27.6.19

Os 0,4% não são um milagre, são a vida das pessoas



«Na primeira quinzena de junho falámos dos transportes. De como atravessar o Tejo de barco se transformou numa aventura terceiro-mundista. De como o serviço da CP continua em queda livre, à espera de investimento que fica preso nas mãos de Centeno. Nos últimos 15 dias falámos do Serviço Nacional de Saúde. De como a falta de obstetras vai obrigar ao encerramento de um serviço de urgências da região de Lisboa no verão. De como o sistema, que começou a decair há muito tempo, está a entrar em colapso.

A direita diz que foram as devoluções e as 35 horas. Mas depois é ela mesma que reconhece que para contratar mais obstetras é preciso competir com os salários do privado. O Governo, sobretudo Mário Centeno, nega tudo, acreditando que se negar as pessoas vão ignorar o seu próprio quotidiano. Percebemos que um Governo entrou em modo autista quando, para justificar as filas para tirar o Cartão de Cidadão, responsabiliza os utentes por irem todos à mesma hora, antes dos serviços abrirem. Pode ser que seja para confraternizarem pela manhã, pode ser para tirarem a senha que lhes permite serem atendidos antes de almoço.

Enquanto os serviços públicos se batem com dificuldades crescentes, Mário Centeno apresenta, em Bruxelas, mais um trunfo para uma carreira europeia: 0,4% de excedente orçamental. Sim, é verdade que isto resulta do aumento da receita. Mas a verdade é que ele não é acompanhado pelo aumento da despesa onde ela é precisa. A este milagre, e conhecendo o estado dos serviços públicos, começa a ser difícil não chamar de austeridade. Não é austeridade nos rendimentos dos portugueses, é austeridade sobre o papel do Estado. Que se formos para áreas menos mediáticas e populares, mas fundamentais para o nosso futuro, como a investigação, atingem níveis pornográficos. Não questionar as metas da Europa levaria sempre a decadência do Estado. Querer ultrapassá-las levaria a isto.

Não é um milagre que explica os 0,4% de saldo nas contas de Centeno, em que o aumento da receita não é acompanhado pelo aumento da despesa onde ela é urgente. São pessoas a dormir nas plataformas dos barcos ou a serem transportadas como gado. São urgências de obstetrícia fechadas no verão. São filas matinais para tirar o Cartão de Cidadão. Como disse Marcelo Rebelo de Sousa, não há bela sem senão. E é o senão e a bela que cada um escolhe para o país, e não qualquer milagre, que distingue alternativas políticas. A direita tem a solução: manter taxas moderadoras nos centros de saúde, não reduzir o preço dos passes e voltar a punir os funcionários públicos. Pôr os utentes e os trabalhadores a pagarem a fatura. A esquerda, que aprovou orçamentos que todos os anos são desrespeitados, tem de dar a sua resposta: que a ditadura de Centeno não pode continuar a asfixiar os serviços do Estado e a tornar a vida dos portugueses que mais precisam dele num inferno. Que um país que tem o Estado como este está não tem margem para excedentes que ninguém exige. Que esta austeridade criminosa sobre os serviços públicos é indigna de um Governo de progressista.»

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