29.7.10

Manuel Alegre e o «direito» à resistência


O jornal «i» publicou ontem mais um texto sobre o passado militar de Manuel Alegre. Não me interessa a «acusação», mil vezes repetida, comentada e desmentida, quanto a uma hipotética condição de desertor que não foi (e se tivesse sido?!...), mas sim afirmações absolutamente extraordinárias, que ainda não vi comentadas, de um almirante, de seu nome Vieira Matias, que foi chefe do Estado-Maior da Armada, de 1997 a 2002.

Vieira Matias diz saber que Manuel Alegre não foi desertor, por ter sido mobilizado para Angola e ali ter permanecido até passar à disponibilidade (em Dezembro de 1963, com ordem de regresso, depois de preso pela PIDE e com residência fixa em Coimbra), mas que «isso é o que menos importa». Porque grave foi a sua acção na Rádio Voz da Liberdade, em Argel, que «criava danos psicológicos nas nossas tropas e incentivava o inimigo a combater mais violentamente». A guerra colonial era injusta para Manuel Alegre? «Poderia ser a opinião dele, mas não lhe dava o direito de criar condições para causar mais baixas nos seus compatriotas.»

Ou seja: em 2010, alguém, que exerceu um cargo da maior responsabilidade nas Forças Armadas, diz impunemente alarvidades destas e ninguém reage. Trinta e seis anos depois do 25 de Abril, põe-se em causa um candidato à presidência da República porque ele foi um resistente activo, não só mas também contra a guerra colonial, num exílio em Argel (que, garanto-vos eu, esteve longe de ser de luxo quando não foi mesmo de perigo), naquele que foi um instrumento da oposição portuguesa, absolutamente único: a Rádio Voz da Liberdade. Quantas notícias sobre o que se passava nas várias frentes de guerra não nos chegavam apenas através desse som que tentávamos, tantas vezes em vão, captar pela calada da noite, em rádios sempre mais ou menos roufenhos? Vem agora pôr-se em causa o «direito» à denúncia do que se passava em África? O «direito» à luta contra a ditadura?

O currículo do Vieira Matias não diz «onde é que ele estava no 25 de Abril». Não sei quem o nomeou para chefe do Estado-Maior da Armada. Mas, entre 1997 e 2002, o presidente desta República era Jorge Sampaio e o primeiro-ministro chamava-se António Guterres. A brandura dos nossos costumes e as cedências nalgumas nomeações têm um sabor amargo, mesmo alguns anos mais tarde. E, por vezes, pagam-se caras.

P.S. 1 – Dizem-me entretanto que Vieira Matias pertence actualmente ao Conselho das Antigas Ordens Militares, «nomeado por alvará do Presidente da República».

P.S. 2 - Justiça seja feita: acabo de saber que Vieira Matias «foi corrido» por Jorge Sampaio. (30/7, 10:52)

Nambuangongo Meu Amor

Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo

Falavas de Hiroxima tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.

Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.

Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.

É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo longo
tempo exactamente em cima
do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.


...

10 comments:

Ricardo Alves disse...

Joana,
o tal Vieira Matias tem um cargo de nomeação presidencial:

http://www.ordens.presidencia.pt/conselho_ordens_militares.htm

Joana Lopes disse...

Obrigada Ricardo, vou pôr um P.S.

joão disse...

portanto para o senhor almirante nenhum país pode ganhar uma guerra se não sugeitar o seu povo a um regime de sensura.

Vitor M. Trigo disse...

Penso que conhecem o TAR. Na dúvida, aqui vai:

O TAR é uma unidade de medida da inteligência. Assim:

Kilo TAR
Hecto TAR
Deco TAR
TAR
Deci TAR
Centi TAR
Mili TAR.

Luis Parreira disse...

