22.6.19

Herdeiros de Arnaut e Semedo revoltados com PS



«“Aproveitar a posição pública do meu avô e invocá-lo para, depois, seguir o caminho inverso ao que ele defendia é usurpação de nome.” A frase é de António Arnaut, o único neto e homónimo do pai do SNS que aceitou falar ao Expresso — em nome da família — sobre o destino provável da Lei de Bases da Saúde. Confessa-se “preocupado”, mas ainda acredita na hipótese de um consenso à esquerda. Ana Maria Brito Jorge, viúva de João Semedo, está mais pessimista. “Foi visível a decisão de infletir caminho por parte de quem detém o poder”, diz ao Expresso. Resta o “desalento, a deceção, a incompreensão e a revolta”, conclui.

Foram testemunhas diretas do último trabalho político produzido por António Arnaut, jurista e fundador do PS, e João Semedo, médico e ex-líder do Bloco de Esquerda: uma proposta de nova Lei de Bases da Saúde para aprovar por um Parlamento onde a esquerda tinha maioria. Um novo dado político que abria a possibilidade de alterar a lei aprovada nos tempos do Governo Cavaco Silva e que abriu a porta às parcerias público-privadas.

Ana Maria esteve “sempre tão próxima” da tarefa de redação da proposta da lei de bases que pode acompanhar “de perto o desenvolvimento do pacto solidário” que uniu Semedo e Arnaut para “salvar o SNS”. Ambos estavam já gravemente doentes, mas “foram incansáveis, determinados, quase heroicos no seu esforço, alimentados pela certeza inabalável de estarem a abraçar uma causa justa e inadiável”, diz a viúva de João Semedo.

O único neto de António Arnaut não herdou só do avô o nome, mas também o interesse pelo Direito e pelo debate das questões jurídicas e políticas. “Era comigo e com o meu pai (António Manuel Arnaut, entretanto falecido) que o meu avô falava sobre aquilo que ele assumia ser o seu testamento político. Não me contaram o que ele pensava sobre o SNS: eu estava lá e falava com ele”, confessa ao Expresso.

A ideia central dos dois homens era clara: era necessário separar águas. “O SNS devia ser garantido a todas as pessoas pelo Estado e por ele deve ser gerido. Era decisivo garantir que a gestão do serviço público de saúde não caísse nas malhas dos interesses privados. Tão simples quanto isto, defendiam António Arnaut e o João nas suas conversas, nas suas intervenções, no que escreveram”, lembra Ana Maria Brito Jorge.

O neto de Arnaut confirma e acrescenta. “Não foi prometido ao meu avô acabar com as PPP na Saúde, embora fosse o que ele queria, não tenho dúvida”, disse. Mas “o essencial do seu projeto era a clara separação entre os sectores públicos e privados e o fim da concorrência na saúde”, conclui.

«Podia ter sido resolvido»

A proposta de Arnaut e Semedo foi concluída e deu entrada no Parlamento. Mas os dois autores acabariam por morrer (Arnaut em maio do ano passado e João Semedo dois meses depois) sem ver o desfecho da discussão na AR. “A vida tem destas coisas e aqueles dois homens, que continuaram mesmo a ser citados também no Parlamento, já não puderam assistir a tudo o que lá veio a desenrolar-se à vista de qualquer observador ou no segredo dos gabinetes”, diz Ana Maria. E o resultado foi uma inversão de rota. “A certa altura a ‘maré’ que tinha vindo a encher com a confluência de consensos, entrou em fase de refluxo”, diz a viúva de João Semedo. “Foi visível a decisão de infletir caminho por parte de quem detém o poder. O partido que governa quis e pôde, mas deixou de querer a partir de um dado momento.”

“Podia ter sido resolvido”, diz Ana Maria Brito Jorge, e mesmo com “tantos e tão variados” apelos, não foi possível ultrapassar “a teimosia entretanto retomada pelo partido do Governo”. Resta “o desalento, a deceção, a incompreensão, a revolta. Tudo palavras que o João não usaria, porque tinha a infinita capacidade de persistir na defesa daquilo em que acreditava. Nem tudo eu consegui aprender com o João”, conclui.

«Há dois PS»

António Arnaut “queria uma Lei de Bases da Saúde aprovada à esquerda. Este seria o ponto nevrálgico da ‘geringonça’: conseguir um pacto de regime nesta matéria e repetir o alcançado em 1979 com a primeira lei de bases. PS e PCP entenderam-se na altura. A esquerda pode e deve entender-se agora”, diz o neto.

Os ventos até pareciam de feição e “a mudança de ministro da Saúde foi um sinal claro de que o Governo pretendia seguir na linha dos objetivos do meu avô”, diz António Arnaut. “Marta Temido sabe para onde quer e precisa de ir e revejo-me completamente na proposta inicial do Governo (de Lei de Bases da Saúde)”.

Na verdade, as alterações introduzidas posteriormente pela bancada socialista mudaram o quadro e deixaram “preocupados” os herdeiros de António Arnaut. “Parece haver aqui dois PS: o de Marta Temido e o de Carlos César”, mas “a índole do SNS não pode ser desvirtuada pelo partido, a menos que mude de nome e deixe de se chamar socialista”, diz António Arnaut.

