9.12.17

Dica (679)



Why Jerusalem is not the capital of Israel (Zena Tahhan e Farah Najjar)
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Memórias



A minha mais do que querida Universidade, hoje Katholieke Universiteit Leuven, mas até 1970 também Université Catholique de Louvain, foi fundada em 9 de dezembro de 1425.

Leio que tem actualmente 56.000 estudantes, já não se ensina em francês como no meu tempo, mas de uma coisa não duvido: sem lá ter passado quase seis anos da minha vida, podia ser hoje não sei exactamente o quê, mas não seria certamente o que sou.
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Sondagens? Assim vamos

O deslumbramento faz bem à saúde



«Como todas as paixões, o deslumbramento faz bem à saúde. Anima a circulação, eleva o espírito, compõe a alma. Tudo coisas boas. No entanto, há um problema: o deslumbramento, curativo de tantas maleitas, também tolda a visão, pois o ser amado ocupa todo o universo, a sua voz enfeitiça os passarinhos, os seus passos moldam o tempo. Para os comentadores, a doença dá mais grave: como alguém lembrava, deixam de ver o que está à frente do seu nariz. Creio que é o que se passa com o deslumbramento Centeno e o maravilhamento europeu, agora renascido, logo que há alguma coisinha para oferecer, um presidente simpático no Eurogrupo.

Fazia falta, o défice tem sido tremendo nos últimos anos, com a crise dos refugiados e o acordo com a Turquia, os muros no centro da Europa, o Brexit, as eleições desbaratadas, a incapacidade de relançamento económico, a bolha financeira, a teimosia das “reformas estruturais” para baixar salários, tudo retratos da desagregação europeia. Agora, a pergunta é: e Centeno que pode? Desconfio que ele próprio e o primeiro-ministro terão resposta mais prudente e que sabem que os maravilhadores se estão a esticar.

Um bom critério é olharmos para o que está à frente do nosso nariz, os sinais importantes desta semana na União. O primeiro é que foi votado o Orçamento europeu no Parlamento. Nunca um Orçamento tinha sido aprovado nestas condições: menos de metade dos votos a favor (295, havendo 154 contra e 197 abstenções) e pela primeira vez os socialistas não o apoiaram, rompendo uma tradição de sempre (aprovaram no Conselho e abstiveram-se no Parlamento, a política tem razões que a razão desconhece). As críticas são substanciais: o Orçamento é em termos reais menor do que nos anos anteriores, continuando uma trajectória de desmantelamento das políticas sociais e económicas comuns. Mais, corta a ajuda ao desenvolvimento, desguarnece a Europa na resposta aos refugiados, não responde nem aos riscos nem à realidade. O Orçamento não vê a Europa à frente do nariz, para usar a mesma metáfora. Os maravilhadores podiam começar a falar dos factos.

Mas talvez o segundo sinal seja ainda mais expressivo, porque demonstra o desarranjo das instituições, ou o cansaço e a desorientação dos mandantes. A Comissão Europeia apresentou as suas propostas para a “reforma do euro” e outros grandes desígnios. Já é pelo menos a terceira versão: houve os cinco cenários para proporem “a Europa a duas velocidades”, houve depois um sexto cenário que Juncker desencantou, há agora este mapa. Como era de esperar, ocupa-se mais do poder da própria Comissão do que da Europa: quer que o tal ministro das finanças europeu seja o comissário da pasta e vice-presidente da Comissão. Lá sairia Centeno a meio do mandato, reduzido a um funcionário de transição. Depois, tudo o resto é mercearia: não há subsídio de desemprego europeu, não há transferências, não se passa nada.

Teresa de Sousa, europeísta encartada, constatou a óbvia “indiferença” com que os governos receberam as propostas da Comissão, entendendo-as como “ruído desnecessário”, ou até como desespero na defesa dos seus poderes. Assis, que nem por isso deixou de pedir a Costa que aproveitasse o embalo para uma “clarificação” (“clarificação” é o termo para eleições antecipadas por quem tem pudor de o dizer), também deitou água na fervura. Eles, que olham para a frente do nariz, notam que o que se está a passar é o empastelamento da decisão, exactamente como nos últimos anos.

Será assim? Cuidado. O chamado Tratado Orçamental, uma manigância de 2012 para consagrar as normas ajustativas e recessivas, entrará na ordem jurídica europeia pela porta do cavalo dentro em pouco. A máquina move-se. E não é uma maravilha, não é Centeno quem comanda, é a nossa velha conhecida, a austeridade.»

