5.12.17

Ai, o afeto! (manual de governança para frios e antipáticos)



«Coisa mais linda e na moda, o afeto, aos borbotões, marca distintiva de "lifestyle" na vida pública e na vida empresarial. O afeto na política, o afeto na gestão, o afeto em todo o lado.

Avatar da modernidade de superfície, da crendice bem-intencionada ou da hipocrisia com estrela Michelin, o afeto está para a gestão e para a política como as espumas e as reduções estão para a culinária: enchem muito o olho, mas alimentam pouco. Mas isso não importa, desde que se possa exibir o afeto, e que haja quem - tido por menos afetuoso, ou pior - trate de ir metendo nas panelas o que enche as barrigas. Até porque, já se sabe, o afeto e outras luxuosas metafísicas acabam onde a fome começa a roer o estômago. Azeda, esta crónica? Escrita carente de afeto? Nada disso. Apenas estou a ficar à beira da "overdose" com a retórica estupefaciente do afeto e com os concursos do dito cujo na vida pública e nas empresas, em jeito de campeonato de "misses" talhadas para acariciar e salvar os vulneráveis do mundo. Mas - oiço dizer, e confirmo - as pessoas gostam e precisam, os afetuosos vencem na popularidade, o afeto é argamassa e cultura nos modernos coletivos. Sim, senhor, então seja, cada qual come o que quer (e pode), e o que lhe serve ao desenho do estômago. Por mim, dispenso e arrenego. O afeto é muitíssimo preciso, importante e bom dentro de portas, isto é, na casa e na vida de cada um, consigo e com os seus. O resto - perdoem-me os que realmente creem nisso, que serão alguns, embora duvide de que seja a maioria dos pastores da afetuosidade empresarial e pública - é conversa de chacha, retórica de magazine ou dominical, que não serve para nada e até leva a coisas perniciosas.

Não serve para nada, porque a vida empresarial e a vida pública não são espaços para afetos, são sim lugares de criar, garantir e melhorar condições de vida, de resolver problemas, de equilibrar dissensos e conflitos, e outros "et ceteras" que amiúde custam, doem e são antipáticos. Muito lindo o afeto, mas não é para aí chamado. Verdade e respeito, isso sim, mas tais conceitos e práticas não têm nada que ver com afeto, e já vi campeões deste a desconhecer aqueles. Já vi, já, com estes olhos que tanto discursinho do afeto há de comer. Verdade e respeito, meus senhores, isso é que é preciso e exigível, e é bem mais difícil e duro do que a poesia floral do afeto, na qual leite rima com azeite e flor com amor. E a conversa afetiva leva a coisas perniciosas, também, duas pelo menos me ocorrem já. Por um lado, distrai do que realmente importa na vida empresarial e na vida pública, e afasta e adia o que muitas vezes dói e custa. Por outro lado, a conversinha sedutora do afeto serve, aqui e ali, para amparar ou esconder mediocridades, inércias, conformismos ou passadismos (e por ora chega). Pois é.

Está visto que eu não vou lá nos prémios para Miss Simpatia ou Fotogenia, fico nos últimos lugares. Estou conformado, e lamento se desiludo. Antes de dar a mão carinhosa, e porventura até um beijinho fotogénico nas cabeças penugentas ou nas testas enrugadas, prefiro que não ostentem protuberantes barrigas mal nutridas ou que os ossos não lhes furem a pele. Parafraseando o que diria o meu querido (e muito afetuoso, mas de verdade) avô Ramiro sobre almocinhos à base de peixe, o afeto não puxa carroças. Só puxa às vezes a carroça dos campeões do afeto, mas isso já são contas de outros rosários. Lindos, sem dúvida. Bem-hajam. E desculpem qualquer coisinha.»

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