25.4.14

Clandestinos — «running on empty»


A minha irmã e eu, depois da prisão do meu pai e já no meio do mundo intrigante dos outros

Um magnífico texto da Rita Veloso, divulgado hoje no Facebook e enviado também para este blogue:

Já por várias vezes escrevi textos com as minhas memórias do período da ditadura e da revolução. Neles, adoto sempre uma perspetiva feliz, dada pelos olhos da criança que era. O Sol e o mar de Peniche, as brincadeiras nas visitas ao meu pai, as ingenuidades de uma criança que tinha de lidar com termos confusos, como clandestinidade ou preso político. Afinal, se não guardarmos da infância memórias felizes, de quando guardaremos?

No entanto, é óbvio que essa perspetiva resulta de um filtro aplicado a uma realidade bem diferente.

Além de todas as misérias que afetavam a generalidade das crianças no período da ditadura – a subnutrição e a fome, o analfabetismo, o trabalho de sol a sol, as doenças vorazes – e que contrastavam brutalmente com as regalias das elites, havia as dificuldades específicas dos miúdos que nasciam em famílias de quem se atrevia a combater o regime, as quais se podiam somar ou não às anteriores.

Crescer na clandestinidade implicava estar-se privado de qualquer sociabilização fora do universo da família nuclear, à exceção de idas fugazes ao médico ou às compras de rotina. Não se usufruía de mimos e ensinamentos dos avós ou dos tios, não havia as brincadeiras com primos ou amigos, aspetos essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo, que se quer num ambiente seguro, carinhoso e estimulante, que questione o intrigante mundo dos outros. Em contrapartida, convivia-se vinte e quatro horas por dia com pais e irmãos. Desenganem-se os que pensam que isso era um privilégio: a tensão em que estas famílias viviam, resultante não só da situação de foragidos como também do convívio forçado e anatural, era sufocante e repercutia-se inevitavelmente nas suas crianças. Vivia-se numa bolha hiperprotegida e asfixiante. A isso juntava-se a instabilidade da contínua troca de casa, com mudanças feitas à pressa, que deixavam para trás as nossas referências físicas afetivas.

Quando chegava a idade escolar, o mais tardar, tudo mudava inexplicavelmente. Com mais ou menos conversas incompreensíveis, as crianças eram subitamente entregues a alguém da família, para poderem ir à escola sem levantar suspeitas e de forma estável. Não é preciso explicar o quão dolorosa era para pais e filhos esta separação. Em muitos casos, o contacto só foi reestabelecido na idade adulta, resultando, geralmente, em mágoas e acusações imperdoáveis. Muitos filhos questionaram o direito dos seus pais a constituir família naquelas condições, agravando ainda mais a dor que os pais já sentiam com o afastamento forçado.

O que levava tantos homens e tantas mulheres a optar por uma forma de vida que, de previsível, só tinha o dinheiro contado, a insegurança, a prisão e a tortura, o isolamento da família? Não seria, certamente, a sede de protagonismo, nem se tratava de semideuses ou heróis.

Serão, porém, seres com um profundo sentido de justiça e uma imensa capacidade de abnegação; indivíduos para quem o bem-estar próprio ou dos filhos vale tanto quanto o bem-estar de todos e para quem o primeiro não existe sem o segundo. Nem sequer se trata de abdicar de uma vida tranquila em prol dos outros; são indivíduos para quem a vida não é tranquila enquanto não houver justiça, igualdade e liberdade.

Eu tenho, assumidamente, muito orgulho nos pais que tive e não os recrimino pelos eventuais danos que as suas opções me causaram. Mas não os admiro nem lhes devo mais do que a todos os homens e mulheres, anónimos ou famosos, que um dia decidiram que iam mudar o mundo, mesmo que não viessem a ver o resultado.

A 25 de Abril de 1974 saiu-se da ditadura, mas não se construiu um mundo justo, igual e livre. Um mundo assim não é nunca uma obra acabada; exige um trabalho permanente de construção e manutenção, para que os direitos de hoje não sejam os privilégios de amanhã, para que a tradição de ontem seja uma discriminação hoje e conduza a um direito amanhã.

Hoje em dia, lutar por um mundo melhor não envolve os riscos que existiam antes do 25 de Abril, mas é mais difícil do que há 20 ou 30 anos. Se nada fizermos hoje, daqui a 10 anos será pior e daqui a 20 pior ainda será. Afinal, que mundo queremos nós deixar aos nossos filhos?



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3 comments:

vítor dias disse...

Um notável testemunho da Rita, a muitos títulos de profundidade, sabedoria e humanidade que me dispenso de elencar.

Joana Lopes disse...

Sem dúvida, Vítor Dias!

Unknown disse...

Lindo, Ritinha! Bem digo eu que vais ser a estrela do painel.