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8.12.17

Dica (678)




«Israel nunca se viu realmente confrontado com a ilegalidade do que tem feito, de forma crescente, desde 1967. Os Estados Unidos nunca foram confrontados com o facto de serem árbitros e ao mesmo tempo principais aliados de uma das partes. Sempre houve aqui um conflito de interesses e toda a gente assobiou para o ar.»
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Um abraço do urso



Daniel Oliveira no Expresso de 08.12.2017:

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Porque não? Já agora...

Jerusalém



«O meu bairro inovou sempre. Ainda Mary Quant hesitava se subia as saias um palmo ou palmo e meio e já as minhas vizinhas lavadeiras usavam minissaia (não sei como lhe chamavam, talvez só saia). Mas foi Quant quem acabou por ser condecorada Dame Commander (cavaleira, se quiserem) da Ordem do Império Britânico, por mérito industrial.

E foi no campo de areia vermelha da missão de São Paulo, também no meu bairro, que vi jogar pela primeira vez o Jacinto João, o JJ. Hoje, se eu o quiser voltar a ver, tenho de ir ao Estádio do Bonfim, em Setúbal, onde o JJ está em estátua. Ele adorava fintar tudo, até bandeirola de canto. Agora está numa rotunda, ao lado de um candeeiro, deve driblá-lo de madrugada quando ninguém está a olhar. Como vos dizia, no meu bairro tudo já tinha acontecido antes de os outros irem dar conta e se maravilharem. Ah, se o meu bairro tivesse sabido o que eram patentes, era hoje rico!

Claro que não vou revelar o nome do meu bairro nem o da minha cidade - não sou gabarolas. Mas tínhamos tudo e antes de todos. E nem tudo era gente decente, havia um garoto que não o era, mas mesmo esse era uma figura extraordinária. Chamávamos-lhe Kwata-Kwata, nome que vinha de guerra suja, a pior de todas, a de apanhar gente para a vender. Para vocês entenderem melhor, eu podia chamar-lhe Agarra-Agarra, mas isto passou-se há mais de meio século e nessa altura eu e o meu bairro ainda não sabíamos que tínhamos de vos fazer traduções. Em todo o caso, seria uma má tradução, Agarra-Agarra daria a ideia do assim batizado chegar-se à frente, faria supor que ele usava alguma coragem de vez em quando. Ora, o Kwata-Kwata do meu bairro açulava, impelia os outros para a ação, para a luta, mas, ele, está quieto!

Podia ser com cães, dois que só mostravam os dentes e rosnavam, coisa de marcar terreno, mais nada. Gente de bem dava dois berros, afastava-os e até lhes atirava um balde de água para os acalmar. Mas se o Kwata-Kwata aparecia, era certo que ele se punha também a rosnar - sempre com as suas canelas suficientemente longe para não serem abocanhadas pelo cão mais de cabeça perdida. "Ksss... Ksss..", sibilava ele para amalucar os combatentes. E se fossem canitos, daqueles que nem a ele faziam medo, o Kwata-Kwata empurrava o mais forte para despedaçar o outro.


7.12.17

Petit à petit, l'oiseau fait son nid


Assessor histórico do PSD em Belém

Zeca Mendonça, «o histórico assessor de imprensa do PSD que acompanhou todos os líderes, vai mudar-se para Belém. Marcelo chamou-o à sua assessoria de imprensa».
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Ary dos Santos nasceu num 7 de Dezembro



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Tudo o que dispensaria saber sobre o Eurogrupo



Ricardo Araújo Pereira na Visão de hoje:


Na íntegra AQUI.
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O cisne feio



«Mário Centeno é o novo presidente do Eurogrupo. Está confirmado, o tempo anda tão avariado que tivemos um primeiro de Abril em Dezembro.

O ministro das Finanças mais perigoso da Europa do euro, apoiado pelas forçadas danadas de esquerda, temido pela sua loucura, no que diz respeito à austeridade, fica a mandar no Eurogrupo. O euro está nas mãos da geringonça! O Eurogrupo, finalmente, rendeu-se aos copos e às mulheres. - Não podes vencê-los, junta-te a eles - terá pensado Merkel depois de uma garrafa de Gatão.