“Preocupa-me que possa haver um PS que faça perigar as promessas feitas ao meu avô e aos portugueses sobre a separação clara entre o sector público e o sector privado na saúde”, afirma o neto de Arnaut. “Aproveitar a posição pública do meu avô, invocá-lo e bater com a mão no peito a dizer que ‘o SNS é nosso’ e depois seguir o caminho inverso ao que ele defendia é usurpação de nome”. Um crime que, apesar de tudo, a família do fundador do PS acredita não ir ser cometido. “Estou convicto que António Costa vai querer e vai ser capaz de fazer perceber a um certo PS que quem está mal, muda-se”, diz António Arnaut. “Costa tem um partido e um Governo para gerir. Mas compreende bem a importância desta questão”, conclui.»

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Um grande, grande texto!



«Quando olham para esta fotografia o que veem ?

Eu vejo a minha neta mais nova, que não herdou os olhos castanhos da avó, nem os verdes da mãe, herdou os azuis do pai.

Vejo um bebé lindo, de catálogo, pele clara, cabelo cor de manteiga açoreana, olhos cor de mar das Caraíbas.

E se eu vos disser que esta bebé, que eu amo com todas as forças, como amo a outra minha neta ou as minhas filhas, é uma “migrante”, filha de outra “migrante”, neta de ainda outros migrantes, trineta de “migrantes” .

Desde há muitas gerações que na minha família se emigra: Brasil, Estados Unidos, Angola, Moçambique, Goa, Macau, Guiné-Bissau.

O trisavó das minhas netas partiu para os Estados Unidos, fez lá fortuna no início do século passado e regressou.
Eu aos três anos recebi a etiqueta de “retornada” . Retornada de quê se o meu chão natal foi o chão da Guiné ? Retornada a um país que esqueceu o meu pai, combatente, à sua sorte a sofrer toda a vida de stress pós-traumático ? Os meus tios de Angola, Moçambique, Goa também foram carimbados: “retornados”.

Acabada a Faculdade com pouco mais de vinte anos decidi emigrar para a Alemanha, Portugal nunca foi um país fácil para jovens. A minha irmã partiu para os Estados Unidos para fazer o mestrado, depois o doutoramento, depois os pós-doutoramentos. Cheguei a ter as minhas filhas na Alemanha, com a avó transmontana, estar eu em África, o pai delas na Ásia, a tia nos Estados Unidos.

Regressei a Portugal há um ano e meio, nem sem antes ter viajado e trabalhado em muitos dos infernos deste planeta, não sem ter conhecido o que é a guerra, não sem ter estado sob bombardeamentos. Ensinei refugiados nos campos de refugiados, ouvi-lhes as histórias e os que se permitem ter sonhos: “quero voltar a casa” ( e casa deles não é na Europa). Alguns salvaram objectos, outros apenas a roupa do corpo. Vi mulheres com a mesma roupa vestida que tinham no momento em que foram violadas, a escolha era entre a nudez e os trapos ensanguentados da violação.

Acolhi em casa refugiados sírios, brincaram com as minhas filhas, trabalhei com afegãos, costa-marfinenses, ruandeses, etíopes, bangladeshes, sudaneses. O que eu vi foram seres humanos desejando aquilo que eu mais desejo: paz, um tecto debaixo do qual dormir, comida para dar aos filhos.

Percorri o deserto com muçulmanos, estive no Borneu com muçulmanos, passei semanas inesquecíveis no Brasil com um judeu argentino, fui à missa em Dili, em Juba, em Dhaka, no meio da floresta amazónica. Celebrei a Pachamama com índios na Bolívia.
Toda a minha vida foi feita de migração e contacto com o Outro, entre todas as diferenças encontrei sempre, talvez privilégio meu, a bondade.

Quando se fala em migrantes eu não penso em negro ébano, nem em tez escura, nem numa religião diferente da minha, penso nas minhas filhas, nas minhas netas, na minha família e em mim. Penso que a única coisa que lhes quero ensinar é uma pergunta : “a que distância deixaste o coração?”»

Helena Ferro de Gouveia no Facebook
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O problema da direita face ao PS: Tweedledee e Tweedledum



José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«No quarto capítulo do Alice Através do Espelho, de Lewis Carrol, Alice está perdida num bosque e a noite aproxima-se. Encontra o par Tweedledee e Tweedledum, a quem pede ajuda. Mas estes não são capazes de a ajudar porque estão envolvidos num conflito qualquer. A querela é sobre uma ninharia e, quando estão preparados para se batalhar por essa ninharia, aparece um corvo negro e fogem cada um para o seu lado. Vamos admitir que Alice representa os portugueses, comparação que é um elogio aos portugueses. E que Dee é o PS, e Dum o PSD e o CDS, ou vice-versa, comparação que não é um elogio para ninguém. E que o “corvo negro” é a “crise” ou o Diabo. Olhemos pois, a esta luz sombria, a célebre “crise da direita”.

Há “crise da direita”? Há e faz parte da “crise de regime”. Por que razão a direita é ineficaz, quer na versão moderada de Rio, quer na versão agressiva de Cristas, quer nos micro-partidos da Aliança, da Iniciativa Liberal, ou do Chega!? Porque são como os dois Tweedle: iguais. Alice distingue-os só porque um tem escrito Dee e outro Dum no colarinho. O facto de se guerrearem também é irrelevante, porque percebe-se que são tão iguais que estão sempre a pegar-se um com o outro. Iguais no fundamental, peguilhentos no acessório. Tweedledee e Tweedledum.