Não vou fazer juízos de valor em relação à vossa abordagem ao tema, deixo apenas uma reflexão de alguém que esteve no “terreno”, vale o que vale.
Como sabem as FAs têm várias forças suas a actuar em diferentes teatros de operações no estrangeiro. Uma das últimas unidades a partir, foi uma companhia de comandos, para Cabul . Vamos supor que eu, cidadão português, me metia num avião e ia para o Cairo, para Tripoli, ou Casablanca que é aqui mais perto, ou talvez Argel. Reunia-me lá com mais uns amigos que não concordassem com esta política, fundava uma rádio e passava a emitir textos de apoio aos talibãs, incitando os militares portugueses à deserção, passando informações ao IN, etc. A pergunta é esta: como é vocês reagiriam a isto, o que é que me chamariam?
O crime de traição é considerado em relação à Pátria, não em relação a governos ou regimes. Não há traidores “democráticos” ou traidores a ditaduras, ou outra coisa qualquer. A traição é sempre relativa a uma causa, um juramento, uma crença. O cidadão MA quando foi para Argel não se limitou a combater o regime, consubstanciado nos órgãos do Estado, mas a ajudar objectivamente as forças políticas que nos emboscavam as tropas. A não ser que considerassem essas tropas como fiéis apaniguados do regime, coisa que até hoje sempre desmentiu.
E conhecerá MA algum governo que estivesse em guerra, que permita ou não se oponha a quem queira contestar a legitimidade do conflito em que estejam envolvidos – ou apoie o lado contrário? (lembra-se que na II GM, os americanos até construiram campos de internamento para os suspeitos?).
E para encurtar razões, que legitimidade tem o MA para invocar a democracia e a liberdade, para justificar a sua acção em Argel, quando na altura era membro do PCP – uma das mais fiéis correias de transmissão do Kremlin – e que, como se sabe, foi sempre um modelo de transparência, liberdade e democracia?.
Talvez não fosse mau abrirem um pouco o vosso entendimento. Não tentem reescrever a história. não vos fica bem.

Joana Lopes disse...

Luis Parreira

Uma precisão: MA, quando esteve em Argel não era membro do PCP, coisíssima nenhuma. Até vem certamente na Wikipedia.

Indo mais ao fundo da questão: registo que, para si, todas as causas são justas e que lutar ao lado dos talibãs ou pela democracia se equivalem.

Não sei que idade tem mas, se já era adulto no 25 de A., foi certamente um fervoroso salazarista. Caso contrário, «abra um pouco o seu entendimento», «não tente reescrever a história». E leia umas coisas…

Ricardo Alves disse...

Luís Parreira,
eu concordo com a Joana Lopes porque me parece profundamente inaceitável que compare a luta contra os movimentos de libertação das colónias portuguesas e a luta contra os talibã. Como me parece superficial dizer que não há «traidores a regimes», mas sim «traidores à pátria». E mais: contra o salazarismo, «trair» seria não combater o regime.

Tiago Silva disse...

E se desertasse? Eu não apoio o Alegre para as presidenciais, e muito menos o vejo como o D.Sebastião como parte da esquerda (e da não-tão-esquerda) faz, mas e se desertasse? Seria um acto nada reprovável de quem se assume como anticolonialista. Considerar uma guerra de repressão, como a colonial, um "dever patriótico", seja qual for o regime que a promove, é tão cripto-fascista como as declarações do dito militar.

Mas já que se fala em exércitos e essas coisas, preocupa-me muito mais o facto do poeta defender a manutenção das FA's portuguesas em forças de ocupação no paises dos outros, caso ganhe as eleições. Não é só combater o colonialismo convencional do passado, mas também as novas formas (mais sofisticadas) do presente.

Elisiário Figueiredo disse...

Em primeiro lugar os meus parabéns pelo seu blog que não conhecia, falha minha.

Não tenho muito a dizer acerca do seu post a não ser o facto de estar completamente de acordo, posso ser suspeito sendo apoiante de Manuel Alegre, no entanto isto demonstra por onde vai a campanha do candidato da direita e quiçá a do candidato de Mário Soares, isto não é novidade para ninguém é esta forma nova de fazer politica, ou como disse Carlos Abreu Amorim "estas são as regras do jogo, a política contemporânea faz-se desta forma…" como se fosse um acto sério e uma inevitabilidade, o acto da difamação.

Joana Lopes disse...

Obrigada, Elisário pela «visita». E também estou de acordo com o que diz, evidentemente.