Também pode estar a acontecer o contrário. O Eurogrupo, vendo que uma das ovelhas negras do Sul estava a ficar lãzuda, com ideias diferentes do que a UE defende, decidiu trazê-la para a frente do rebanho para a arrebanhar. Isto pode ser perigoso. Parece-me essencial que Mário Centeno entre visivelmente bêbedo na primeira reunião a 13 de Janeiro para marcar logo a nossa posição.

O nosso ministro das Finanças tem de mostrar aos seus colegas que era ele que fazia festas em Harvard quando todos tentavam dormir. Que foi ele que desligou o quadro eléctrico só para um dia não terem aulas, que enfiava rãs nas calças dos colegas e que era conhecido por ter sempre erva escondida nos calhamaços de Economia. Se Centeno começa a relaxar, passa de ter ar de tresloucado para ter ar de totó. A linha é muita fina e convém não dar muita confiança àquela gente pardacenta do Eurogrupo.

Convém lembrar que o nosso ministro das Finanças chamou míope ao Eurogrupo. É assim mesmo, esse é o caminho. Agora que já é o chefe, devia dizer: - O Eurogrupo é uma caixa-de-óculos. Um bocadinho de "bullying" para verem quem manda e para perceberem ao que vamos.

Acho que tudo isto começou com a saída de Portugal dos défices excessivos. Pessoalmente, nunca me senti bem por estar fora do procedimento por défices excessivos. Acho que não cumprir o défice dava-nos mais estilo. Ser marrões e bons alunos é muito pouco sexy. Não cumprir o défice é de quem anda de moto sem capacete e faz cavalinhos e usa blusão de cabedal. O ar de que não respeita certas regras dá outra pinta.

Centeno tem de levar a ribaldaria para o Eurogrupo ou eles tomam conta dele com as suas ideias chatas. Tenho receio de que deixem de vir tantos turistas para Portugal, se começa a constar que nós somos do género dos alemães. Quando é para ir viajar, escolho sempre os países com praia e défices excessivos. Presumo que deve ser onde há mais ribaldaria e menos gente chata.

Força, camarada Centeno!»

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6.12.17

António Costa versus Catarina Martins




Debate quinzenal, 06.12.2017. Um importante diálogo que fica para mais tarde recordar.
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Johnny Hallyday – menos um



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Marques Mendes



Confesso que comecei por achar que isto era forjado. Até ver que a autora (idónea, sei quem é, é minha amiga no Facebook), a «autentifica». Não tenho qualquer motivo para duvidar da sua palavra.
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Será possível curar o euro?



«Com a eleição de Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo as perguntas e inquietações relevantes multiplicam-se. Tanto Centeno como Costa têm sido claros na necessidade de impulsionar uma reforma do euro que permita conciliar disciplina nas finanças públicas com a criação de uma economia que não condene o Estado social à míngua e a juventude à precariedade e ao desemprego. Ao contrário do seu antecessor, Dijsselbloem, para quem a atual ordem do euro era sagrada e inamovível, tudo indica que Centeno percebe que o euro só se mantém a flutuar porque o BCE resolveu colocar entre parêntesis o artigo 127 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (que limita a ação do BCE ao combate à inflação) começando a fingir que é um banco central a sério, imitando as políticas de financiamento monetário da economia da Reserva Federal dos EUA. Não tenho quaisquer dúvidas sobre as competências teóricas de Centeno, nem sobre a sua capacidade de argumentar serenamente com os seus colegas (muitos deles ansiosos por alguém que não tenha medo da verdade) sobre novos caminhos a trilhar. O principal problema da saúde do euro não reside na teoria económica, mas naquilo a que Lutero chamava o lenho retorcido da condição humana. A ortodoxia da austeridade, de que o governo alemão tem sido o campeão, alimenta-se de um profundo elemento de irracionalidade. Fazendo uma analogia: alguém acredita que será possível convencer Trump da seriedade das alterações climáticas com um bom manual de física básica? Do mesmo modo, tenho dúvidas de que o cartel da austeridade que está a sangrar os europeus seja demovido da sua funesta ideologia através de argumentos inteligentes. O carácter patológico da ideologia reside na sua total blindagem tanto à razão como às provas empíricas. Isso vale para Trump, em relação ao clima, como para Schäuble em relação à austeridade, como para os saudosistas da URSS, que continuam amarrados a um mito que nunca existiu.

