1.5.13

A-SSA-SSI-NOS! A-SSA-SSI-NOS! – 1º de Maio de 1962


Um texto de Helena Pato, incluído no seu livro «Já uma estrela se levanta».

Seguíamos num Volkswagen – eu acompanhava-os, até ver. O Alfredo Noales, com quem já casara, tinha recebido do chefe de redacção do República a incumbência de fazer a reportagem. Para a censura cortar inevitavelmente de alto a baixo, é claro. Ao seu lado, um amigo, um camarada nosso, que estava connosco por ser um dos organizadores. No banco de trás seguia eu, impaciente e receosa.

Nas vésperas tinham sido lançados panfletos por toda a cidade, chamando o povo a comemorar o 1.º de Maio, a manifestar-se. Se a ditadura proibia toda e qualquer manifestação, o «1.º de Maio» era assunto subversivo cuja referência pública, escrita ou em voz alta, só por si, podia valer prisão. Nos últimos meses, reuniões e mais reuniões na nossa casa, em Campo de Ourique – tudo muito discutido, muito preparado à porta fechada, mas nada passara por mim. Apenas sabia que algumas dezenas de brigadas clandestinas, furtivamente e durante noites e noites, iriam cobrir de propaganda a cidade de Lisboa e os arredores. Papéis, aos milhares, por todos os sítios: apelos à manifestação contra o regime e abundante informação acerca das greves que nos últimos meses despontavam, umas a seguir às outras, nas empresas dos arredores de Lisboa.

Chegámos à Praça do Comércio uns dez minutos antes das 6 da tarde. 1º de Maio de 1962. Uma data histórica – que persiste em sobrar-me, em ficar-me para trás, sempre que quero escrever sobre a resistência ou sobre a repressão fascista. Talvez por ter sido a única vez que, em idênticas circunstâncias, passei mesmo ao lado da morte. Depois, foram décadas a gritar: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» Não se tratava de um grito demagógico, eles eram realmente assassinos.

O nosso carro ia devagar. As ruas estavam praticamente desertas e, ao olharmos para as lojas e para os cafés, a calma e a óbvia normalidade assustaram-nos. Estaríamos à beira de um fracasso? Seria aquele o resultado de tanto trabalho de organização de tantos meses a fio?
«Tem calma, Lena, ainda não são 6 horas!» Tanta reunião, tanta agitação, e um ambiente que parecia explosivo no crescendo das greves, iria dar assim em nada? Seria que o povo não tinha coragem de assumir nas ruas o descontentamento que vinha manifestando à boca calada e que já revelara de forma tão convicta, tão expressiva, nas eleições do Delgado? Afinal onde estava esse povo? «Tem calma, Lena, ele vai aparecer!» O Povo amedrontara-se? Não se atrevia a enfrentar as forças policiais que os estudantes haviam defrontado por mais do que uma vez durante esse mesmo ano? 1500 jovens presos num só dia, em Março, na Cidade Universitária, e agora ninguém se mexia?
«Esta manifestação é política, amiga, não é associativa… hoje é mais complicado arriscar!», lembrava o camarada ciente de uma experiência de luta que eu admirava.

De uma coisa eu tinha a certeza: a tarde estava mais quieta do que o habitual à mesma hora. A Baixa parecia adormecida. Dava-me a impressão de que a acção prevista teria sido prematura ou as expectativas demasiado grandes, que o medo trancara os lisboetas em casa e que os empregados e os lojistas – comércio, moda, capelistas, pastelarias, cafés – estariam a abandonar os estabelecimentos, aos poucos, para fugirem da confusão. Mas por onde parariam os bancários, que tinham prometido uma boa adesão? Continuávamos ansiosos, a rodar, rua abaixo, rua acima, repetitivamente, devagarinho, varrendo metodicamente um espaço cruzado por artérias quase vazias.

Emudecêramos. Somente meia dúzia de estudantes nossos conhecidos passou por nós. Que era feito do pessoal da outra banda? Então os operários da Siderurgia? E os da Lisnave? «Espera e verás, camarada… Hão-de vir, virão em peso… Sabemos que vão estar em força.» Qual quê! Algum comércio ia-se fechando ao nosso lado, e eu desanimada. Havia quem, à porta das lojas, se metesse para dentro e quem saísse para os passeios – caminhavam imperturbáveis, eles de chapéu na cabeça, elas de malinha no braço. «São donos das lojas e caixeiros, já se sabia, Lena… Pouco se contava com eles…»

Começámos por ver a guarda nacional republicana a cavalo, em grupos – três agora, quatro depois –, a avançar pela Rua Augusta, vinda do Terreiro do Paço. Postura sobranceira, a exibir a força.

Quando se cruzou connosco, o Alfredo apressou-se a colocar no vidro do automóvel, em posição de boa visibilidade, uma pequena cartolina branca com os dizeres IMPRENSA – JORNAL DIÁRIO, desenhados na véspera, omitindo tratar-se do República para não chamar a atenção. Não queria dar-lhes qualquer pretexto para detenção, pois referir o jornal República era falar de oposição ao regime. (Continuar a ler)

Percorríamos as ruas lentamente, circulando, da Praça do Comércio até ao Rossio; aí dávamos a volta e regressávamos à Rua do Ouro, num movimento cada vez mais desesperançado. O silêncio vindo de fora tinha-nos contagiado.

