26.9.19

O PS, os empecilhos e as circunstâncias



«1975, de novo. Era inevitável que esta retórica do PS e de Costa contra os partidos à sua esquerda (“os empecilhos” à governação), e em especial contra o Bloco (“irresponsável”, não fiável) o fizesse regressar à memória da Revolução. Omitindo que foi Costa abriu as hostilidades, Manuel Alegre, que foi dos que, ao contrário de boa parte dos atuais ministros, aplaudiu os acordos à esquerda de 2015, acha que “o Bloco voltou metaforicamente ao verão de 1975”, como se “fosse preciso (...) criar outro partido verdadeiramente socialista” (PÚBLICO, 23.9.2019). É que, pelo menos desde aquela famosa tirada de Mário Soares sobre ser necessário “meter o socialismo na gaveta” (1978) dadas as condições económicas do país, que o PS sabe bem que essa é a dúvida que toda a gente tem em Portugal sobre ele.

A razão pela qual, ao contrário da maioria dos países europeus, a CDU e o BE, os “empecilhos” à esquerda do PS, têm mantido nos últimos 45 anos entre 15% e 20% dos votos, impedindo (como em 2005) que este consiga (apesar de ser claramente favorecido pelo sistema eleitoral) a maioria absoluta, tem tudo a ver com essa dúvida: querem os socialistas caminhar para o socialismo? A pergunta não é extravagante: o PS fundou-se a dizer que era isso mesmo que queria; e por isso aprovou a Constituição de 1976, que inclui ipsis verbis o essencial do seu programa – redigido em 1973, num momento em que o PS não estava sujeito (como depois Soares tantas vezes insistiria) a nenhuma “pressão revolucionária”, muito menos ao “anarco-populismo” que Alegre voltou agora a dizer que teria caracterizado “as tentativas pseudo-revolucionárias do verão [de 1975]”! O PS e Soares assumiam que lutavam pela nacionalização da “grande banca” e das “grandes empresas monopolistas que exerçam uma atividade de serviço público”, pela “coletivização dos meios de produção e distribuição”, pela reforma agrária “optando pela exploração em herdades coletivas ou através de cooperativas agrícolas”, por uma “via portuguesa para o socialismo”. Não pasmem, foi assim mesmo! E se tudo isto ficou na Constituição de 1976, votada pelo PS e pelo PPD quatro meses depois do 25 de Novembro e da derrota da esquerda militar, até pode ter sido por pressão do PCP na Constituinte, ou, sobretudo, como resultado dos movimentos de ocupação de terras e casas, do controlo operário de empresas cujos proprietários as tinham deliberadamente abandonado e feito soçobrar – mas, se assim foi, é porque o PS terá sido obrigado então a constitucionalizar o seu próprio programa e não o programa do PCP!

Quem há quatro anos fez toda aquela campanha contra a inédita negociação que Costa aceitou fazer à sua esquerda, acusando-o de “trair o partido de Mário Soares”, esqueceu-se de que, a haver uma tradição fundadora do PS, ela teria que estar no programa de 1973, no qual se dizia, por exemplo, que a Comunidade Europeia era um projeto “neocapitalista” e “uma criação do patronato multinacional”. Que tenha sido o primeiro governo socialista a iniciar, em 1977, a adesão a tal projeto é revelador de como os socialistas entendem que se deve governar em democracia: comprometer-se com princípios centrais da democracia económica e social mas encontrar permanentemente razões contextuais para impedir a sua realização e fazer outra coisa. Que o PS tenha descrito a Constituição de 1976 como uma imposição com que tivera que transigir, apesar de ela ser em grande medida o seu próprio programa, e que tenha acordado com a direita todas as revisões estruturais (1982 e 1989) que eliminaram tudo quanto o PS incluíra no seu próprio programa económico e social, que os governos PS tenham privatizado muito mais que os da direita, que tenham negociado três acordos com o FMI (1977, 1983, 2011), permitiu sempre alimentar essa dúvida sobre a fiabilidade do PS – a mesma que tem vindo a arruinar a social-democracia europeia. Esta não é apenas uma história de não se cumprir o que se promete; é de não se ser quem se diz que é.

O PS é o partido do contexto: se não der, adia-se; se Costa diz agora que “Portugal não é um país cor de rosa” (SIC, 4.9.2019) é porque se prepara para mudar de contexto, e dir-nos-á que as circunstâncias o obrigam a mudar de rumo.

Tinha razão Jerónimo de Sousa quando dizia que em 2015 “o PS não mudou; as circunstâncias é que mudaram”. Só nos resta é fazer com que as circunstâncias o obriguem a mudar. E isso só votando nos “empecilhos” à esquerda do PS.»

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