Os donos da atual ortodoxia do euro precisariam de ser tratados com técnicas terapêuticas típicas da psicanálise. Teriam de ser levados, suavemente, ao momento traumático da discussão franco--alemã entre 1990 e 1997, onde se desenhou e consolidou o absurdo edifício de uma moeda que viola todas as regras da sã doutrina económica e toda a experiência histórica das uniões monetárias bem--sucedidas. Esses anos, entre o Tratado de Maastricht (1992) e o Pacto de Estabilidade e Crescimento (1997), marcam o recalcamento da verdade objetiva. Empurrada pela França para o euro, Berlim resolveu - entre o trauma da sua população pela perda do marco e a gestão de novas oportunidades para as suas elites - rasgar tudo o que se sabia sobre as reformas estruturais que permitem passar de moedas nacionais para uma moeda comum. Nesses anos, foram esquecidos os ensinamentos de Robert Mundell (1961), as lições do fracassado Plano Werner (1970), os sábios conselhos do Relatório MacDougall (1977) que considerava como requisito mínimo para uma maior integração europeia um orçamento comunitário entre 5% e 7% do PIB europeu (hoje o orçamento europeu corresponde ainda a um magro 1% do PIB agregado da UE). Nem o célebre Manifesto dos 62 economistas alemães (1992), acusando corretamente Maastricht de estar a construir a casa pelo telhando (a moeda antes da união política), foi poupado. O euro tornou-se a mais bizarra experiência histórica de uma união monetária de baixo custo: um condomínio onde se vive sem confiança, com escassa justiça, e onde o futuro é tema tabu. Boa sorte, Mário Centeno!»

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5.12.17

Monsieur de La Palisse não diria melhor



(Expresso diário 05.12.2017)
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Dica (677)




«A positive step in this direction is a Plan B declaration signed by representatives of Podemos, La France Insoumise, Die Linke, the Portuguese Left Bloc and others which states that, if the plan to transform the EU into an area of democratic cooperation and solidarity fails, then it would mean launching ‘a new system of European cooperation based on the restoration of economic, fiscal and monetary sovereignty, the protection of democracy and social rights and social justice… Fetishism of EU institutions or a specific currency cannot take precedence over the concrete interest of peoples’. Indeed, it cannot.»
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Sustos britânicos


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Eurogrupo: pode alguém ser quem não é?

Ai, o afeto! (manual de governança para frios e antipáticos)



«Coisa mais linda e na moda, o afeto, aos borbotões, marca distintiva de "lifestyle" na vida pública e na vida empresarial. O afeto na política, o afeto na gestão, o afeto em todo o lado.

Avatar da modernidade de superfície, da crendice bem-intencionada ou da hipocrisia com estrela Michelin, o afeto está para a gestão e para a política como as espumas e as reduções estão para a culinária: enchem muito o olho, mas alimentam pouco. Mas isso não importa, desde que se possa exibir o afeto, e que haja quem - tido por menos afetuoso, ou pior - trate de ir metendo nas panelas o que enche as barrigas. Até porque, já se sabe, o afeto e outras luxuosas metafísicas acabam onde a fome começa a roer o estômago. Azeda, esta crónica? Escrita carente de afeto? Nada disso. Apenas estou a ficar à beira da "overdose" com a retórica estupefaciente do afeto e com os concursos do dito cujo na vida pública e nas empresas, em jeito de campeonato de "misses" talhadas para acariciar e salvar os vulneráveis do mundo. Mas - oiço dizer, e confirmo - as pessoas gostam e precisam, os afetuosos vencem na popularidade, o afeto é argamassa e cultura nos modernos coletivos. Sim, senhor, então seja, cada qual come o que quer (e pode), e o que lhe serve ao desenho do estômago. Por mim, dispenso e arrenego. O afeto é muitíssimo preciso, importante e bom dentro de portas, isto é, na casa e na vida de cada um, consigo e com os seus. O resto - perdoem-me os que realmente creem nisso, que serão alguns, embora duvide de que seja a maioria dos pastores da afetuosidade empresarial e pública - é conversa de chacha, retórica de magazine ou dominical, que não serve para nada e até leva a coisas perniciosas.