Às 6 em ponto, o espanto:
Olhem, olhem! Extraordinário! – exclamei estupefacta.

O milagre nesse Maio de luta contra o fascismo. Em poucos segundos, a Baixa ficara repleta de gente. Pareciam nascidos do chão. Surgiam de todos os cantos e do interior das lojas. Bem-postos, sim, bem-postos, de chapéu, eles, com malinha no braço ou na mão, elas. Vinham, em passo acelerado, das ruas transversais – a Rua da Conceição, a da Vitória, a do Crucifixo, abarrotavam. Santa Justa em clamor. Muitos corriam em bandos, vindos dos lados do Tejo, outros desciam o Chiado aos magotes ou afluíam dos Restauradores. A Rua da Madalena, a dos Fanqueiros e todas as ruas que desembocavam na Praça da Figueira encheram-se, num ápice, de gente que se dirigia para o Rossio. Seis horas da tarde. Nessa altura, a multidão bradava uma palavra de ordem qualquer, não sei o quê, não me lembro.

– Pára, pára, Alfredo, vou sair! – gritei, na Rua da Prata, a saltar do carro ainda em andamento, sem levar carteira, nada, a não ser uma algibeira atulhada de pimenta.

Que me lembre, não havia carros de água nem bombas lacrimogéneas. A polícia era treinada para obedecer às ordens superiores e, desta vez, as ordens superiores resumiam-se, por certo, a duas frases:
«Dêem cabo deles! Acabem-lhes com a raça!» Os polícias invadiram o Rossio: pareciam drogados, saindo como animais das camionetas, bruscamente estacionadas, empunhando cassetetes, com olhares de ódio, espumando de fúria. Não me esqueço de que vi um deles junto de mim, fardado, com pistola. Largaram em corrida, mais aguerridos do que nunca, piores do que em concentrações anteriores. Juntei-me à multidão. De repente, a repressão abateu-se com tal violência que nos levou a reagir imediatamente com um só grito: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» (E eram.) Caíram sobre todos os que agarraram, malhando a torto e a direito. Missão cumprida: homens novos e velhos caídos no chão, alguns cheios de sangue. Prisões aqui e ali. A pancadaria brutal assustava.

Na expressão vincada na face de muitos populares via-se raiva, mas também medo: gente lívida a escapar-se para dentro do Café Nicola e do Café Gelo. Constou que a Pastelaria Suíça tinha fechado as portas de imediato para que a polícia não lhe destruísse o interior, mas também para não acolher ninguém. Houve quem, a custo, conseguisse fugir para as margens da refrega e ficasse a descansar. Gente que por momentos se juntou àqueles lisboetas que desde o princípio se mantinham encostados às montras, nas esquinas do Rossio e perto do Arco Bandeira – uma Lisboa do reviralho, do fado e da ginjinha, solidária, mas, até Abril, temerosa.

Eu, ali parada ao lado do Teatro D. Maria, quase em pânico, com as pernas a tremer, mas revoltada com tudo o que via – numa ira crescente –, procurava ganhar terreno e coragem para atirar com a pimenta aos cavalos que a GNR lançava sobre as pessoas. Assustei-me com eles a relinchar, patas ao alto, avançando sobre nós, enquanto clamávamos: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» A dois metros de mim, em poucos segundos, uns quantos animais tombaram. Estavam agora de joelhos, os guardas a procurarem levantá-los, e nós: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!».

Começou o tiroteio. A multidão resistia, sem conseguir perce- ber donde vinham os tiros.

Dois amigos puxaram-me e quase me arrastaram em direcção à estação de comboios. Depois subimos as Escadinhas do Duque e corremos rua acima, numa subida cansada, violenta e dramática. Os tiros sucediam-se nas nossas costas: aquele som ainda nos perseguia e nós, ofegantes, já íamos junto ao Quartel do Carmo. Lembro-me de, lá em cima, ter um ataque de choro. Raiva ou medo? Nem sei.

«A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» é uma forte memória que guardo do eco da resistência no coração da cidade.

– Há montes de feridos, prenderam muita gente… – gritava-me uma amiga ali a dois passos.
– Parece que mataram um gajo, um operário, um rapaz dos nossos… – disse eu, em pranto.

Ao princípio da noite sentei-me na Cervejaria Trindade com o Alfredo, uns amigos e a certeza de que, a partir dali, a efeméride que, de futuro, comemoraríamos com verdadeira emoção não voltaria a ser o 5 de Outubro. Aquele tinha sido o primeiro «1º de Maio» de luta para muitos milhares de pessoas em todo o país, um passo importante no combate político contra a ditadura.

Meses depois, o Alfredo foi para o exílio, fugindo à prisão que o ameaçava. Chegava brutal a vaga de repressão da PIDE sobre os principais organizadores da sequência de greves e lutas desse histórico ano – e ele havia sido um deles.

Em 1974, centenas de milhares de portugueses desfilaram no dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador. Comemorava-se a liberdade: era dia de festa, mas poucos saberiam a história dos anteriores.
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