Veja-se em detalhe essa igualdade. Quais são os dois aspectos mais estruturantes da política nacional? O “rigor orçamental” e o “cumprimento das regras europeias”. Na verdade, são uma e a mesma coisa, só que as “regras europeias” não são europeias, mas apenas as dos países que assinaram o Tratado Orçamental. O descalabro dos serviços públicos, o caos na saúde, o mau funcionamento da administração pública, a gestão dos restos orçamentais, a quebra do investimento público, a alta carga fiscal, tudo isto depende do principal, mas não é o principal, é o acessório. Como é que, no contexto do poder e da oposição, alguma vez a oposição, apenas criticando a performance da situação e não as suas opções de fundo, pode alguma vez ser alternativa? E como é que a direita pode fortalecer-se quando do outro lado há um partido, um primeiro-ministro e um ministro das finanças que fazem de forma mais consequente a mesma política que eles fariam? Sim, porque a política do “rigor orçamental” e do “cumprimento das regras europeias”, é não só de direita, como representa o núcleo duro da política de direita por essa Europa fora, que teve e tem o beneplácito dos socialistas. Tweedledee e Tweedledum.

A haver alteridade de política, ela devia manifestar-se no principal, nas causas, e não no acessório ou na gestão dos efeitos do principal. Porém, muito significativamente, estes aspectos centrais e causais são os menos discutidos no debate político entre o PSD, o CDS e o PS. Por uma razão muito simples, todos estão de acordo com os pilares da política que é seguida por Costa-Centeno e participam do “consenso europeu” sobre o qual o Presidente zela. Tweedledee e Tweedledum.

A partir desta igualdade essencial, o discurso da diferença procurado pela direita manifesta-se em mil temas que, desdobrados em mil questões, são a agenda comunicacional e política, mas nenhum permite uma crítica de fundo, que comece na raiz e depois passe para o resto da árvore. E, acima de tudo, há também um problema de legitimidade: o Tweedle sem poder não está inocente das principais opções que decorrem do “rigor orçamental” e das “regras europeias”. As políticas que agora revelam os seus efeitos perversos começaram quando o Tweedle que agora protesta tinha poder, e o que agora tem poder não o tinha à altura. A saúde está mal com Costa-Centeno? Paga-se o preço dos cortes de Passos. Os serviços públicos não funcionam com Costa-Centeno? Começou tudo nos anos da troika com o PSD e o CDS a governarem. Os impostos são altos? Pergunte-se a Passos, Portas e Cristas? Tweedledee e Tweedledum.

Acresce que um dos dois gémeos, não sei de Dee ou Dum, é mais simpático do que o outro, tira o dinheiro aos portugueses com impostos agressivos, mantém a desigualdade no mundo laboral, deixa o estado cair aos bocados, mas não insulta aqueles a que faz pagar por “viverem acima das suas posses”, distribui mais alguma coisa, e não quer fazer engenharia social como no tempo da troika-Passos-Portas. O outro Tweedle resmunga, “estragaste-me” o brinquedo, temos pois que batalhar. E batalham, batalham, fazem muito barulho, mas é uma fúria inconsequente. Tweedledee e Tweedledum.»
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21.6.19

A rotatividade nas maternidades



Não é provável que nasçam mais bebés nos meses de Verão do que no resto do ano. Portanto, o fecho das urgências de uma de quatro maternidades por dia, em Lisboa, só pode resultar de falta de planeamento nas férias dos profissionais necessários para garantir os partos.

Isto é admissível? As marcações das férias de médicos, enfermeiros, etc. não têm de ser autorizadas (sim, autorizadas) pelas respectivas chefias, com meses de antecedência, para que seja garantido o funcionamento dos serviços? Não é assim que funcionam, ou deviam funcionar, todas as instituições, públicas ou privadas?
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Morte de Veneza…




«The mayor of Venice has urged Unesco to place the city on its world heritage site blacklist as he lambasted Italy’s transport minister for failing to endorse a plan to divert cruise ships from the busy Giudecca canal.(…) 

Luigi Brugnaro’s frustration has been brewing since a huge vessel crashed into a tourist boat on the canal in early June, injuring four people.»
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ONU, Itália e migrantes




«Investigadores dos direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) advertiram Itália que o decreto proposto para formalizar o fecho dos portos italianos para ajudar grupos que resgatam migrantes do mar viola a legislação internacional. (…)

A missiva indica também que Itália é obrigada a resgatar migrantes em perigo e não pode impedir que outros o façam.»
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Habitação, o direito constitucional de morar (e de viver) que está por cumprir



«Quando alguém quer saber onde outro habita, em geral pode perguntar: “onde vives?”. A linguagem do quotidiano evidencia a associação entre vida e o espaço “casa”, o lugar onde podemos estar com segurança e privacidade e recuperar de um dia mau ou descansar para ter outro bom, seja sozinhos ou acompanhados. O local para onde se quer voltar quando se parte para trabalhar. É também isto viver. E não é privilégio. É um direito básico, segundo a ONU.

A nossa Constituição também define a habitação como um direito. Mas, nesta como noutras matérias, as palavras precisavam de fazer sentido. De ter reflexo. Uma Constituição não pode ser uma obra lírica ou um texto poético que conta uma história de um país imaginado. Um direito pleno e absoluto não tem esta concretização “tosca”.