Não serve para nada, porque a vida empresarial e a vida pública não são espaços para afetos, são sim lugares de criar, garantir e melhorar condições de vida, de resolver problemas, de equilibrar dissensos e conflitos, e outros "et ceteras" que amiúde custam, doem e são antipáticos. Muito lindo o afeto, mas não é para aí chamado. Verdade e respeito, isso sim, mas tais conceitos e práticas não têm nada que ver com afeto, e já vi campeões deste a desconhecer aqueles. Já vi, já, com estes olhos que tanto discursinho do afeto há de comer. Verdade e respeito, meus senhores, isso é que é preciso e exigível, e é bem mais difícil e duro do que a poesia floral do afeto, na qual leite rima com azeite e flor com amor. E a conversa afetiva leva a coisas perniciosas, também, duas pelo menos me ocorrem já. Por um lado, distrai do que realmente importa na vida empresarial e na vida pública, e afasta e adia o que muitas vezes dói e custa. Por outro lado, a conversinha sedutora do afeto serve, aqui e ali, para amparar ou esconder mediocridades, inércias, conformismos ou passadismos (e por ora chega). Pois é.

Está visto que eu não vou lá nos prémios para Miss Simpatia ou Fotogenia, fico nos últimos lugares. Estou conformado, e lamento se desiludo. Antes de dar a mão carinhosa, e porventura até um beijinho fotogénico nas cabeças penugentas ou nas testas enrugadas, prefiro que não ostentem protuberantes barrigas mal nutridas ou que os ossos não lhes furem a pele. Parafraseando o que diria o meu querido (e muito afetuoso, mas de verdade) avô Ramiro sobre almocinhos à base de peixe, o afeto não puxa carroças. Só puxa às vezes a carroça dos campeões do afeto, mas isso já são contas de outros rosários. Lindos, sem dúvida. Bem-hajam. E desculpem qualquer coisinha.»

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4.12.17

As mortes de Pedrógão e a privacidade

Ganhámos os Jogos Sem Fronteiras!



Daniel Oliveira no Expresso diário de 04.12.2017:

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Com dedicatória a Centeno



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04.12.1961 – A espectacular fuga de Caxias



Em 1961, oito presos políticos personificaram uma fuga do forte de Caxias, não menos espectacular do que a de Peniche, ocorrida quase dois anos antes, mas muito menos conhecida provavelmente por não envolver Álvaro Cunhal.

Derrubar um portão de um forte com um carro blindado, e fazê-lo depois de uma longa preparação que implicou que o seu principal intérprete tenha fingido «rachar», ou seja passar para o lado da polícia, para se movimentar à vontade e preparar todos os detalhes, nada tem de trivial e é digno de homenagem e admiração. Pertencerá para sempre ao nosso património – material ou imaterial, como se preferir, mas bem real e a ser preservado.

Descrição detalhada:


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Copos, mulheres e os adultos na sala



«Atenas, 3 de julho de 2015. A mais emblemática das praças da capital da Grécia foi-se enchendo de gente, ao ritmo do cair da noite e da música de intervenção que saía das colunas gigantes, capaz de acordar o mais adormecido dos Deuses na Acrópole. O palco, que podia receber naquela noite os Rolling Stones, estava guardado para duas rock stars, mas nenhuma delas se chamava Mick Jagger. A multidão gritava por Alexis Tsipras e por Yanis Varoufakis, o ministro motard das Finanças que ousou desafiar os colegas do Eurogrupo. Dois heróis nacionais que se propunham tirar a Grécia da bancarrota e, quem sabe, a mudar a política orçamental e económica da Europa.

Esgotado o diálogo político com Bruxelas, Tsipras decidiu esticar a corda e colocar a referendo o novo pacote de austeridade que o Eurogrupo queria impor ao país. Varoufakis, o patinho feio dos ministros das Finanças da zona euro, apareceu pouco depois. Fotografias, autógrafos e uma multidão em êxtase, que parecia tudo menos falida, gritava o nome dos dois políticos que tinham devolvido a esperança a um país que já não sabia o que isso era havia mais de cinco anos. Era o tudo ou nada. Ou a Grécia dizia "sim" ao novo pacote de austeridade e a Europa continuava a financiar um país falido ou dizia "não" e a saída da zona euro era uma forte possibilidade. No fundo, era quase como perguntar se queriam morrer da doença ou da cura.

