8.8.18

Há muitas necessidades que não são médicas, a madeira é uma delas – e há uma portuguesa a resolvê-las




Marta Gonçalves, Expresso diário, 08.08.2018:

Quais as maiores necessidades das pessoas que são forçadas a fugir de casa e a seguirem as rotas migratórias?

Na verdade, o que vemos na Europa é uma pequena parcela das pessoas que neste momento estão a migrar. São os que conseguiram sair da Líbia, mas há muita gente retida em território líbio, no Níger, na Nigéria. Neste momento, estamos ativamente num projeto do México, devido aos migrantes que atravessam a fronteira para os EUA, que é uma rota migratória com problemas parecidos. Como eles passam muito tempo ao relento, uma simples constipação pode transformar-se numa infeção muito mais difícil de tratar no momento em que são atendidos pelos médicos. Ou uma diarreia ou uma ferida que depois se transformam em problemas não só crónicos como muito mais difíceis de tratar. Há também necessidades que não são médicas, mas sim logísticas - estamos a falar de pessoas que já viajaram muitíssimo. Por exemplo, para as pessoas a bordo do Aquarius, a travessia no Mediterrâneo foi apenas a última fração da viagem. Estiveram muito tempo expostos à violência e sem terem uma cola social - aquilo que se perde quando saímos do nosso ambiente, da nossa cultura, da nossa família. Isso perde-se, e numa família que está sozinha, numa mãe que viaja sozinha com o filho, e às vezes com os filhos de outros, é um grande problema. Depois, há os problemas de saúde mental, que causam grande transtorno. Muitas vezes as pessoas que não estão capazes de viajar por essas mesmas razões são as mais vulneráveis à violência, por não conseguirem tomar decisões, por não terem dinheiro, por parecerem frágeis.

O trabalho da Unidade de Apoio aos Deslocados Internos dos Médicos Sem Fronteiras consegue minimizar esta dor e violência? De que forma conseguem facilitar a vida destas pessoas ao longo do percurso?

As missões já estão em sítios estratégicos para encontrar as pessoas no momento em que estão no estado mais vulnerável. Um dos problemas que vemos no México, por exemplo, é que só estamos com os migrantes que vêm do sul do país quando estão prontos para a última etapa - e também a mais violenta: atravessar a fronteira para os EUA. O que acontece é que atendemo-los e depois perdemos-lhes o rasto.

Através de uma série de encontros com migrantes e com organizações locais que conhecem muito bem a realidade, concluímos que quando os migrantes têm acesso ao Facebook e a redes sociais, utilizam-nas como ferramenta pessoal. Ora isto permite aos Médicos Sem Fronteiras voltarem a entrar em contacto com essas pessoas quando já estão mais à frente no caminho. E também permite eles nos contactem sempre que precisarem. Esta é uma solução possível no México, mas não em África, onde temos de pensar em estratégias diferentes.

Neste momento, estamos a idealizar kits que podemos distribuir em pontos de passagem das rotas que permitam a quem faz o caminho estar informado: os perigos que podem encontrar, como se podem manter nutridos, como evitar feridas ou o que fazer no caso de uma violação. E depois há também a violência sexual, não apenas sobre as mulheres mas também sobre crianças. Estamos também a pensar em kits não só de prevenção como de resposta, que inclua uma pílula do dia seguinte. Há muitas necessidades que não são só médicas e que se não tiverem resposta representam um problema muito maior para a saúde do que uma doença.

Que necessidades são essas?

Tem mais que ver com proteção do que cuidados médicos. Uma criança que fica órfã e tem de lidar com os irmãos não sabe como reagir ou como organizar a sua vida ou quem procurar. Esse é um dos casos que encontramos com maior frequência. Precisam de apoio de alguém, tanto psicológico como na gestão da família. Na Nigéria, estamos a começar um projeto de alternativa ao uso da madeira como combustível para cozinhar (e estas são pessoas um pouco diferentes, porque chegam aos campos e não têm absolutamente nada, escaparam depois de serem raptadas por grupos armados). Uma das principais necessidade que dizem ter - e não é só uma necessidade, mas também um motivo de conflito - é a madeira. Não há madeira para todos e é cara. Quem não pode pagar, vai para a floresta procurar - e fica novamente sujeito a violência. Este é um exemplo de uma questão não médica, fora daquilo que é nosso tipo de operações. Mas sendo os Médicos Sem Fronteiras a única organização no local, há a responsabilidade de dar resposta. Assim introduzimos uma tecnologia que permite fazer combustível com materiais locais, evitando que tenham de deslocar-se para ir à lenha.