Uma casa é hoje um bem sujeito a preços flutuantes que sobem e descem especulativamente e geram ganhos aos agiotas dos mercados financeiros. Ao mesmo tempo, famílias “penhoradas” por 30 ou 40 anos pagam spreads que alimentam práticas de casino (e outras loucuras dos banqueiros). Praticamente ninguém foge disto: os que não têm casa própria e alugam; os que tendo se endividaram brutalmente e vivem ou viveram com a corda na garganta para não falhar uma prestação; e aqueles que, tendo uma vida mais frágil, assistem a um Estado que não cumpre a Lei fundamental. Nestes três grupos estão mais de 90% da população portuguesa.

São estes 90% que precisavam de outra resposta. Portugal é dos países da União Europeia em que o preço da habitação mais subiu desde 2015. Mais de 33%. Na UE a subida foi de 15%. Que direito é este, que pesa um terço do orçamento das famílias e aumenta de preço mais de 33% em apenas quatro anos? Difícil chamar direito. No mercado de arrendamento, em Lisboa, segundo o INE, o valor mediano dos novos contratos de renda subiu 16% num ano. Em Portugal, 9%. Dezasseis e 9% de custo a mais para quem arrenda casa. Temos o direito de lhe chamar direito?

O Governo não consegue esconder esta realidade. Recentemente, foram conhecidos os detalhes do “Programa renda acessível” onde o Governo opta por beneficiar proprietários reduzindo os impostos pagos desde que providenciem “rendas acessíveis”. As aspas fazem sentido. Um T1 em Lisboa é considerado acessível até 900€ e um T3 até 1375€. Em Cascais, Oeiras e Porto, um T1 é acessível até 775€ e um T3 até 1200€. Pelas regras, o peso da habitação não pode ser mais que 35% do orçamento do casal. Como exemplo, em Lisboa, um casal com um rendimento médio bruto de 900 euros por mês cada um, 21.600€/ano, tem de arranjar uma casa que custe no máximo 630 euros/mês. Fomos a um site de uma famosa imobiliária. Seleccionámos a opção de “arrendar” e o tipo de imóvel “apartamento”. 88 opções. Colocámos o limite máximo de 630 euros – zero opções. Zero. Tentámos outra imobiliária. 570 opções. Mais promissor. 630€ de restrição – uma opção. Apartamento de 28 metros quadrados. Só esta. Como é que um programa que proporciona “zero/uma” opção para um concelho como Lisboa está a contribuir para consagrar um direito?

Na era em que nos comovemos e esquecemos a uma velocidade relâmpago, a habitação é o garrote que surge no momento do pagamento do empréstimo ao banco ou da renda, mas a vida segue rapidamente. Até ao mês seguinte. Outra vez. E outra vez. No entretanto, nem reparamos que provavelmente nos emocionámos com a idosa que foi expulsa de sua casa por uma renda que não podia pagar. 82 anos, Nazaré, despejada em Janeiro, e com uma reforma de 475 euros. Em Fevereiro é notícia que, em cinco anos, 238 famílias foram despejadas no Porto. Em Março, as Associações de Moradores pedem a eliminação dos juros de mora de 50% dos valores de rendas em atraso e ficamos a saber que houve “980 despejos em 2018 em Portugal”. Em Abril, conhecemos a Rita Vieira, que com duas filhas e a ganhar o salário mínimo ficou excluída do concurso para uma casa municipal em Lisboa. Em Maio, um homem, que teve recentemente um enfarte, acompanhado da sua esposa, portadora de doença de Crohn, e os seus dois filhos são despejados de uma casa da Câmara de Lisboa que ocupavam “ilegalmente”. Em Junho, a Câmara Municipal da Amadora avança com as demolições na Quinta da Lage e deixa famílias inteiras desamparadas e sem solução. É, então, legítima a pergunta: “Que espécie de direito é este?”. A uns recusa casa e a outros obriga a apertar o cinto sistematicamente.

Como é dito recentemente na obra A nova questão da habitação em Portugal, coordenada por Ana Cordeiro Santos, “a provisão de habitação em Portugal não pode ser cabalmente compreendida sem se considerar a articulação crescente com a finança”. Temos esta falsa sensação que o direito à habitação existe porque usufruímos de uma casa. Mas, se numa altura de crise queremos vender, a casa parece que não vale nada. Em contrapartida, se numa altura de crescimento económico queremos comprar, parece que nos levam o couro e o cabelo. O arrendamento é o que é, seja o dinheiro curto ou não para chegar ao fim do mês. Sendo inegável a melhoria do parque habitacional em Portugal ao longo das últimas décadas, parece que este “direito” tem funcionado bem melhor para os bancos, proprietários e especuladores.

De acordo com a Iniciativa Europeia para a Habitação, Portugal está no grupo de países da Europa onde a percentagem de casas que são propriedade do Estado é residual (3,3% apenas). Na Holanda, 32% do parque habitacional é propriedade pública. Na Dinamarca e na Suécia este valor está também acima de 20%. França com 17% e a Alemanha com 6% estão também acima de Portugal. Ou seja, um Estado demissionário, num país dual. Enquanto nos últimos Censos mais de 450 mil fogos estavam vagos e fora do mercado, oito mil famílias viviam em alojamentos feitos de madeira, barracas, improvisados ou móveis. E 468 mil viviam em casas consideradas sobrelotadas. Que direito é este? E que Estado é este que falhou na prestação deste direito?

