21.5.16

Mas que raio é que têm contra o papel?



José Pacheco Pereira no Público de hoje: 

«Ele [António Costa] quer acabar com o papel, acabar com as impressoras, deixar uma solitária impressora em cada repartição (e uma gloriosa fila de gente à espera da certidão…), e poupar, diz ele, trinta milhões de euros. Nosso Senhor Santo Cristo, o homem é um perigo público e não sabe o que está a dizer, porque, que o possa fazer, é ainda menos provável do que ver uma vaca voar. Vou inscrever-me como lobista da Portucel e da HP, e explicar os perigos de uma sociedade sem papel e pior ainda de um estado sem papel, onde circulam apenas bits e bytes. Em 2016, em Portugal e não numa utopia tecnológica. (…)

Preciso, em Portugal e em 2016, que haja papel em vários sítios e usos, e a corrida ao mundo sem papel é perigosa e leviana, sem ser precedida de outro tipo de obrigações e práticas que não existem ou quando existem ficam apenas… no papel. (…)

Parece absurdo o que estou a dizer, mas eu dou um exemplo concreto: o registo das comunicações, reuniões, responsabilizações, etc., nas negociações entre o governo português e a troika de 2011 a 2015. Quem propôs o quê, quem disse o quê, quem decidiu o quê. Começa por não ser líquido o que devia estar registado ou não e por quem. Havia actas das reuniões? Em que formato? Eram os documentos numerados e datados de modo a perceber-se o que pode faltar? Como eram certificados, quem os assinava e sob que forma? Onde estão depositados, em Bruxelas, em Washington, num computador do governo, ou em computadores dos participantes, sabendo-se como se sabe que havia alguma promiscuidade no uso dos computadores pessoais? Este registo oficial incluiu o correio electrónico oficial ou as comunicações privadas? Como é que se define a diferença entre o que é público e o que é privado para efeitos de registo obrigatório? Há registo dos telefonemas feitos e uma síntese desses telefonemas como é suposto existir, por exemplo, nas comunicações diplomáticas? (…)

Eu, se fosse Ministro das Finanças e não concordasse com uma medida que a troika me impusesse, gostaria que tudo isso ficasse em acta, lida e assinada “nos termos da lei”. Parece anacrónico, mas não é. Do mesmo modo que muitos tribunais em vários países não aceitam como prova fotografias digitais.

O que se passa é que as pessoas se embasbacam com as novas tecnologias e se esquecem que elas podem ser particularmente úteis se forem combinadas com outras mais velhas tecnologias. Mas não, quer-se ser moderno e tudo para a frente! E o que se faz, é por deslumbramento e sem os cuidados necessários, e pode custar-nos muito mais do que os 30 milhões de euros.

O resultado é tornar o escrutínio da vida pública mais difícil e gerar outros efeitos perversos sobre a privacidade das pessoas (como acontece com as facturas no fisco, também com um e- no início) ou dificultar-lhes corrigir erros da administração porque qualquer funcionário vai achar que o registo electrónico é a “verdade”, mesmo que incorpore um erro que se desloca de uma base de dados para outra.

Mantenham lá uma parte das coisas em papel, e adaptem as regras pouco a pouco ao predomínio do registo electrónico. Sem pressa. Mesmo nos EUA não tem sido fácil, quanto mais em Portugal. Mas é típico querer-se correr mais depressa do que as pernas, e também é normal que quem governa dê pouca importância ao controlo dos cidadãos sobre o estado, a governação e administração.

Já permitimos ao Estado, quase sem se dar por ela, coisas demais, saber demais sobre cada um de nós, escapar ao controlo dos cidadãos. Convinha não facilitar.» 
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