entre muitos outros actos, pelo ataque a dezenas de sedes de partidos de esquerda e pelo assassinato do padre Max.

Mas vale a pena recordar mais alguns elementos da sua biografia e J. M. Correia Pinto fá-lo bem no Politeia. «Como militar serviu devotadamente o Estado Novo e Salazar, como tantos outros», «era um fervoroso apreciador da bravura do exército alemão, cujas façanhas acompanhou, no cerco de Leninegrado, como observador», «simpatizava politicamente com o que de mais reaccionário havia então na Europa: o franquismo, a tradição prussiana do exército alemão enquadrada e dominada pelos nazis, e Salazar. Este pendor autoritário e anti-democrático acompanhá-lo-ia durante toda a sua vida».

Sabe-se que «Spínola, uma vez na Guiné, teve uma percepção mais correcta da guerra em que estava envolvido», mas também que «tal como Marcelo também ele não compreendeu o nacionalismo africano e sempre acreditou, ao ponto de ter mitificada a ideia durante toda a sua vida, que seria possível encontrar um rearranjo constitucional capaz de acomodar a presença política (económica e social) portuguesa com as aspirações autonomistas dos povos colonizados» e que o que «nunca foi capaz de superar foi a subalternidade do interesse nacional português no processo de libertação dos povos africanos».

É verdade que foi o primeiro PR em democracia, mas todos estarão recordados das suas tibiezas desde a noite do dia 25 de Abril, por exemplo com as hesitações quanto à libertação de todos os presos políticos. Para não falar, obviamente, do 28 de Setembro e das manobras de bastidores que antecederam o 11 de Março.

Não há como ver e ouvir para recordar e por isso aconselho vivamente este vídeo da RTP, nomeadamente do minuto 33:29 ao 44:06. Extraio apenas a seguinte afirmação de Spínola, em vésperas do 28 de Setembro:

«Não estamos dispostos a transigir, a nossa determinação de amor à Pátria com que nos batemos no Ultramar mantém-se intacta.»

Eu não me rejubilo com personagens destas, nem reconheço a ninguém o direito de se rejubilar por mim.

P.S. - Leitura absolutamente indispensável: «Antes Lisboa tivesse ganho uma Avenida Erich von Stroheim», de João Tunes.

(Publicado também em Vias de Facto.)
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3 comments:

septuagenário disse...

A grande biografia do Marechal foi recentemente lançada com o apadrinhamento de Mário Soares e Almeida Santos.

Não tarda muito que os portugueses estejam a confundir a figura de Cunhal com Salazar.

Não vai haver ruas suficientes em Lisboa, para tantos nomes de esquerda e direita e centro.

E se os moradores de uma determinada rua não gostarem do nome atribuido, poderão reclamar?

jpt disse...

Um país que promove Otelo Saraiva de Carvalho (também ele um arquétipo do ridículo pavonear militarão, já agora) não pode fazer uma avenida Spínola?

Pinto de Sá disse...

Confesso que é o meu primeiro passeio pelo blog da Joana, de quem no entanto já ouvira falar mas quanto ao seu passado de católica oposicionista.
E este post faz-me apetecer comentar, praticamente para dizer que discordo de quase tudo o que a Joana aqui diz, mas que nada disso tem importância porque se tratam apenas de memórias emocionais, e não de ideias.
A crítica ao militarismo de Spínola, é uma crítica ao militarismo tout court. Típica de um certo anarquismo militarmente incapaz, como a Guerra civil de Espanha mostrou, e em que se não revê a esquerda que acha que a violência é a parteira da História...
Mas sobre o papel de Spínola na guerra da Guiné acho que não há melhor documento que a 2ª série sobre a Guerra do Joaquim Furtado. Estava errado pela própria ideia de Pátria imperial que tinha?
Joana, até ao Krucheff e à mudança da política da URSS nesta matéria, no fim dos anos 50, até o PCP achava que o Império era natural...
Apoiou o MDLP, pois, e as bombas; mas e do outro lado não se reivindicava também a "legitimidade revolucionária" baseada na força das armas?
Ainda bem que tudo acabou em bem!