1.3.13

Os «ataques à democracia» no país do respeitinho



Texto de André Freire no Público de ontem (sem link), que subscrevo (quase...) na totalidade.

Os episódios ocorridos com o ministro Miguel Relvas (MR), numa conferência do ISCTE (19/2), quando foi interrompido por ativistas/ estudantes ligados ao movimento “Que se Lixe a Troika" exigindo a sua demissão, tendo depois MR saído da conferência acossado pelos ativistas, geraram assinalável controvérsia. Nomeadamente, dividiram internamente a esquerda e a direita. Vale a pena, seja pela sua importância intrínseca, seja pelo padrão da controvérsia, revisitar a questão.

No Parlamento (AR), houve uma quase perfeita divisão entre a esquerda e a direita na avaliação dos acontecimentos. O líder parlamentar do PSD falou de “ataque à democracia” e pediu apoio de todas as bancadas contra tal ataque. O CDS dramatizou menos, falando antes na relatividade dos direitos (de protesto vs. de falar) e declarando apoiar as críticas (à ação dos ativistas) de ilustres socialistas. O líder parlamentar do PS declarou-se defensor da democracia e da liberdade, mas afirmou também que “o descontentamento geral criado no país pela falta de credibilidade deste Governo não é saudável e não é bom para a democracia”. Do lado da esquerda radical (BE e PCP), a relativização dos incidentes foi ainda mais assertiva. Fora da AR, pelo contrário, a avaliação dos eventos dividiu internamente a esquerda e a direita. À direita, quer Lobo Xavier (CDS), quer Pacheco Pereira (PSD) desvalorizaram o incidente, declarando altamente provável a sua ocorrência numa qualquer democracia consolidada, tendo em conta a falta de credibilidade do ministro e chegando ao ponto de acusar MR de cobardia por não ter tentado continuar o discurso, pedindo aos organizadores para restabelecerem a ordem na sala. Pelo contrário, o challenger falhado à liderança do PS, António Costa, indignouse com o protesto dos estudantes e com o enxovalho do ministro. Outros ilustres socialistas (Vital Moreira, Augusto Santos Silva, Francisco Assis, outros) alinharam pela mesma bitola: seria preciso “impor limites” às vaias para garantir o direito à palavra e o respeito devido a um ministro.

Concentremo-nos no “ataque à democracia”: as outras alegações são um sucedâneo envergonhado. De facto, a democracia portuguesa tem estado sob um severo ataque por três ordens de fatores; mas nenhum deles está relacionado com a ação dos ativistas referidos. Primeiro, há um descrédito da classe política pela falta de exemplo. O paradigma é a forma facilitista como MR obteve a sua licenciatura. Como exigir aos cidadãos esforço e trabalho árduo se os ministros dão estes exemplos? Segundo, temos a deslegitimação pelos resultados macroeconómicos e sociais da governação. Por último, temos a deslegitimação pelos procedimentos. Por um lado, por causa dos variadíssimos compromissos eleitorais assumidos pelos vencedores em 2011 e grosseiramente violados desde então, ferindo de morte o contrato básico entre eleitores e eleitos numa democracia representativa. Alguns poderão pensar que tudo isto decorre do acordo com a troika mas não é verdade: o “estado de exceção” que temos vivido atinge sobretudo os assalariados ( os servidores públicos e os pensionistas), mas isenta quase por completo o setor financeiro e as rendas dos grandes interesses económicos monopolistas (nas PPP, na energia, nas telecomunicações). A somar a tudo isto temos a violência das medidas, muito para além da atirando milhares para o desemprego na Saúde e na Educação. Aqui estão os mais profundos ataques à democracia. Mas não se pense que eles são da exclusiva responsabilidade da maioria. São também responsabilidade do PS: por algum legado da governação anterior e pela tibieza da oposição que tem feito ao Governo em funções, nomeadamente por ser incapaz de gerar uma alternativa, seja em termos de alianças, seja em termos de políticas, que vá além de um bloco central alargado (PSPSD-CDS) e das mesmas políticas, mas com “rosto humano”. Mas é também de uma esquerda radical (mais o PCP do que o BE) incapaz de fazer significativas cedências para possibilitar a construção de uma alternativa governamental de esquerdas. E são os jornalistas mainstream que dia a dia pressionam o PS para aceitar todas as imposições da troika e da maioria de direita, mesmo quando elas põem em causa princípios basilares da democracia.

Claro que os ativistas que se manifestaram no ISCTE contra MR poderão ter pisado os limites da legalidade democrática. Porém, como dizia o blogger do Gato Maltês: “Que me lembre, (…), nunca grandes ações de massas que fizeram avançar o mundo e progredir a sociedade foram levadas a cabo sem um certo grau de desobediência civil, de algum afrontamento da chamada ‘ordem estabelecida’, fosse ela de natureza política, social, moral ou de costumes. Assim aconteceu no Maio 68, com o movimento hippie com a luta pelos direitos cívicos (e a França, o Reino Unido e os EUA até eram e são democracias) e assim se implantou a nova cultura juvenil nos anos do pós-guerra. Indo um pouco mais longe, assim se conquistou o direito ao sufrágio universal. (...).” Que a direita queira esquecer isto, ainda se compreende: esteve amiúde do lado errado da História… Já esta falta de memória à esquerda é dificilmente explicável a não ser por um espírito (autoritário) de respeitinho (salazarento) instalado até ao tutano… e/ou pelo desejo ardente de ir para a cama com a direita no próximo Governo… 
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