29.7.18

De que serve doar material escolar a Moçambique? De muito e de nada



Excertos de uma longa reportagem de Bárbara Reis e Nuno Ferreira Santos no Público de hoje:

«Moçambique está em constante experimentação. Reduzir a formação dos professores é hoje aceite como uma má decisão. Há professores que mal sabem ler. Uma empresa portuguesa deu um contentor de material escolar. Foi bem vindo, mas é uma gota no oceano.»

«“Quem vem a pé do Norte, chega aqui e acha que isto é Paris”, diz o escritor António Cabrita, sentado na varanda do seu apartamento em Maputo, semivazio, mas cheio de livros. A frase é dita com tristeza, mas sobretudo como conselho: é preciso sair da capital para perceber o que se passa com a educação em Moçambique.

Três dias a visitar escolas e a ouvir moçambicanos permitem perceber que há milhares de adolescentes acabados de chegar ao ensino primário, milhares de crianças que aos dez anos, com a 4.ª classe feita, não sabem ler nem escrever, e que um milhão não está sequer na escola. Para não falar das aulas debaixo das árvores, das escolas sobrelotadas, das “segundas turmas”, das salas com 70 alunos, da média de uma hora e 41 minutos de aulas por dia, ou da fraca formação dos professores primários: com a 10.ª classe (10.º ano português) e um ano de formação psicopedagógica, qualquer pessoa recebe uma bata branca para ensinar.

PUB Em Moçambique, isto representa progresso. Em 1975, havia 3% de pessoas alfabetizadas, durante anos o país esteve em último lugar nos índices mundiais de pobreza, após duas décadas de guerra civil os livros tornaram-se um luxo exótico, as elites políticas têm uma formação muito frágil, o Estado não dá prioridade à educação, as exigências no ensino não param de baixar.

No entanto, bastaram 15 minutos no centro de Maputo a folhear exames finais do 1.º ano da faculdade — os alunos de António Cabrita — para ser evidente a dimensão do problema. Que é gigantesco, concordam professores, políticos, funcionários de organizações não governamentais, especialistas em educação, jornalistas e analistas ouvidos pelo PÚBLICO.

“Os alunos chegam à universidade tão mal preparados que, no primeiro dia de aulas, peço sempre que leiam um texto em voz alta. Percebo logo os que têm dificuldade em ler qualquer coisa que não seja muito simples. Alguns parecem miúdos de sete anos. Moçambique perdeu o contacto com os livros durante 19 anos. Hoje, nas universidades, apanhamos os filhos desse vazio”, diz Cabrita, escritor português e antigo crítico do semanário Expresso que, “vítima de um erro de geografia amorosa”, se mudou para Maputo há 15 anos. (…)

“Não foram só as pontes que foram destruídas nos anos da guerra”, diz António Cabrita, professor de Dramaturgia na Escola de Comunicação e Artes, um braço da UEM. “As províncias ficaram isoladas. Um livro sai aqui e não chega a Nampula”, a “capital do Norte”. “Mas também não chega a Quelimane”, mais a sul, mas a 1600 quilómetros de Maputo. “A última livraria de Nampula fechou há um ano.”

É um de muitos sinais num país que, como diz, tem uma elite que não lê e que cresceu sem livros. “Nas revistas, quando aparecem as casas dos políticos, só se vêem bibelots. Os livros têm tiragens de 200 exemplares, mesmo o Mia Couto faz tiragens de 300.” Quando foi à Beira lançar Os Crimes Montanhosos (edições Cavalo do Mar, 2018), com poemas seus e de Mbate Pedro, venderam quatro exemplares na sessão de lançamento, e no debate na universidade, a seguir, não venderam nem um. “E 80% dos escritores moçambicanos são da Beira!” Nos quase 20 anos de guerra, “não se fizeram livros, não se importaram livros, as poucas livrarias que existiam desapareceram, e quebrou-se o circuito dos bens culturais”, diz num fôlego. “Maputo ficou numa redoma.” Em 1975, o Instituto do Livro e do Disco fazia edições de 30 mil exemplares. “Hoje está praticamente parado e as últimas edições tinham tiragens de 200.” A professora primária Delfina Jamince, da escola de Guava, é um bom exemplo da preocupação do escritor. Gosta “muito de ler”, sim. Por exemplo: “Livros de histórias... a Bíblia e livros com ensinamentos.”

Nada disto perturba Isaias Wate, um homem grande com um sorriso proporcionado à sua altura. Operacional da Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo há 22 anos, é ele que nos guia pelas escolas de Manhiça. No escritório, mostra os manuais escolares que a ADPP editou em línguas locais e português, para responder à nova política do ensino bilingue. Onde muitos vêem o futuro comprometido, Wate vê sobretudo a “marcha da educação em progresso”: “Muitos professores têm a paragem do ‘chapa’ a 15 quilómetros da aldeia onde estão colocados para ensinar o ABC. Há chuva, têm dificuldades. Há vento, têm dificuldades. Nasci em 1964 na aldeia de Manjacaze, em Gaza, onde a escola era sinalizada pela árvore mais alta. Não havia mais nada. Foi debaixo dessa árvore que me tornei um cidadão activo. Há alguma dúvida? O professor é um herói nacional.”»
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