O Eurogrupo era, à época, o centro do poder, controlado pela França e pela Alemanha. Varoufakis lutara, em vão e nem sempre com a melhor estratégia, por uma política diferente, mas, se manda quem paga, o dinheiro estava, neste caso, no lado negro da força. O dinheiro e, já agora, a arrogância. Quem não se recorda de ouvir Christine Lagarde, diretora geral do FMI, afirmar que era preciso retomar as negociações, mas desta vez "com adultos na sala", depois de mais um encontro com Varoufakis? Isto, vindo de uma ex-ministra das Finanças que tinha deixado derrapar o défice francês durante vários anos, só podia ser de uma ironia extrema.

Dois anos depois, a Grécia, que "engoliu" toda a austeridade que o Eurogrupo lhe impôs, continua onde estava sete anos antes: falida, sem perspetivas de futuro, mas ainda dentro da zona euro. Alexis Tsipras ficou a falar sozinho e acabou por sofrer uma espécie de processo de osmose por parte dos seus colegas europeus. Varoufakis, esse, saiu pela porta pequena e já poucos se lembram dele.

É daqui que nasce a minha grande dúvida sobre as reais possibilidades que Mário Centeno terá em contribuir para mudar a forma como o Eurogrupo olha para a política económica e orçamental europeia. Se há conclusão a tirar, 10 anos depois do início da crise, é que a Europa não aprendeu rigorosamente nada. Nada de estrutural mudou na economia europeia. Os tratados orçamentais são, na sua essência, os mesmos com que entrámos na crise. As agências de rating continuam o business as usual. E, pior que tudo, a Europa continua a sofrer um processo de desagregação vertiginoso.

Mário Centeno que, para quem não se lembra, era considerado um liberal antes de ir para o Governo, parte de uma premissa que não é inteiramente correta: a de que Portugal é uma espécie de case study, que demonstrou à evidência que era possível uma política diferente de reposição de rendimentos e, em simultâneo, o cumprimento das metas orçamentais. Acresce que o verdadeiro poder na Europa continua a não estar dividido pelos vários Estados-membros, mas concentrado em dois ou três países que ditam as regras. E a perspetiva sobre a origem da crise é hoje a mesma que Jeroen Dijsselbloem expressou, ainda em março deste ano, quando afirmou que o problema está nos países do sul, que só se interessam por "copos e mulheres".

Este "adulto" já saiu da sala, humilhado nas urnas pelos próprios eleitores. Terá Mário Centeno a maturidade necessária e, sobretudo, o peso político que falta na sala? Quem sofrerá primeiro o processo de osmose? Mário Centeno ou os colegas do Eurogrupo?»

Anselmo Crespo
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3.12.17

Alguma dúvida?


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Dica (676)



A grandeza da escolha difícil (José Manuel Pureza) 

«É do domínio da falta de seriedade afirmar que a despenalização da antecipação voluntária da morte com assistência médica é a legitimação do caminho mais fácil no qual a sociedade dá a morte em vez de ajudar a lutar pela vida. Só uma impiedosa sobranceria e uma arrogante falta de tolerância permite a quem quer que seja falar de caminho fácil quando alguém, face a um sofrimento indizível que o/a violenta e desumaniza aos seus próprios olhos, tem a determinação de escolher a antecipação da sua morte. Porque não, não é a escolha da morte que está em causa neste debate essencial, é a escolha da vida que cada um/a quer viver – e que cada um/a tem o direito de viver – quando a morte se aproxima.»
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Pobre América, pobre mundo




«Nenhum país fez mais que os Estados Unidos e a nossa generosidade vai manter-se. Mas as nossas decisões sobre políticas de imigração devem sempre ser tomadas pelos norte-americanos e apenas pelos norte-americanos. Decidiremos qual é a melhor maneira de controlar as fronteiras e quem será autorizado a entrar no nosso país.»
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A estrada



«Julho de 1975. O pátio era enorme. Alinhadas a régua e esquadro, as modestas casas térreas desenhavam um rectângulo. Duas portas. Uma para um corredor apertado. Outra para a liberdade das dunas de areia. Pequenas, tinham cozinha e quarto. A casa de banho era ao fundo, só uma, para 13 casas. E uma bomba para tirar água. Era ali, que famílias de pobres trabalhadores passavam as férias. Para mim, era uma festa. Um ritual. Um mês na praia. Prevenia as doenças de Inverno e esquecia os deveres da escola. Brincava até o sono vencer. Os amigos eram todos os anos os mesmos. O João, engenhocas, o Paulo, traquina, o Jorge, calmo, e o Francisco, a referência, não fosse ele o mais velho. Era tão boa a praia. Os banhos com a digestão feita, os gelados ao domingo, as mãos sujas dos matrecos, o bronzeador e a bandeira verde. E os livros.