Discute-se agora uma nova Lei de Bases da Habitação. É fundamental que se tenha a coragem de dar um pulo de gigante e dotar o Estado português da capacidade de intervir de facto na habitação. Isso não passa apenas por reforçar uma visão de um Estado subsidiário, que providencia casas de má qualidade a quem não pode pagar. O avanço civilizacional está em defender um Estado interveniente, capaz de ajudar eficazmente os mais fragilizados, mas também (e acima de tudo) de controlar os fenómenos especulativos assumindo a habitação como aquilo que ela é para mais de 90% dos portugueses... O lugar onde se vive. »

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20.6.19

Isto é muito bom!



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Pergunta inocente



O professor Marcelo estará a aproveitar o feriado para redigir uma nova versão «consensual» da Lei de Bases da Saúde?
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João Semedo



Faria hoje 68. Bem triste estaria com o estado se sítio em que se encontra o SNS e tudo o que ao mesmo diz respeito.
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Miguel Duarte e o nosso muro



«É fácil desprezar Donald Trump. Ele é uma figura boçal. E a sua boçalidade torna evidente a frieza criminosa do egoísmo. É isso que explica que os europeus olhem com indignação para o muro que ele quer construir na fronteira com o México. Os mesmíssimos europeus vivem há décadas com os muros de Ceuta e Melilla, que cercam a Europa fortaleza de onde olhamos, com ares de superioridade, para o bárbaro Trump. Mas o muro mais eficaz é mesmo o Mediterrâneo. Esse não precisa de ser construído. Basta ser aproveitado de uma forma bem mais impiedosa e cruel do que qualquer coisa que tenha sido feita pela administração Trump.

Desde 2014, chegaram à Europa, vítimas de uma Primavera Árabe fracassada, de guerras e de crises ambientais, quase dois milhões de refugiados. O pico foi em 2015, com mais de um milhão de chegadas. Este ano entraram mais de 31 mil, 23,5 mil pelo mar, mais de 23% crianças. Nestes cinco anos morreram ou desapareceram quase 20 mil refugiados a atravessar o Mediterrânio. Este ano já foram mais de 500.

Antes desta calamidade, a Europa ainda reagiu com decência. De outubro de 2013 a outubro de 2014, a operação “Mare Nostrum”, levada a cabo pelo Estado italiano, trouxe em segurança 150 mil refugiados para terra. Mas, em 2014, muito antes de Salvini ou de Trump, essa operação foi substituída pela Triton, apoiada pela Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, a Frontex. Ao contrário da sua antecessora, centra-se no patrulhamento da costa, não no resgate. Salvar vidas deixou de ser uma prioridade.

No mar, militares europeus assistem impávidos e serenos, em águas internacionais, à captura dos barcos com refugiados pela guarda costeira da Líbia, que os leva de novo para terra. É preciso dizer o que isto quer dizer. Quer dizer que os europeus entregam estas pessoas em estado de necessidade profunda a forças que, em representação de um Estado falhado, não lhes garantem rigorosamente nada. Quer dizer que elas são devolvidos a um país onde, como imigrantes, estão sujeitos a espancamentos, violações, roubos. Tudo documentado por observadores internacionais. É por isso que muitos refugiados se atiram à água quando estão prestes a ser capturados pelos líbios. Preferem a morte ao regresso ao inferno de que fogem.

A Europa não construiu os muros de Trump para que os refugiados não chegassem. Limitou-se, muito antes de Salvini, a substituir o programa de resgate por um programa de patrulhamento e a entregar o problema ao Estado falhado da Líbia. Só que ficaram nessas águas várias ONG. Que, escândalo dos escândalos, se dedicaram a cumprir o artigo 98 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Depois de optar por deixar morrer quem aqui tente chegar, é preciso travar quem continua a agir. Esta é a forma criminosa e cínica que os governos europeus encontraram para impedir que os refugiados passem as fronteiras: deixá-los morrer no mar e criminalizar quem os tente trazer para terra. Bem mais sinistro do que um muro.

A ONG alemã Jugend Rettet foi um alvo recente deste processo de criminalização da decência. O seu barco Iuventa, que salvou cerca 14 mil vidas, foi apreendido em 2017 pelas autoridades italianas e dez dos seus tripulantes foram acusados de auxílio à imigração ilegal. O português Miguel Duarte é um deles. Antes da criminalização, o Estado italiano tentou o controlo. Propôs um código de conduta que sugeria que cada embarcação tivesse um polícia armado a bordo, que estivessem sempre localizáveis e que não entrassem em águas territoriais líbias. A Jugend Rettet e mais dez ONG (entre as quais os Médicos Sem Fronteiras) recusaram-se a assinar.

A acusação de auxílio à imigração é especialmente absurda quando quase todas as operações contaram com a ajuda do Centro de Coordenação Marítima de Roma (CCMR). Para que a coisa fizesse algum sentido, afirma-se que houve contactos com traficantes. Talvez para nos vender a ideia de que esta ONG está a soldo do tráfico. Há quem faça a acusação de outra forma, mais subliminar: que, completando a última parte da viagem dos refugiados, ajudam os traficantes e até lhes poupam trabalho. A melhor resposta que li, foi no Twitter: é como acusar os médicos do IPO de ajudar as tabaqueiras ao minimizar os danos do seu esquema. É perversão absoluta de todos os valores. Salvar um náufrago é um dever. Um dever escrito nas leis do mar e na decência de qualquer pessoa. Uma Europa que o nega é uma Europa que não pode ser exemplo de nada para ninguém.

