14.1.16

As facturas que hão-de vir



Isabel do Carmo no Público de hoje:

«No Ministério da Saúde, entre Dezembro 2011 e 2015 o pessoal da Saúde foi reduzido em 11,2% em número. Em orçamento muito mais. As mortes mais visíveis estão aí para pagar a factura.

Para além das facturas imediatas e escandalosas, resultantes da ideologia e da prática da austeridade, tais como a falência do BANIF e a morte de doentes em fins-de-semana por falta de intervenção especializada, há as facturas que este Governo vai ter de pagar e que a população empobrecida vai pagando e que se reflectem no médio e longo prazo. Sem escândalo. (…)

Quanto à morte de doentes devida a fins-de-semana sem determinada especialidade, a responsabilidade também é rastreável. As escalas de urgência foram assinadas por directores de serviço e de urgência, foram sancionadas por directores clínicos, que por sua vez integram direcções do hospital com o conselho de administração, o qual reporta à Administração Regional de Saúde. Também se pode ver quem protestou, reclamou, denunciou, por vias internas ou externas. Porque há quem tenha muito “respeitinho” e há quem não tenha. Como escreveu Ana Arendt, a obediência também é uma responsabilidade. (…)

Os números falam por si. Em Maio de 2015 estavam sem médico de família atribuído 126.152 utentes na Região Norte, 150.757 no Centro, 799.006 em Lisboa e Vale do Tejo, 42.579 no Alentejo, 114,742 no Algarve. Total: 1.233.236. Se considerarmos que um médico de família deve ter entre 1.500 e 1.800 utentes, façam-se contas. E contratos. Percebe-se que vão ter que se hierarquizar prioridades e estabelecer fases, agrupamento a agrupamento. Mas têm que ser feitas. E o custo das urgências hospitalares irá compensar, diminuindo.

De acordo com o Sindicato dos Enfermeiros faltam 25 mil enfermeiros no nosso país. A presença de enfermeiros nos cuidados na comunidade diminui as vindas ao Centro de Saúde e melhora a condição das doenças crónicas; os enfermeiros suficientes e sem estarem exaustos na enfermaria diminuem as infecções hospitalares e há estudos que avançam uma diminuição em 7 por cento da taxa de mortalidade. É necessário trazê-los de volta dos países para onde tiveram que emigrar. A conta dos contratos salda-se a curto prazo com os benefícios económicos para o SNS. Tal como é necessário não deixar fugir alguns dos melhores especialistas médicos para os serviços privados, por razões puramente financeiras.

Tudo isto é consequência dos cortes feitos no SNS e que são objectivos. De 2005 para 2010 o orçamento para a Saúde subiu de 5.834 milhões para 8.698 milhões; de 2012 para 2015 desceu de 9.694 milhões para 7.402. Num país que é um dos países da Europa com menos custos per capita na Saúde e em que há mais comparticipação que “sai do bolso” dos cidadãos, onde é que foram cortar estes milhões? Antes de tudo no pessoal, em número, em salários e em pagamento de horas extraordinárias. No Ministério da Saúde, entre Dezembro 2011 e 2015 o pessoal da Saúde foi reduzido em 11,2% em número. Em orçamento muito mais. As mortes mais visíveis estão aí para pagar a factura.

Mas as doenças e as mortes invisíveis, as ocultas, essas não aparecerão nos jornais e estender-se-ão por médio e longo prazo. Com um quarto da população na zona da pobreza, não se morre de fome, mas adoece-se por carências.

A falta de nutrientes marca as crianças e a sua aprendizagem. As infecções respiratórias dos adultos foram mais frequentes. Os tratamentos dentários e oftalmológicos não foram feitos. A falta de auto-estima, a depressão e os pensamentos suicidas são uma mancha de óleo. Esta quietude da população pode aliás explicar que 62% tenham votado à esquerda e possibilitado a solução alternativa mais surpreendente da Europa, sem ser precedida de movimento de massas. E que agora se fale de esperança, baixinho e com cuidado, não vão os deuses acordar.» 
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