12.5.19

A história de uma fraude



«Foi com estranheza e até desilusão (não tenho porque esconder) que assisti ao espetáculo de maquinação política executado pelo Governo de António Costa nos últimos dias.

Mais do que as causas do fracasso negocial, importa esclarecer, para memória futura, as contas da atualização da carreira dos professores. O Governo avançou vários números, confundiu âmbitos e tempos de aplicação, insinuou uma contabilização retroativa do tempo de serviço que nunca esteve em causa, sem tornar públicos os dados que permitissem a jornalistas, sindicatos, partidos verificar as contas autonomamente. A opacidade é sempre uma má prática democrática. Sendo o propósito confundir e assustar, a opacidade é uma arma poderosa.

Tentemos, com os dados disponíveis, contribuir para um debate são, acerca de medidas praticáveis.

Assim falava Centeno

Segundo António Costa, a medida, alargada a todas as carreiras especiais, “implicaria um aumento da despesa certa e permanente de 800 milhões em cada ano”.

Se eu lhe disser que o descongelamento das carreiras gerais da Função Pública aprovado em 2017 implicou um aumento de despesa permanente anual de 992 milhões vai achar estranho, porque a medida nunca foi apresentada desta forma. Basta ler os Programas de Estabilidade: o descongelamento tem impactos orçamentais em três anos e um custo líquido final (descontado dos impostos e contribuições que o Estado recebe) de 564 milhões. Assim falava Centeno.

Se eu lhe disser que a despesa com o aumento das pensões em 2019 foi superior a 600 milhões, vai achar estranho. Todos os anos, desde 2017, as pensões foram aumentadas em mais de 200 milhões, mas a soma destes aumentos nunca foi feita, nem assim apresentada. Para 2019, o aumento foi calculado em 268 milhões.

Aliás, boa parte das medidas negociadas nesta legislatura têm um impacto orçamental permanente: todos os anos o Orçamento pagará o aumento dos apoios sociais e a descida do IRS. Mas o rigor impediu que essa fosse a forma de considerar os números. Então, porque é que o Governo altera agora as suas próprias regras, deturpando os custos, indo ao ponto de recusar fornecer o valor líquido da atualização das carreiras dos professores?

E nos Açores, meus senhores?

Ao contrário das pensões ou do IRS, a despesa associada à atualização das carreiras dos professores não é permanente. O Estado só pagará os novos salários, correspondentes aos escalões de reposicionamento, enquanto estas pessoas estiverem no ativo. Depois, a pensão terá em consideração toda a carreira contributiva e, nesse cálculo, os 9 anos continuam congelados. Não é uma questão menor, se tivermos em conta que cerca de metade dos professores tem mais de 50 anos.

Se considerarmos ainda que os trabalhadores que saem serão substituídos por entradas nos escalões iniciais, a despesa com as carreiras diminuirá significativamente. É por isso que um esquema de reformas antecipadas teria sido, como propôs o Bloco, uma forma sensata de negociação.

Outra questão é o prazo para completar o reposicionamento. O Governo fez as contas a 4 anos. Mas porquê? As propostas aprovadas remetiam apenas para negociação, sem prazo. Nos Açores e na Madeira, o PS aprovou 7 anos, que também era a proposta dos sindicatos. O custo anual seria menor, e o custo total também, devido ao efeito das reformas entretanto havidas, sem falar na inflação.

Se apresentarmos a proposta de atualização das carreiras especiais em linha com a formulação que o Governo usou em 2017 para o descongelamento das carreiras dos restantes funcionários públicos, teremos o seguinte: a atualização das carreiras especiais tendo em conta todo o tempo de serviço terá, no final, uma despesa total líquida de 567 milhões. Tendo em conta que 169 milhões já foram previstos pelo Governo, no fim do prazo a negociar, o custo líquido adicional será de 398 milhões (dos quais, 310 milhões relativos aos professores). Menos dramático que “um aumento da despesa certa e permanente de 800 milhões em cada ano”, não é?

Mesmo os valores brutos divulgados pelo Governo (ver quadro) serão maximalistas. Dependendo de outros fatores, as pré-reformas, as vagas a abrir nos 5º e 7º escalões ou a taxa de IRS considerada, os valores podem ser inferiores. A título de exemplo, a UTAO adota uma taxa de IRS de 15%, resultante das contas do Governo no Programa de Estabilidade, que parece subestimada. Usando a taxa de retenção de cada escalão, o impacto líquido pode reduzir-se até 100 milhões de euros.

Teria sido possível negociar um resultado diferente. Ao invés, para forçar o embaraço da direita e pressionar os partidos que cumpriram a sua palavra, o PS estava disposto a demitir-se por uma medida que a UTAO garante que não colocaria em causa as regras orçamentais europeias, nem o superávite estrutural.

No recuo, a direita insiste numa proposta cujas condicionantes atirariam a reposição para daqui a 50 anos. Uma manobra sem consequência.

A febre da maioria absoluta

Números e factos foram manipulados com o objetivo de despertar na população portuguesa um sentimento perigoso: o ressentimento social. Insinuações e comparações absurdas fizeram uma campanha de desinformação com um só propósito: um toque a rebate eleitoral para recolocar um cenário de maioria absoluta.

Nada foi deixado ao acaso. O Governo avançou com o decreto dos professores, isolando-os face às restantes carreiras especiais e manteve uma pretensa negocia¬ção em que entrou e saiu com a mesma proposta. As conferências de imprensa e comunicados estão cheios de imprecisões e contradições, sempre tratando a especificidade da carreira docente como um privilégio, lançando a desconfiança. Desconfiança que foi alimentada historicamente pela direita portuguesa para, tirando a todos, não dar nada a nenhum. Desconfiança que, como qualquer populismo retrógrado, lança o olhar das pessoas para o lado e para baixo, para que nunca ninguém levante a cabeça para questionar os verdadeiros privilegiados (como votará o PS as propostas para terminar privilégios económicos nas PPP da saúde, nas rendas da energia, na tributação da banca?). Uma desconfiança que um dia o CDS lançou contra os beneficiários do RSI e que serve agora ao PS. Uma desconfiança com efeitos de longo prazo.»

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