26.12.19

Figura do ano? Cristina Tavares



Escrevia há dias Martín Caparrós, numa crónica do jornal "El País", que há uma sobrerrepresentação de próceres nas efígies das notas: os grandes das nações, quase todos patilhudos.

«Apesar da observação do escritor e jornalista argentino ser contaminada pela realidade sul-americana, é possível dizer que se passa mais ou menos o mesmo quando se escolhem as figuras que marcam o ano que acaba. Com uma ou outra exceção "pop" (este ano foi Greta Thunberg), são os próceres que marcam o ritmo: Trump, Bolsonaro, Merkel ou Johnson lá fora; Guterres, Marcelo, Costa ou Centeno, cá dentro. Sem patilhas, que estão fora de moda, mas próceres ainda assim. Melhor figura do ano seria Cristina Tavares, a operária da corticeira de Santa Maria de Lamas, duas vezes despedida e duas vezes reintegrada. O primeiro despedimento, ainda em 2018, por extinção fraudulenta do posto de trabalho. A segunda, estava 2019 a começar, por difamar a empresa, ou seja, por denunciar o negreiro que a obrigou a carregar e descarregar, sucessivamente, na mesma palete, os mesmos cinco sacos, com as mesmas cinco mil rolhas cada um. Ao contrário do que é habitual neste mundo moderninho, cheio de beleza "instagramável", em que já não há proletários, só colaboradores e equipas, a arbitrariedade do capitalista não se impôs. Cristina aferrou-se ao posto de trabalho e ao salário (magro) que lhe garantia a subsistência e a do filho. Uma postura heroica, quase suicida, que foi chamando gente. Do mundo dos sindicatos e dos jornais primeiro. Do mundo dos partidos e da cultura depois. Cristina ganhou as duas batalhas. Mas sabe melhor do que ninguém que a guerra por um mundo mais justo e menos desigual não termina nunca. Se não for esta Cristina, outros irão provar os efeitos da prepotência e da ganância. Como alertou aliás o bispo emérito Januário Torgal Ferreira, voz incómoda que regressou ao ativo em nome de Cristina. A mensagem que trouxe não foi a da esperança, como a que alguns próceres da Igreja usam para adormecer crentes mais incautos. Trouxe antes uma mensagem de resistência e de libertação: "Resistam, resistam (...) Porque amanhã outros tentarão quebrar as pernas a outros trabalhadores".»  

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