Um dos projetos que mais tem sido mencionado é a mochila de fuga…

Foi um dos primeiros projetos, no qual continuamos a trabalhar. A mochila de fuga foi desenhada tendo por base aquilo que se passou no Sudão do Sul no ano passado, quando as nossas instalações foram atacadas. A comunidade fugiu toda para norte e o nosso pessoal preferiu acompanhar os deslocados, apesar de estar numa situação de grande perigo. Percebemos que existia predisposição do pessoal médico para acompanhar a sua comunidade e que estava desesperado para retomar a atividade, porque havia muita gente necessitada. Por isso, porque não desenvolver umas mochilas nas quais o nosso pessoal possa levar o material necessário para tratar os problemas mais prováveis de acontecerem quando se caminha no meio do nada? Como a malária (dormem ao relento e em qualquer lugar, não têm redes de proteção de mosquitos), as feridas (se foram de tiro precisam de ser bem vedadas), uma conjuntivite provocada pelo pó…

Quais os países onde estão a tentar resolver problemas e os que têm mais necessidades?

Estamos a trabalhar diretamente com o México, o Sudão do Sul, a República Democrática do Congo e a Nigéria. Há países com os quais tivemos conversações mas onde ainda não há um projeto: a Síria, o Iraque, a Turquia, o Níger, a Etiópia, a Somália e a Republica Central Africana. É difícil priorizar países, pois são todas situações de emergência crítica. Em qualquer um dos casos, são milhões de pessoas deslocadas. Só no Sudão do Sul são dois milhões de deslocados internos, no Congo há cinco milhões. Estrategicamente, o que decidimos foi ajudar as pessoas no momento em que sofrem mais e onde há menos organizações a atuarem. Na Nigéria trabalhamos muito nos enclaves militares, frequentemente atacados por grupos como o Boko Haram; na República Centro-Africana atuamos junto de minorias étnicas, constantemente sob problemas de violência. No Congo, onde o conflito é interminável, há pequenas comunidades muito afastadas umas das outras que são frequentemente atacadas por grupos armados, as pessoas têm de sair de casa durante duas ou três semanas, até as aldeias deixarem de ser controladas. Nestes locais, a solução não é a tecnologia, são os recursos humanos.

Como surgiu e como funciona a Unidade de Apoio aos Deslocados Internos, que atualmente lidera?

É muito recente, é um esforço bastante inovador por parte dos Médicos Sem Fronteiras em Espanha para descentralizar decisões para focos regionais – neste caso Nairóbi, onde estamos sediados, e que é um foco humanitário muito importante, porque passam por ela muitas rotas migratórias na África Oriental. Somos quatro pessoas. Trabalhamos em conjunto com as missões que já estão a funcionar em determinados países e que nos pedem apoio para repensar a forma como estão a ajudar as pessoas. Nem somos uma unidade operacional nem gerimos atividades no terreno - à exceção dos nosso testes. Apesar de termos a sede em Nairóbi, trabalhamos com missões de todo o mundo, incluindo rotas migratórias da Europa, na América Latina e mais duas ou três no continente africano - como aquela que começa na Nigéria ou no Níger e termina em Espanha.

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Ana Santos, 35 anos, chegou ao Quénia há dois anos. Quando fazia o doutoramento, centrado no desenvolvimento de equipamento cirúrgico e de anestesia para contextos de ajuda humanitária, contactou os Médicos Sem Fronteiras (MSF). Ao mesmo tempo trabalhava num projeto que fundou em parceria com o Massachussets Institute of Technology (MIT, EUA), o Rethink Relief, que também tinha como objetivo pensar na tecnologia como facilitador de vida para quem vive em zonas de conflito ou afetada por desastres naturais. Foi então convidada para integrar projetos dos MSF Suíça. Em 2016 passou a gestora de projetos de inovação da Unidade de Apoio aos Deslocados Internos dos MSF, que a levou até ao Quénia. Ana Santos é natural de Lisboa e, por vezes, volta a Portugal.
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