23.12.18

O país do giroflé, giroflá



«Há algumas décadas, o grupo português A Banda do Casaco gravou um tema repleto de sarcasmo: “O enterro do tostão”. Foi antes do fim do escudo. É do tempo em que a televisão não era a cores, mas a preto e branco e simbolizava, já então, a descrença com os sonhos nascidos em 1974. Cantava-se: “Ai venham todos, ai venham já, que este jardim está ao deus-dará, ai venham todos, ver como isto é, que este jardim anda ao giroflé”. Estávamos em 1978 e caminhávamos alegremente para a primeira intervenção do FMI em Portugal. Desde então o jardim, exceto nalguns momentos de fotossíntese, nunca deixou de estar ao deus-dará. O enterro do tostão era, na realidade, o dobrar dos sinos por todas as esperanças. Passadas décadas, Portugal não aprendeu nada. Este é um país que dança o giroflé e contenta-se com o giroflá. Portugal é um melancólico ‘Jardim da Celeste’.

Enterrou-se o tostão e, agora, soterram-se as ideias. O maior défice português é o do pensamento. Olhe-se à volta. Os dois melhores exemplos do país do giroflé são essa expressão gloriosa da nação: o eterno bardo Jaime Marta Soares, e o salário mínimo de 600 euros, paradigma da nossa pobreza face à Europa. O modelo português é, há séculos, o dos salários baixos. Alguém o tentou mudar? Pertencemos à Europa? Vivemos como sempre no mundo da ilusão e da sopa dos pobres envergonhada. O maior truque deste Governo foi fazer-nos acreditar que os coelhos magricelas da era da troika se tinham transformado em roliças lebres. Todos se sufocaram com a original notícia: sindicatos da função pública e partidos da oposição ou do apoio envergonhado ao PS. Na prática, o país continua a apertar o cinto. A época anunciada das “vacas gordas” (e voadoras) contaminou toda a gente e funcionou como o nosso Ícaro ternurento. Só que a “vaca voadora” aproximou-se demasiado do Sol e as asas começaram a arder. O jogo do “pega monstro” em que se transformou o trágico acidente do helicóptero do INEM mostra como este país está preso por fios. Os cidadãos têm razão para deixar de confiar no Estado: são demasiadas falhas para serem tapadas por uma peneira. Em vez de discutir seriamente qual a razão estrutural da falha do Estado em sucessivos acontecimentos, a elite política antecipa o Carnaval: está mais interessada em dominar o Conselho Superior do Ministério Público, com Rui Rio e Jorge Lacão a dançarem um tango mortal. Face aos problemas reais, alguns iluminados reagem com a compostura de galinhas desorientadas: correm em todas as direções. Toda a matéria orgânica é corroída pelo tempo. É o que está a acontecer à política nacional. Mas, pior, os seus guardiões não o percebem. Ou fingem que não.

Parece uma telenovela. Os episódios sucedem-se e o enredo não muda. Os deputados, a fazerem provas de admissão ao populismo pimba, decidiram transformar-se em farmácias ambulantes, legislando sobre as vacinas que os portugueses devem inocular, enquanto, em momentos pontualíssimos, se transformam, pelo dom da ubiquidade, em fantasmas no Parlamento. Tancos é já um seriado, vai no “Rambo 10” e quem sabe mais além; a incúria estatal que permite tragédias como a de Borba ou os incêndios periódicos é a norma; a montanha russa das greves que vão moendo a sociedade e que, um dia, a revoltarão, tornaram-se um hábito tóxico; a ferrovia continua a tentativa, sem comboios, de regressarmos ao transporte em carroças (e isso possa ser vendido aos estrangeiros como very tipical); a corrupção floresce como uma necessidade. Alguém discute que modelo de país queremos? Cavaqueamos sobre coisas avulsas. Porque o país é frágil como cristal: faltam comboios, enfermeiros, fiscais de obras, dinheiro para o SNS. Discutem-se locais de portos, mas é-se incapaz de criar um corredor ferroviário a partir de Sines para a Europa, a grande vantagem competitiva nacional no sector.

Em Portugal vive-se, por completo, o espírito “Black Friday”: depois de se ter implementado uma sociedade económica low-cost, instalou-se agora a política low-cost, num clima de cultura low-cost. Não custa entender que esta sociedade de saldos está a destruir a democracia. Transformados em consumidores, os cidadãos sobrevivem, num país de impostos sem fim, enquanto os serviços se degradam. O contrato social é hoje uma ilusão. Entre um défice quase zero, o “sucesso” do turismo e o pagamento da dívida ao FMI (substituída por outra igual, a juros mais baixos), a sociedade portuguesa definha. Tem-se retirado aos cidadãos a capacidade de alargarem o seu conhecimento e a sua capacidade crítica. Esta “nova pobreza” assemelha-se a uma “iliteracia” cada vez mais visível e que nos atira para modelos pré-revolução fordiana. Charles Dickens poderia regressar, porque a sua sociedade vergada à dívida, que descreveu em “Little Dorrit”, está aqui. Com a diferença que agora há telemóveis que só não nos dão a comida à boca. Há umas semanas, Hélia Correia dizia-nos que “os animais estão a acordar” e que “estamos a perder completamente a palavra”. Só os políticos portugueses não entendem que caminham alegremente sobre campo minado. Não é muito diferente do que Guerra Junqueiro dizia em 1890, ano de todos os perigos. Para ele, os partidos de então correspondiam ao estado da nação: “Fazem-me lembrar um homem que, numa feira, vendia vinho e vinagre na mesma pipa. O vinho saía por um lado e o vinagre por outro. A droga era a mesma.” Os políticos portugueses estão exaustos de ideias. E não percebem este novo mundo de fantasmas que se está a organizar: numa época em que os maiores recursos comerciais (ou políticos, porque ambas as áreas estão agora ligadas) são as próprias pessoas, como prova o Facebook, tudo é mercadoria no mundo dos algoritmos. É nesse pântano que se alarga, que as tolices de alguma da nossa classe política são afrodisíacos para quem empunhe a bandeira da alternativa radical. A política, como se sabe, é a suprema arte da ficção. O teatro, no seu limite. Por isso, por trás dos Trumps e dos Salvinis, está aquilo que Steve Bannon já entendeu: estamos no meio de uma guerra, pela hegemonia cultural. Bannon segue, por vias transversais, as teses de Antonio Gramsci. Sabe que a política tem que ver com a definição de uma identidade. E com a arte de criar emoções que soem autênticas.

Nesse aspeto, Portugal é uma flor à beira do precipício. Acorrentado, como desde há séculos, a uma dívida (pública e privada) que nunca desaparece, incapaz de acumular capital para investir, tendo desaparecido grande parte das grandes empresas de capital nacional com capacidade de internacionalização, tendo já privatizado quase tudo o que era público, com um sector financeiro em mãos externas, o país está a caminhar para uma fragmentação política (foi à esquerda e em 2019 será à direita). Quem lograr apresentar uma estética alternativa poderá vir a reinar neste terreno de cinzas e desesperos. A política será sempre uma luta entre o conflito e o pacto, entre a razão e a vingança. Ao tornar-se, como em Portugal, um show de duvidosa utilidade, está aberto o caminho para os espectadores votarem no personagem mais vistoso. E é assim que desaparecem as democracias.»

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