21.1.17

Trump, como nunca o vimos (quer dizer: como presidente dos Estados Unidos)



José Vítor Malheiros foi «dispensado» do Público, mas tem as redes sociais à sua disposição. Transcrevo o excelente texto que divulgou no Facebook:

«Nos últimos anos, quase sempre a propósito do aparecimento e do sucesso de certas organizações políticas nacionalistas na Europa, temos falado muito de populismo, tentando clarificar o conceito, debatendo o seu rigor ou ambiguidade, discutindo a correcção e utilidade da sua aplicação a esta ou àquela organização, a este ou àquele discurso, a esta ou àquela prática política.

O discurso de tomada de posse (não, não se diz inauguração) do presidente Donald Trump (custa a dizer, mas é o que o homem é) contribui para esclarecer a discussão porque é um perfeito exemplo de discurso populista, a exemplo de mais uns quantos feitos maioritariamente nos anos 30 do século passado.

A marca de água do populismo é a ideia de que a soberania reside no povo (até aqui estamos todos de acordo) mas que a vontade popular não se pode exprimir correctamente através dos sistemas de representação e de mediação da democracia representativa, pois estes foram capturados por elites que os deturparam, desviaram da sua função e os usam para seu benefício pessoal.

O discurso populista não avança propostas para melhorar a democracia e para a libertar das mãos dos grupos que capturaram os mecanismos de expressão da vontade popular e de governação democrática, mas apresenta sempre um grupo, um líder, como capaz de interpretar os desejos e sentimentos do povo e de os transformar em acção política de forma inorgânica.

A entidade “povo” (com este ou outro nome) aparece sempre no discurso populista como algo de puro e homogéneo, sem divisões ou interesses divergentes no seu seio, sem conflitos internos, e todos os problemas e divergências que aparecem na sociedade são atribuídos a inimigos externos, “outros” que não o povo. O populismo identifica em geral as elites “afastadas do povo” (os políticos, os media, os intelectuais, os artistas) como a causa de todos os problemas e obstáculos a eliminar para a “purificação” do sistema - usando com frequência um léxico higienista - e exige ainda inimigos externos que constituem o maior perigo, para cujo combate devem ser mobilizadas todas as forças.

A existência destes inimigos internos e externos justifica, por sua vez, por razões de eficácia, a concentração de poder nas mãos do líder e dos seus próximos, intérpretes esclarecidos da vontade do povo.

Não foi por acaso que não houve, no discurso de Trump, uma referência aos partidos, ao Congresso, a quaisquer outras organizações nacionais ou internacionais. O discurso não pretendia avalizar qualquer outra forma de interpretação da vontade popular que não fosse simplesmente o instinto do líder, não pretendia promover qualquer forma de exercício do poder que tivesse a mínima característica institucional ou fosse sequer escrutinável.
O discurso populista apresenta sempre um sonho de grandeza que não tem de ser racional ou sequer fazer sentido (“Make America Great Again”) sobre um pano de fundo de agravo e de despeito (a visão sinistra de uma América destruída pelo crime, pelo desemprego e pela droga devido à corrupção de Washington).

O sonho com que os populistas acenam à multidão é um sonho de vingança, to get even, a possibilidade de mostrar às elites internas e aos estrangeiros quem é que vai mandar daqui para a frente.

Logo na primeira linha do seu discurso, Trump começou a cumprir simbolicamente a sua promessa de Make America Great Again: ao agradecer a sua eleição não apenas aos seus “fellow Americans” mas também ao “people of the world”: “thank you!” Trump não é presidente do mundo mas age e fala como se fosse, tal como quando diz que os mexicanos vão pagar o muro que quer construir na fronteira. “We will determine the course of America and the world for many, many years to come”. Mil anos? Que Trump faça este discurso anti-elites e seja acreditado por tantos pode parecer estranho, atendendo ao seu lugar no núcleo da mais poderosa e perniciosa elite de negócios que os Estados Unidos já conheceram, mas a magia do discurso populista é essa: a facilidade com que seduz as pessoas que têm medo do mundo à sua volta, mesmo quando não possui pontos de contacto com a realidade.

O populismo é uma prática política mas é, simultaneamente, contra a política, como Salazar o era: quer afastar o povo da infecção da política. O ataque à “política” e aos “políticos" ("Washington" em código) teve no discurso de tomada de posse uma relevância central, tendo sido glosado várias vezes, de uma forma espantosamente agressiva: “For too long, a small group in our nation’s Capital has reaped the rewards of government while the people have borne the cost. Washington flourished – but the people did not share in its wealth. Politicians prospered – but the jobs left, and the factories closed. The establishment protected itself, but not the citizens of our country. Their victories have not been your victories; their triumphs have not been your triumphs; and while they celebrated in our nation’s capital, there was little to celebrate for struggling families all across our land.”

Mas não é apenas a agressividade que é inusitada neste discurso de tomada de posse que mais parece um discurso de campanha, cheio de animosidade e sem uma palavra em defesa do diálogo, da cooperação, da negociação, um discurso cheio de inimigos e sem parceiros. É a “solução” apresentada para este cenário (em parte real, diga-se em abono da verdade) de democracia em perigo. Reforma de instituições? Debate nacional? Novas leis? Justiça expedita? Códigos de ética? Não. Apenas a presença mágica do novo presidente: “That all changes – starting right here, and right now.”

E há mesmo uma sugestão de que os últimos anos terão sido tempos de opressão: “January 20, 2017, will be remembered as the day the people became the rulers of this nation again.”

Que país de pesadelo é este que Trump retrata? (“mothers and children trapped in poverty in our inner cities; rusted-out factories scattered like tombstones across the landscape of our nation; an education system, flush with cash, but which leaves our young and beautiful students deprived of all knowledge; and the crime and the gangs and the drugs”...)

É um país em estado de necessidade, humilhado e espoliado pelo estrangeiro. Um país que lembra a Alemanha depois de Versailles. Um país submetido a uma “carnificina” às mãos das outras nações, enriquecidas à custa dos sofrimentos dos americanos: “For many decades, we’ve enriched foreign industry at the expense of American industry; subsidized the armies of other countries while allowing for the very sad depletion of our military; we’ve defended other nations’ borders while refusing to defend our own; and spent trillions and trillions of dollars overseas while America’s infrastructure has fallen into disrepair and decay. We’ve made other countries rich while the wealth, strength, and confidence of our country has dissipated over the horizon. One by one, the factories shuttered and left our shores, with not even a thought about the millions and millions of American workers that were left behind. The wealth of our middle class has been ripped from their homes and then redistributed all across the world.”

Não parece mesmo que, depois de uma tirada destas, poderia vir uma declaração de guerra? Ainda não é, mas Trump avisa que quer que o seu aviso seja ouvido “in every foreign capital, and in every hall of power”: “America first, America first”. Assim, duas vezes, como um grito de guerra.

Trump não sabe muitas coisas. Não percebe que o seu “America First” se pode voltar contra os EUA e, por isso, poderá de facto tentar pô-lo em prática das formas mais básicas que possamos imaginar. Mas a sua inexperiência, ignorância e leviandade não nos devem deixar com um sorriso de superioridade nos lábios, como vimos ontem em tantos rostos de tantos jornalistas e tantos comentadores. O homem pode ser idiota segundo os nossos critérios, mas é mesmo o presidente dos Estados Unidos, o mais rico e mais poderoso país do mundo. E amanhã, quando acordarmos, vai continuar a ser. Não será com escárnio e maldizer que o vamos esconjurar.» 
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