17.1.11

Ação - ou os encantos do Acordo Ortográfico


O texto de Manuel Halpern já tem uns meses, mas só hoje o recebi por mail. E não pode exprimir melhor os meus engulhos com o dito Acordo…

Um cê a mais

Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.
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6 comments:

Jorge Conceição disse...

Os próximos passo irão ser o da fonética e o do sotaque. Os sotaques nortenho, beirão, alentejano, algarvio, açoreano e madeirense terão que ser aferidos pelo da rede Globo. E o lisboeta, claro...

Anónimo disse...

Bela mensagem, esta. E, sim, tudo vai correr bem; já aconteceu outras vezes. Lembro-me que a minha avó eacrevia mãi em vez de mãe mas não deixa de ser um bocado estúpido porque me parece que o que nos separa do Brasil é fonética e a semântica, não a ortigrafia.
maria de Jesus

Diogo disse...

Se a ortografia não mudasse (evoluísse) ainda hoje estávamos todos a escrever latim. Aposto que os miúdos que vão agora começar a aprender a escrever vão dar menos erros.

Jorge Conceição disse...

Irão...

mdsol disse...

Um texto bem bonito.

:)))

Isabel disse...

ainda não consigo ler um texto corrido na nova ortografia, tropeço em cada "ação". mas tudo irá com o hábito. Eu sei que a comparação é pouco poética, mas será como com o euro e o escudo. Hoje de manha ouvi a minha mãe dizer que qualquer coisa tinha custado "trinta contos" e pensei "de onde é que esta saiu?"