10.9.16

O uso do historicismo para justificar o «ajustamento»



José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«É cada vez mais comum a utilização de argumentos de carácter histórico para justificar o “não há alternativa” do presente, ou seja a política do “ajustamento”. Todas as semanas eles são repetidos em comentários políticos, descrevendo um país preso nos atavismos de uma história multissecular, que o amarra no seu atraso e que explica a resistência às “reformas”. Estes argumentos funcionam como um diagnóstico que aponta os “maus” e os “bons”, os que fazem parte do Portugal imobilista e os que o querem a “desenvolver-se”. É também uma espécie de ”luta de classes” com outro nome, como é óbvio, e com outras “classes”. (…)

Na verdade, não se trata de história mas de historicismo, e de mau historicismo. São argumentos instrumentais para a luta política dos dias de hoje, não têm valor como interpretação histórica, quando muito são manifestos políticos de qualidade variada. Para além desse papel na luta política actual, que justifica ser discutida de per si, eles tem o efeito nefasto de divulgar uma espécie de história fast food, simplificada ao limite, e que depois impregna argumentários que se caracterizam exactamente por iludir a história, ou melhor o tempo histórico como mudança. São argumentos conservadores, destinados a impor às democracias uma noção da história que não depende da vontade e da escolha humana no presente, e que demoniza sempre o presente ou em nome de um passado atávico, ou de um futuro pré-escrito. O seu papel é condicionar as escolhas numa democracia a uma interpretação monolítica dos “males” do país e legitimar políticas no presente. (…)

No caso actual, dizem-nos que o único meio de sair deste passado que nos aprisiona é uma purga nacional, uma espécie de acto punitivo e doloroso, que nos últimos anos se chamou de “ajustamento”. O “ajustamento” destinava-se a fazer voltar o estado, o povo, as elites a um estado natural de “pobreza”, que é o que é Portugal, um país “pobre”, e que foi “desonrado” pelas suas elites, que criaram uma riqueza artificial para o seu próprio usufruto, garantindo assim que, “vivendo acima das suas posses”, o país permanecesse “estagnado”.(…) Não por acaso teria que ser um processo longo, de décadas, e não poderia ser afectado pelas escolhas eleitorais, que estragariam tudo, como parece que estragaram. Tinha uma componente punitiva do “mal” e de abertura de oportunidades para os “bons”. Era e é um caminho tendencialmente autoritário, para pôr na ordem os conflitos sociais. (…)

As elites são hoje descritas em termos de “interesses corporativos” (curiosa a utilização da palavra) e incluem a elite política (principalmente as dos partidos de esquerda e no limite a do PSD da “meia branca”, ou seja o de baixo, porque o de cima faz parte dos “bons”), os sindicatos e os funcionários públicos e os empresários do “sistema”, ou seja aqueles que não se reciclaram de acompanhantes da corte de Sócrates, para Passos Coelho, que aliás são poucos. Aquilo que em Portugal são os grandes interesses económicos, aquilo a que Portas erradamente chamava o “velho dinheiro”, na verdade incluindo os Espírito Santos (e o “PSD em que me revejo, o de Ângelo Correia”, como uma vez disse Portas), esses pelos vistos não fazem parte da elite malfazeja, o que os poria ao lado da CGTP. Excluída dessa elite, está também o “círculo de confiança” do poder económico e político, dos jornalistas “bons” aos advogados de negócios, aos “empreendedores” do Compromisso Portugal, ou seja, essa elite acaba por ser nos dias de hoje o PS, o PCP, o BE, os malvados críticos de Passos Coelho no PSD, a CGTP, os professores da FENPROF, os funcionários públicos e os reformados e pensionistas. E os seus antepassados históricos, os revolucionários liberais, os setembristas, os rotativos, os republicanos, a carbonária e a “formiga branca”, o Buíça e o Costa, a oposição pró-comunista à ditadura (e não era quase toda?), os esquerdistas de 68, os capitães de Abril, e os políticos da democracia acabando no “monhé”.

Estão a ver para que serve esta “história”? Percebe-se, não é verdade?» 
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