Parece que anda tudo à procura de qualquer coisa em que acreditar. De heróis. Se querem um herói e se ele não tiver de ser futebolista e milionário, têm um português da Azambuja, com 26 anos e a fazer um doutoramento em Matemática. Arrisca-se, por ter dedicado parte da sua juventude a salvar vidas, a uma pena de prisão de 20 anos. A acusação de que foi alvo gerou uma onda de solidariedade que permitiu recolher dezenas de milhares de euros para a sua defesa. Não sei se algum juiz terá coragem de condenar o Miguel e os seus companheiros. Não o desejo, mas talvez isso acordasse as consciências europeias. Ainda assim, parece-me que o objetivo político desta acusação é outro e já foi conseguido: semear o medo nas ONG e nos seus voluntários. Das dez ONG que resgatavam refugiados, só uma se mantém no ativo.

Miguel Duarte contou, numa entrevista, que o que mais o impressionou nas experiências que teve nas operações de resgate ou nos campos de refugiados para onde foi nos intervalos, foi a gratidão. E que a imagem mais forte é a de ver que, mal se sentem em segurança, aqueles seres humanos adormecem. Nós não temos qualquer razão para dormir. Pelo menos enquanto os governos europeus continuarem a condenar à morte por afogamento centenas de refugiados.»

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19.6.19

Marketing realista


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Beatas e cidadanias



Já há quase três décadas, passeava eu pelo centro de Estocolmo num grupo de cinco ou seis pessoas de várias nacionalidades, num daqueles dias com fim quase à meia noite. O passeio era largo, certamente que teriam nele veraneado milhares de pessoas e estava absolutamente limpo.

Foi então que alguém perguntou ao único sueco do grupo como conseguiam que nem uma ponta de cigarro se visse no chão. Nunca esqueci a resposta que deu: «Sabem, nós desde crianças que não temos qualquer prazer em sujar o chão. Não sei bem porquê, mas creio que nos ensinam isso desde que nascemos».

E garanto-vos eu que não vi nenhum polícia a caçar multas.
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Ontem foi assim





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O tamanho conta mesmo?



«À medida que nos aproximamos do fim desta primeira temporada da Lei de Bases da Saúde, o tamanho vai contando cada vez mais. O PS afirma que a divergência sobre hospitais privados gerirem os hospitais públicos é coisa insignificante, há tantas outras questões, esta está no fundo da lista de prioridades. Ora, sendo a questão pequena, recusa qualquer entendimento e prefere que não haja lei a haver um compromisso. A esquerda, pelo contrário, afirma que essa divergência é coisa grande. E, por isso mesmo, para resolver a questão, sugeriu compromissos para que haja lei. Há aqui dois pesos e duas medidas. Para o PS, se é pequeno o motivo, é caso de rutura. Para a esquerda, se é grande, é caso para se falar.

Assim, passaram a estar em cima da mesa dois temas, nenhum deles de somenos. O primeiro é a Lei. Uma Lei de Bases é um quadro organizador da legislação sobre as prioridades, a estratégia, as instituições, o funcionamento e as pessoas do Serviço Nacional de Saúde, bem como sobre o quadro em que se desenvolve a atividade empresarial na saúde privada. Concretiza o princípio constitucional de assegurar a proteção universal em saúde. A partir dessa lei define-se o princípio da atividade dos serviços de saúde. E depois falta tudo o resto: financiamento, recrutamento e qualificação de quadros, construção de serviços e edifícios, articulação entre instituições de saúde, campanhas de prevenção, educação para a saúde, investigação científica. A Lei é um ponto de partida e depois terá que vir o plano de ação. Se só houver lei e não houver nem financiamento nem pessoas, tratar-se-á de uma mistificação.

Há depois a segunda questão, que foi ganhando corpo à medida que se foi tornando evidente que o PS só aceita um acordo desde que este garanta a continuação da gestão privada dos hospitais públicos. Para manter esta posição intransigente, o Governo sabe que corre riscos, em particular quando a perceção pública dessas parcerias é tão negativa, depois do fim do contrato de Braga e com as investigações da Polícia Judiciária em Cascais, com as acusações do regulador em Vila Franca de Xira (que terão levado ao fim do contrato) e com as acusações de um sindicato médico em Loures. Apesar disso, até à hora em que esta crónica é escrita, tem ficado evidente que para o PS não pode haver lei se ela não determinar que este modelo deve continuar. E exibe assim uma forma de negociar que não aceita qualquer compromisso e, como se viu, até é capaz de rasgar uma negociação e recusar as suas próprias propostas quando outros interesses se levantam.

Há neste modo napoleónico uma arrogância que é um preocupante sinal para o futuro imediato. Mais vale não fechar os olhos ao problema. Se Portugal viver maiores dificuldades nos próximos anos, e vai mesmo viver, é preciso aprender com o passado e melhorar o que correu bem. É preciso mais capacidade de trabalho em alternativas concretas. É preciso mais conhecimento dos problemas da vida social. E isso significa que as soluções autoritárias são as piores, são as mais fechadas e promovem interesses particulares contra o interesse geral. Como se verifica na questão da saúde.»

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18.6.19

O PS orgulhosamente só



Chumbada proposta do PS para nova Lei de Bases da Saúde.

