19.8.17

A justiça em Portugal é “mais dura” para os negros



Joana Gorjão Henriques divulga, no Público de hoje, um longo e muito importante texto sobre discrepâncias entre brancos e negros no exercício da justiça em Portugal. Alguns excertos ajudam a perceber a gravidade do problema.

«Há uma marca no rosto de Diogo do tempo em que ele esteve na prisão. Livre há apenas uns meses, prefere não explicá-la. Com voz pausada, Diogo lembra a vida que o conduziu para trás das grades durante três anos e seis meses, justamente numa altura em que até tinha começado a trabalhar e em que não cometia crimes. Cumpriu a pena praticamente até ao fim, mas saiu do Estabelecimento Prisional de Leiria sem perspectivas. (…)

Sempre viveu com autorização de residência permanente. Quando saiu da cadeia em Setembro, ficou em situação ilegal. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) cancelou a sua residência. “Nasci cá. Já cumpri a minha pena, já fiz porcaria, mas já paguei. Estou a trabalhar. Exigem mais porquê? Se não tiver trabalho o que faço?” Tem a sensação de que, ao encurrala-lo assim, o sistema pressiona-o para que vá de novo para a cadeia.

Diogo foi um dos jovens dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) que engrossou as estatísticas prisionais. Um em cada 73 cidadãos dos PALOP com mais de 16 anos em Portugal está preso. É uma proporção dez vezes maior do que a que existe para os cidadãos portugueses — onde um em cada 736 cidadãos na mesma faixa etária está detido. O número sobe para 1 em 48 quando se trata de cabo-verdianos, a comunidade africana mais expressiva em Portugal: ou seja, 15 vezes mais.

Mais um dado: se tivermos apenas em conta os homens, que constituem, na verdade, o grosso da população prisional, concluímos que um em cada 37 cidadãos dos PALOP está preso versus um em cada 367 homens portugueses (e uma em cada 1071 mulheres dos PALOP versus uma em cada 6732 portuguesas). (…)

Estas estatísticas podem ter várias interpretações, e também ser analisadas do ponto de vista racial, já que a maioria da população destes países é negra — por não existirem dados étnico-raciais em Portugal, há sociólogos que usam a variável imigração dos PALOP como método de aproximação à questão racial. Os resultados seriam diferentes — e, acreditam os especialistas contactados pelo PÚBLICO, a desproporção aumentaria — se houvesse dados sobre portugueses negros, que aqui aparecem diluídos no grupo de portugueses. (…)

O procurador Alípio Ribeiro, que já esteve na direcção nacional da Polícia Judiciária, não tem dúvidas: as taxas de encarceramento apuradas pelo PÚBLICO mostram uma “diferença abismal” entre presos dos PALOP e portugueses. E confirmam uma intuição que tinha, a de que “há uma justiça para portugueses e uma justiça para estrangeiros, uma justiça para brancos e uma justiça para negros”.

O procurador, também inspector, defende que “não se pode tirar destes números a conclusão de que os PALOP são mais criminosos”. Pelo contrário: “O que posso dizer é que o sistema permite isto. Parece-me que há uma pro-actividade em relação a estes indivíduos.”

A discriminação racial na justiça traduz-se em outros aspectos, afirma. A sua percepção é a de que “é preciso menos provas para incriminar um negro”. Porque “há uma desconfiança inicial em relação ao negro que não há em relação ao branco”. Em geral, afirma, a justiça é “mais dura em relação aos negros”. (…)

As discrepâncias também se encontram nas condenações pelos mesmos tipos de crimes, com clara desvantagem para africanos. As proporções são estas: há nove vezes mais condenados dos PALOP por roubo e violência do que portugueses; oito vezes mais por resistência e coacção sobre funcionário; seis vezes mais por desobediência. Estes dois últimos crimes implicam interacção com a polícia. “Aqui o anacronismo ainda é mais visível”, continua Alípio Ribeiro. (…)

Manuel, nome fictício, não tem dúvidas. Depois de cumprir a sua pena, sabe que “a população” da sua cor “está em massa nas prisões”.

Com quase 40 anos, e a viver em Portugal há 17, na linha de Sintra, é um angolano pai de uma filha de sete anos, portuguesa. Foi Manuel quem se entregou à polícia por crimes de burla e falsificação. Mas acredita que o facto de ser negro influenciou o seu percurso: não contou com atenuante na pena aplicada, de seis anos e sete meses, cumpriu-a praticamente até ao fim e sem conseguir gozar de qualquer precária, mesmo tendo sido um “recluso exemplar”.

“Encontramos o racismo mais puro dentro do sistema prisional”, afirma. “Pedi uma saída. Sendo recluso primário, com um quarto da pena cumprida, por ser desta cor não me deram.”

Quando entram na prisão, os reclusos estrangeiros perdem a autorização de residência e não a conseguem renovar. “O juiz dizia que não me dava a precária porque os meus documentos estão caducados. Se quem me privou da liberdade foi a justiça, a justiça é que tem que ver se eu estou preparado para a precária, não é o SEF. Onde é que estão os direitos humanos?”

Apesar da recomendação da ONU para que o faça, e de insistência de associações de afrodescendentes, em Portugal não há recolha oficial de dados étnico-raciais, por isso alguns cientistas sociais usam dados das populações PALOP. É uma limitação, até pela associação que assim se cria entre negros e imigrantes, mas também uma forma de aproximação. O retrato da desigualdade racial só seria feito se a estes dados conseguíssemos acrescentar os portugueses negros.»
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