11.2.11

A praça está tão cheia que não se consegue andar lá dentro, e a toda a volta há marchas e massas, indo e vindo do edifício da televisão, completamente cercado por tanques, onde também muita gente passou a noite


«Foi assim que ontem me achei a discutir o dilema do exército egípcio com André, um brasileiro do sul. Estávamos nas imediações da praça Tahrir, num daqueles cafés cheios de homens e de fumo, entre edifícios “art-déco” enegrecidos por meio século de desmazelo. Mas como estamos em plena revolução, vários dos homens tinham fitas tricolores à volta da cabeça, e uma das raras mulheres presentes, velada até à frincha dos olhos, teclava num computador portátil.

André tem cara de norueguês, vive entre Nairóbi e Itália, venceu ataques de malária nos mais vagabundos hotéis do Corno de África e agora está a dormir num hotel menos vagabundo nestas imediações. Paga 60 libras egípcias por noite, o preço de um copo de vinho no Intercontinental, o hotel de cinco estrelas do outro lado da praça Tahrir. É um “freelancer”. Veio para o Cairo com uma encomenda de uma grande agência de fotografia. A encomenda acabou mas o trabalho não, entende André.

— “Putz”.... — diz ele, puxando mais uma fumaça de narguilé. Os paulistas é que dizem muito “putz”, uma daquelas bengalas que não querem dizer nada, género “pô” ou “puxa”, ou “caraca”. André não é paulista, mas São Paulo é a cidade brasileira de que ele mais gosta.


Discutimos o impossível: em que é que o exército egípcio está a pensar. Todos os dias cruzamos as barricadas de tanques, mostrando os nossos cartões de identidade aos oficiais. Os oficiais estão quietos. Quietos perante a revolução mas também quietos perante a polícia que na província reprime a revolução, e ainda ontem matou gente.

André diz que são os militares que estão a puxar os cordéis da revolução e que o poder será sempre deles. Eu digo que o Brasil teve 20 anos de ditadura militar e hoje, quando os jovens revolucionários na praça querem citar exemplos inspiradores além do que seria previsível (a Turquia), citam o Brasil por ter levantado a cabeça.

A revolução da praça Tahrir é esse momento: levantar a cabeça.

Eu, que vim de férias, parto em breve. Mas algures num hotel vagabundo nas imediações da praça Tahrir, um brasileiro do sul continuará a trabalhar. O trabalho dele é apanhar o momento em que a cabeça vira numa determinada direcção.»

(Título, fotos e texto de Alexandra Lucas Coelho)
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