Depois de almoçar deitava-me no colchão duro da cama de ferro e lia. E foi naquele pátio de gente honrada que um livro me marcou. A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe. Tal era a brutalidade do patrão e o sofrimento do escravo, que várias vezes soluçava até que desisti. Nunca consegui terminar as 170 páginas. Foi uma etapa da minha infância. Talvez a linha de partida da minha consciência.

Comecei a interrogar a vida. Porque havia pobres e ricos. Porque não éramos todos felizes. E se o meu pai me ajudava a compreender melhor o mundo, Jorge Amado, com Os Capitães da Areia, colocou-me na estrada que ainda hoje acredito que é a que nos leva ao melhor destino. Ávido, comia as palavras de Pedro Bala e Gato. Depressa terminei. E no mesmo dia voltei à página 1. Até ao fim. Novamente.

O Gamelas era um homem forte. Guarda-redes de andebol. Trabalhador. Um amigo. Naquele dia de sol, foi ele que me fritou o bife, as batatas fritas e o ovo estrelado. Foi ele que me levou à praia. E foi ele também que um dia me salvou de eu morrer afogado. Eu não sabia da minha mãe nem do meu pai. Mas a vida continuava feliz no pátio. Só aos amigos se confiam os filhos. Chegou a noite e a minha mãe e o meu pai continuavam sem aparecer. Chegou o meu avô. Levou-me. Sem grandes palavras. Soube depois que a antiga vivenda de um industrial, que admirava Álvaro Cunhal e que a alugara ao Partido, tinha sido atacada, apedrejada e incendiada. A minha mãe e o meu pai estavam lá. Na vivenda.

Colado ao vidro de trás da carrinha do meu avô, descemos a avenida muito devagar. A bonita vivenda de azulejos únicos e candeeiros de loiça estava quase toda destruída. O passeio desapareceu. Arrancado. As pedras foram lançadas contra as janelas e paredes. As janelas desapareceram. As paredes estavam todas picadas da força das pedras. A mancha negra do cocktail Molotov deixava imaginar o pior. Continuei sem saber da minha mãe e do meu pai.

Agosto de 2017. Num colchão melhor mas numa cama de ferro, combato o calor da serra algarvia. Deixo-me levar pela escrita de Miguel Carvalho em Quando Portugal Ardeu. Passaram 42 anos. Para mim, não. Estou novamente na carrinha do meu avô a descer a avenida. E Miguel Carvalho leva-me a descobrir outras avenidas. Avenidas e quelhos que eu desconhecia. Todo o terror da direita portuguesa. Os atentados. Os assassinatos. Os negócios. As mentiras. As bombas. Os tiros. A CIA. A impunidade. O branqueamento. Sinto o meu pai e a minha mãe. Tento imaginar as pedradas. A raiva que vinha de fora e a fibra que vinha de dentro. As cabeças partidas. O carro que incendiaram. O soldado que morreu. Já não me lembro como foi o nosso reencontro depois de descer a avenida. Pouco importa. Sei que durante muito tempo sentia medo. Até à noite em que acordei ao som do tiro de caçadeira. Na rua, e em frente ao portão de ferro, escrito a tinta branca e letras grandes, ameaçavam o meu avô: “Porco comunista, vais morrer.”

Tinha oito anos. Percorri a estrada. Sem medo. Fui crescendo. O pátio desapareceu. A vivenda continua na avenida. Carrego o fardo das interrogações. Podia ter sido colega do Milhazes em Moscovo, dirigente, deputado ou outra coisa qualquer. Nunca quis nada. Só um mundo para todos. Mas não existe. Um mundo para todos. Há que continuar pela estrada.

No dia dos meus 50 anos recebi um abraço e um embrulho. Desembrulho e o papel rasgado faz antever O Fim do Homem Soviético, de Svetlana Aleksievitch. Está desde então na minha mesa-de-cabeceira. Um ano. O tempo que o estou a ler. Devagar. Rouba o sono. E ao lado, Forte de Peniche-Memória, Resistência e Luta. Devagar. Faz chorar. Fico com insónias.

A estrada continua.»

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Marques Mendes, esse grande visionário



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