7.2.18

O pasto do populismo, e uma despedida



«1. Alguns dos meus amigos têm ciúmes de um certo populismo. Vêem nele uma insurgência contra a banalidade e adoram o discurso que promete os 99% contra os 1%. Desconfio de que se metem num beco sem saída.

PUB A pedagogia dos de baixo contra os de cima, das choupanas contra castelos e da arraia miúda contra barões-ladrões, essa é ilustrativa (embora não sejam nem tantos, 99%, nem só 1%: são menos em baixo, porque há-os no meio, e são mais em cima, porque é um poder). Mas, ainda assim, é um discurso de reconhecimento do povo contra os multimilionários, como diria Corbyn. É um enunciado aguerrido e daí o ódio amalgamador que suscita: o uso banal do nome populismo passou a ser o insulto que, mais do que designar a coisa, qualifica o medo e o seu biombo.

Só que o populismo é mais do que o discurso animador. É, ele próprio, um sistema de mando, inspirado no general Péron, como lembra o seu mais destacado teórico moderno, Laclau, marcando a visão do povo atrás do Bonaparte, o líder que guia e que traduz o significado do destino. Os populismos europeus ou Trump confirmam esta desmedida, um atrás do outro.

É por isso importante compreender como tal ambição ganha terreno (24% do eleitorado europeu, diz a assustada Fundação Blair). Há na minha opinião três razões para tal.

A primeira é que a esclerose dos sistemas partidários reforça a percepção de que a sua demolição é inevitável. A passagem desavergonhada de governantes para as empresas com que lidavam (os privados da saúde em Portugal, por exemplo), os dossiers sinistros das privatizações e das PPPs, o lobismo sinuoso, o milhão de euros que inundou a conta de um partido, tudo isso é irremediável. Os eurodeputados que trocam de família uma vez eleitos baseiam-se no mesmo desígnio de quem acha que a virtude é a carreira e a política é a casta.

A segunda é que as respostas dominantes a essa esclerose são mais populismo. As salvíficas primárias transformaram a eleição partidária em rixa de viela esconsa. Se as respostas são primárias, círculos uninominais ou eleições à brasileira, promove-se os rufias. Assim, a esclerose do sistema político e a vontade populista irão de mãos dadas.

Resta a terceira razão para o crescimento populista, essa mais importante: é que a crise da política torna o sistema eleitoral pouco relevante, mais espectáculo do que democracia. A realidade dura é que os banqueiros centrais mandam onde os ministros calam, os comissários europeus controlam mais do que os governos e a finança governa mais do que a eleição. Ora, esse esvaziamento democrático requer sacerdotes cerimoniais que ocupem o lugar da representação. E eles são de dois tipos. O primeiro é o cônsul: o populismo excelso é então aquele que promete a representação orgânica transcendente do povo total, que o líder olha do cimo do pedestal – a embriaguez de Macron que, parece brincadeira, mas se faz tratar por Júpiter, é um exemplo. É sempre o populismo realmente triunfante que alimenta o populismo desconfiado. O segundo tipo de sacerdote é o magistrado que ocupa o lugar da política quando promete a limpeza em vez da lei, pois está acima da miudeza profana e, uma vez saboreando o doce poder, não voltará atrás. O populismo e a república das togas invadiram o século da realidade virtual.

2. Tudo tem um tempo e termina hoje esta minha crónica no PÚBLICO. Agradeço à então directora, Bárbara Reis, que me convidou, e ao actual director, David Dinis, o acolhimento amável para este blog que, com os meus parceiros, Ricardo Cabral e Bagão Félix, foi sendo um espaço de escrita polémica, espero que por vezes rebelde. Nunca me foram pedidos limites a essa liberdade de opinião e sempre me senti em casa neste jornal de referência. Foi um gosto. Até um dia.»

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