3.6.14

As desgraças cá da Graça



Se Sttau Monteiro ainda andasse por aí, matéria não lhe faltaria para novas «Redacções da Guidinha». Mas as antigas continuam actuais – essa é que é essa!

«Cá na Graça toda a gente pensa que a vida é uma coisa muito triste que aconteça o que acontecer as coisas caminham para pior que não há bem que sempre dure que o pior ainda está para vir e que a gente está sempre lixada já a minha avó que Deus tem coitadinha quando alguém dizia que Deus lhe tinha mandado uma desgraça dizia logo Não te queixes de Deus que se não houvesse Deus havia outra coisa qualquer para te lixar pessoas são assim pessimistas porque nunca lhes aconteceu nada de bom e nunca lhes aconteceu nada de bom porque os reaças nunca deixaram que lhes acontecesse uma coisa boa no tempo dos meus antepassados que Deus tem coitadinhos as coisas já eram assim cá na Graça apesar do povo fazer o que podia quando foi dum chamado Mestre de Aviz a malta foi para a rua aos berros e correu dum lado para o outro a fazer comícios a favor dele e vai fizeram-no rei e tudo correu bem durante uns tempos mas a verdade é que passados esses tempos que foram bem curtos as coisas começaram a correr mal outra vez porque engatavam cá a malta da Graça para ir nas caravelas coitadinhos e eles lá iam e muitas vezes não voltavam e quando chegavam ao fim das viagens não tinham ganho para pagar a prestação da casa ao J. Pimenta desse tempo que era um chamado Infante D. Henrique que era uma espécie de Tenreiro que em vez de peixe congelado tinha congelado bocados de África que lhe rendiam uns pilins bestiais enfim desgraças! nessa altura o Algarve era promovido por esse D. Henrique porque estas coisas passaram-se antes de haver Torralta mas a verdade é que mesmo nesse tempo aquilo era caro de mais para a malta da Graça lá ir passar as férias e mesmo que fosse barato não ia porque as pessoas tinham medo de serem apanhadas pelos angariadores de trabalho voluntário nas caravelas tal como agora têm medo de serem apanhadas pelos donos dos restaurantes e dos hotéis que lhes ficam com tudo e mais alguma coisa nessa altura foi apanhada muita malta da Graça mas é que mesmo muita e ninguém mais lhe pôs a vista em cima se algum dia rasparem o fundo do mar no Cabo da Boa Esperança dão com uma data de esqueletos "made in Graça" olá se dão! nesse tempo de desgraças enquanto o tal infante D. Henrique mais os sócios da Torralta da época enchiam a barriga de coisas boas vindas de África como cocos bananas e amendoins cá a malta da Graça rapava uma fome danada e comia um naquito de pão quando o apanhava a jeito mal constava que o tal infante tinha tido mais uma glória e tinha descoberto mais um sítio a malta fugia a sete pés para não ir lá parar porque era certo e sabido que quem ia malhar com os ossos às fortalezas gloriosas era a malta da Graça e quem lá morria com fome e febre era a malta da Graça e quem lá dava o corpo ao manifesto quando havia combates era a malta da Graça sim porque esse Tenreiro D. Henrique não levantava o rabo de Sagres que era o Hotel Alvor desse tempo mas as desgraças da malta da Graça não ficaram por aí não senhor quando um chamado D. António que era prior do Crato que não sei onde é nem quero saber resolveu salvar a Pátria que estava a ser atacada pelos espanhóis quem foi para o caneiro de Alcântara levar bumba no toutiço foi a malta da Graça porque os nobres e os cavaleiros e os mais accionistas das empresas do tempo cavaram por todos os lados e puseram-se do lado dos espanhóis sim quem foi falecer prematuramente a Alcântara foi a malta da Graça mais tarde veio um chamado D. Miguel Cazal Ribeiro ou qualquer coisa parecida que tinha ao seu serviço uma data de arruaceiros votados à defesa dos bons princípios e vai esses para defenderem os bons princípios davam com os cacetes nas cabeças da malta da Graça havia noites que o barulho das cacetadas era tão grande que até parecia que estalavam foguetes sim porque é certo e sabido que quando é preciso salvar o País quem leva com a cachaporra é a malta da Graça isto é tão certo como dois e dois serem quatro esse D. Miguel salvava a Pátria todos os dias e nessa altura como não havia bancos nos hospitais a malta da Graça tinha de curar as salvações da Pátria com que ficava no corpo com papas de linhaça e pupú de galinha enfim desgraças e mais desgraças vai a certa altura a malta da Graça que ainda tinha uns optimismos escondidos lembrou-se de fazer uma coisa chamada a República para ver se virava a moeda e durante uns tempos até a mudou mas depois veio outro salvador da Pátria chamado Salazar que não gramava a malta da Graça por nada deste mundo e que resolveu salvá-la outra vez ena pai ena pai ena pai que rica salvação! a primeira coisa que esse Salazar fez foi pôr adesivo na boca da malta toda para ela não falar a segunda coisa foi chamar os netos do tal D. Miguel e metê-los numa coisa que houve chamada pide que era um grupo de caceteiros que usava pistolas e metralhadoras em vez de cacetes e que metia a malta da Graça numa estância de Verão que esse Salazar tinha em Caxias enfim mais desgraças de maneira que não espanta que a malta da Graça agora ande com medo de ser salva outra vez sim porque se há coisas que a malta da Graça não aguenta é outra salvação como as antigas agora ou a salvação é diferente ou a malta da Graça acaba de vez porque não há ninguém que aguente tanta salvação o que eu quero dizer com isso é que a malta da Graça está de olho vivo a ver o que acontece porque está farta de curar as feridas das salvações e desta vez gostava que as coisas corressem de outra maneira por enquanto anda cheia de esperanças mas começa a dizer que há discursos a mais e feitos a menos no tempo do salvador Salazar que o Diabo tem levavam a malta ao futebol para distrair e para ela não pensar no que está a acontecer agora não a levam ao futebol não senhor mas há muitos futebóis diferentes e em matéria de distracções há futebóis em que não há bolas e que nem sequer são nos campos de futebol como há maneiras de pôr a malta a berrar sem ser a dar vivas ao Eusébio a malta da Graça já berrou tanta coisa no decorrer da sua vida que para ela as palavras são como as caganitas de cabra nos montes nem as come nem as apanha nem as leva a sério é por isso que está a ver menos televisão a ouvir menos rádio e a voltar aos cafés palavras leva-as o vento e agora o vento deve andar cheio delas porque a malta da Graça já está a meter algodão nos ouvidos de tanta palavra que para aí anda no ar.»

Luís Sttau Monteiro
A Mosca, 19 Outubro 1974
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