18.8.11

Diz-me onde moras

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Recebi hoje por mail este texto de Miguel Esteves Cardoso, que tem mais de dois anos mas que merece ser conhecido ou relido. Uma delícia!

«Um dos grandes problemas da sociedade portuguesa é o trauma da morada. Por exemplo, há uns anos, um grande amigo meu, que morava em Sete Rios, comprou um andar em Carnaxide. Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha um problema. Era em Carnaxide. Nunca mais ninguém o viu.

Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia! Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide. Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais. É a injustiça do endereço. Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos. O tamanho e a arquitectura da casa não interessam.

Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada, Agualva-Cacém, Abuxarda, Alfornelos, Murtosa, Angeja, ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola. Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. Ao ler os nomes de alguns sítios - Penedo, Magoito, Porrais, Venda das Raparigas, compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na CEE.

De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém), como é que a Europa nos vai querer integrar?

Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses. Imagine-se o impacto de dizer "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar. Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina de onde é?", e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).

E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando "E onde mora, presentemente?", Só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz).

É terrível. O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto, para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro? Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda.

Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga), mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso? Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Arouca, de uma Vergadelas? É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra". Ninguém é do Porto ou de Lisboa.

Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir. Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do Bairro). É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros ("I am from the Fountain of Drink and Go Away...").

Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa. Verá que não é bem atendido. (...) Não há limites. Há até um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima!!!

Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros. Há que dar-lhes nomes civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços, tipo : Não Sei, A Mousse é Caseira, Vai Mais um Rissol. (...)

Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde), e acabando a comprar rebuçados em Bombom do Bogadouro (*) (Amarante), depois de ter parado para fazer um chichi em Alçaperna (Lousã).

(*) Bogadouro é o Mogadouro quando se está constipado!!!»
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4 comments:

Septuagenário disse...

É pena que a troika vai obrigar a agrupar uns milhares de pequenas e desertificadas aldeias, o que eliminará nomes interessantíssimos.

Tambem é muito traumatizante dizer-se "lisboeta" só porque nasceu na maternidade Alfredo da Costa.

Tanto que já vemos pedreiros, de brincos e verguilha pelos joelhos, só porque a mãe do pedreiro teve que emigrar para Lisboa fazer-se à vida.

Embora a modernidade tambem já se vê nos lugarzinhos do interior.

Mas reconhece-se ao longe, se é de Margalha da Baixo ou de Cima, o pai do ministro ou do pedreiro que vive em Cascais ou a Foz.

MES foi no entanto bastante original com este artigo.

Fada do bosque disse...

Esqueceu-se de nomear o Penso de Baixo e Penso de Cima, Cruz de Pêlo e Moço Morto, todos aqui no Distrito de Braga, Concelho de V. N. de Famalicão!
-Olha para onde vais?
-Vou para Moço Morto, queres vir comigo?
Haja pachorra!! que estas duas ultimas são aqui mesmo ao lado e para cúmulo, quando tenho de dizer a minha morada... minha nossa!!! fica tudo a rir-se! Rua da Ribeira e Forno - Requião!!!!
Espectáculo!!!!

Paulo Topa disse...

O mais curioso de tudo é que, algures no tempo, os nomes que todas essas terras têm devem ter um significado real (quase como se fosse nomes comuns e não próprios) ligados a acontecimentos ou pessoas.
Em alguns casos o estudo está feito e sabe-se a história. E (deveria ter acento) muito interessante.

Joana Lopes disse...

Eh!Eh! Isto dava pano ainda para mais mangas!