«Todos os partidos votaram contra, à excepção do PS.»
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Os portugueses, esses mentirosos compulsivos



Isto é extraordinário! Olhem que eu já falei aqui de muitos destinos das minhas férias, mas que eu seja ceguinha se algum foi inventado. Que raio de país!


«De acordo com uma sondagem da Jetcost, 31% dos portugueses mente sobre o seu destino de férias, o que equivale a três em cada dez pessoas. (…)

Segundo a mesma nota da Jetcost, 60% dos entrevistados responderam que já tinham mentido ou exagerado sobre qualquer aspeto das suas férias.

Entre as várias respostas, 36% dos entrevistados respondeu que mentiu sobre o que tinha feito, 31% sobre o destino onde tinham ido, 26% mentiu sobre a qualidade do alojamento, 24% sobre a quantia gasta, 20% sobre a quantidade de álcool consumida e 16% sobre o número de visitas turísticas e/ou atividades culturais realizadas.»
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A história contada pelos invisíveis


Pode ouvir AQUI uma crónica de Daniel Oliveira na TSF.

«O colonialismo português "não foi menos criminoso do que o colonialismo inglês, francês ou espanhol": "Só foi criminoso até mais tarde. Os massacres do Wiriyamu, em Moçambique, da Baixa do Cassange, em Angola, de Batepá, em São Tomé e de Pidjiguiti, na Guiné, aconteceram entre 1953 e 1971."»
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Os silêncios que não queremos ouvir



«A verdadeira exclusão social é feita de silêncio e de invisibilidade.

Um silêncio e uma invisibilidade que crescem numa Europa perdida entre o que foi (e o que sonhou ser) e o que é (e o que jamais virá a ser).

O silêncio e a invisibilidade que se escondem nos bares de alterne ou nas montras dos red district, sob luzes que camuflam destinos demasiado pobres, demasiado frágeis e demasiado sós, onde talvez, em tempos, tenham cabido sonhos, mas onde hoje já só cabe o medo. Destinos forjados no Brasil ou na Nigéria, na Roménia ou na Ucrânia e sustentados em violência, em abuso, em ameaça, ou até, quem sabe, numa promessa de amor.

O silêncio e a invisibilidade dos amanheceres passados nas limpezas dos grandes escritórios e armazéns, depois de o despertador tocar insuportavelmente cedo, chamando para dias que serão sempre longos, porque há mais escritórios e lojas para limpar ao cair da noite, ainda antes de o comboio (ou de o barco) embalar os corpos, num sono cansado, de regresso a casa.

O silêncio e a invisibilidade dos bairros das periferias de Paris, de Bruxelas, de Amesterdão, de Madrid (e de Lisboa, sim, de Lisboa), europeus na geografia e magrebinos ou africanos no pulsar quotidiano, onde as chamadas segundas e terceiras gerações de imigrantes se enchem de nada, arrastando as horas e as vidas, desencontrados entre as suas origens étnicas e religiosas (remotas) e o seu futuro de cidadãos europeus (mais remoto, ainda).

O silêncio e a invisibilidade das casas velhas, habitadas por gente velha, que engana a solidão com os gritos de um televisor permanentemente ligado, no costumeiro desfile diário de infortúnios alheios, enquanto as paredes suspiram por essa remodelação, que as há-de transformar num concorrido apartamento de alojamento local.

Porque a verdadeira exclusão não se mede em subsídios e prestações sociais, nem em estatísticas de intencionalidades variadas. Nem tão-pouco a desigualdade e a injustiça se aferem em contestações e revoltas, mais ou menos mediatizadas.

A exclusão, a verdadeira exclusão, sente-se no silêncio e na invisibilidade em que já se nasce, em que já se morre, e em que tantos vivem, numa Europa presa entre a retórica balofa da tecnocracia e os jargões acéfalos do preconceito fácil.

A exclusão, a verdadeira exclusão, sofre-se no silêncio e na invisibilidade de gente que não é interessante do ponto de vista eleitoral (porque não vota) e, por isso, é esquecida pelos políticos.

O silêncio e a invisibilidade de gente que não é, também, interessante do ponto de vista dos media, porque não tem voz, nem tem rosto e, por isso, não costuma fazer notícia, excepto quando o silêncio se faz grito ou a sombra se faz sangue. E, nesses momentos, logo acorrem todas as carpideiras, todos os profetas da desgraça e todos os messias bem-intencionados, em discursos pungentes e em directo para as câmaras de televisão, devidamente acolitados por várias cabeças em concordantes acenos, prontos a debandar, todos eles, para outras paragens de, igualmente efémera, relevância mediática.

A exclusão, a verdadeira exclusão, que se reveste de silêncio e se cobre de invisibilidade, é desistência, ou desesperança, ou raiva, ou é tudo isto misturado, numa Europa que, velha, abúlica e atordoada, pouco mais faz do que desviar o olhar, ao mesmo tempo que diz, entredentes e para si própria, que para incómodo já lhe basta a vida.»

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17.6.19

Cazaquistão



No passado dia 9, realizaram-se eleições presidenciais no Cazaquistão, um país da Ásia Central a que ligamos pouca importância. E fazemos mal, porque é o nono do mundo em extensão, com uma área superior à da Europa Ocidental, e um peso considerável na área, aparentemente com tendência para crescer.

Foi governado durante trinta anos por Nursultan Nazarbayev, que renunciou ao cargo em Março deste ano e nomeou como presidente interino Qasim-Yomart Tokayev – seu candidato favorito e, infelizmente, vencedor óbvio das eleições agora realizadas. Houve alguma contestação que foi reprimida, o novo presidente dá aparência de alguma abertura (como se vê no vídeo com uma entrevista divulgada agora pela Euronews), mas… as liberdades ainda vêm longe.

Estive lá há três anos e escrevi um texto que sobre a belíssima capital do país – então «Astana» e agora rapidamente baptizada com o nome do ex-presidente, «Nursultan», assim que este renunciou ao cargo. Esclarecedor, não?

Não sei se se realizará a previsão que um cazaque me transmitiu quando lá estive: «Esperamos que o “nosso presidente”, que tem 77 anos, ainda dure muito: já encheu os bolsos há que tempos, depois fez bem ao povo. Quando vier outro, vai primeiro encher os bolsos.»


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Hong Kong


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«Correio da Manhã», esse arauto das verdades



«O Correio da Manhã diz que tenho um gabinete no Banco de Portugal ao lado do de Constâncio. Era giro se não fosse mentira

Afirma o Correio da Manhã, com pompa, que tenho um gabinete no Banco de Portugal ao lado do de Constâncio. O único problema é que é mentira. Não tenho nenhum gabinete no Banco de Portugal.

Sou membro do Conselho Consultivo do Banco, o que implica participar duas vezes por ano numa reunião para discutir as contas da instituição. Não recebo um cêntimo por isso. Não tenho gabinete. Não tenho acesso a serviços do Banco.

O Correio da Manhã decidiu inventar. Podia ter investigado, perguntado ao Banco, podia ter-me perguntado. Mas isso implicava publicar a verdade e não uma mentira, e uma mentira é sempre mais apetitosa.

Da próxima vez, sugiro ao diretor do Correio da Manhã que invente melhor: porque não um gabinete com suite, um motorista, um BMW e uma casa de férias paga pelo Banco?»

Francisco Louçã no Facebook
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Acusados por salvarem migrantes



Pia Klemp era a capitã do Iuventa. A alemã não estava sozinha no barco, nem estará sozinha no banco dos réus, acusados por salvarem migrantes no Mediterrâneo. São ao todo dez os activistas que foram constiuídos arguidos em 2018, entre eles um português.


Há uma PETIÇÃO online, a caminho das 200.000 assinaturas, e que merece adesão AQUI.
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Dedicação exclusiva no SNS



«Na altura em que tanto se discutem matérias que pouco dizem ao Povo, parece-me indispensável centrar a discussão num tema central, o do modelo de trabalho dos seus profissionais. Reforçar as condições para uma gestão de qualidade, reconduzindo profissionais ao amor à camisola, através da concentração do seu labor nos serviços que os treinaram, onde conheceram pares e são por eles reconhecidos, numa hierarquia de competência e dedicação. O que escrevo centra-se nos médicos, mas pode ser adaptado aos restantes membros das equipas de saúde.

Longe vai o tempo em que muitos eram contra: figuras tutelares com clínica firmada, jovens que a ambicionavam e esgravatavam em múltiplos lugares, voando de mini-cooper entre urgências e consultas periurbanas; uma Ordem receosa do socialismo do SNS, arvorando as respeitáveis bandeiras da autonomia, do colóquio singular, do liberalismo. Os tempos foram mudando à medida que os hospitais se modernizaram, os centros de saúde desabrocharam em unidades familiares e os profissionais ganhavam respeito ao SNS pela formação e pela hierarquia que garante ajuda e qualidade.

O setor privado não dormiu, cresceu, absorvendo a clínica privada independente, através de eficientes ambulatórios de mais de uma centena de consultórios, excelente tecnologia e acolhedor tratamento, captando bons profissionais na força da vida, com retribuição líquida dobrando a do SNS. Aos poucos, porém, vai-se sentindo a pervasiva coação das metas, dos incentivos à eficiência, sem paralelo numa cultura de qualidade que não a orientada para alargar mercado. A proletarização vem a caminho.

A dedicação exclusiva do passado recente, inexplicavelmente extinta no final da primeira década, tinha fragilidades: com as exceções de sempre, atraía os que estavam próximo da reforma, os mais orientados para soluções coletivistas, ampliava os quadros dos hospitais centrais desfalcando os do interior, desincentivava a mobilidade, mas garantia estabilidade. Mal gerida e nem sempre bem-amada exceto no fim da vida ativa, a exclusividade garantiu, no SNS, a qualidade, o brio, o sentido de pertença, as carreiras. Razão para que ela seja revigorada. Surge agora a oportunidade.

Parece haver candidatos interessados, alguns até a prefeririam à emigração. Os hospitais, todos, anseiam por elas. As Ordens têm-se multiplicado em declarações favoráveis. Os administradores apoiariam sem reservas. Os programas políticos, da esquerda à direita, confirmam a sua necessidade, os ministros consideram-na uma aspiração, louvável para uns, indispensáveis para outros. Os pais fundadores do SNS e os seus herdeiros presuntivos não poderiam ser mais explícitos, as leis de bases propostas louvam-na como pedra filosofal. Quem se opõe, então? Dizem que as Finanças, sempre receosas de despesa pública incontrolada, se oporiam com firmeza e sanha. Será verdade?

Não o creio, as Finanças são resilientes, tendem a lutar contra a deriva e a regressar ao padrão controlador, têm serviços mais restritivos que ministros. Sim, tudo isso pode ser verdade, mas parte dessa verdade reconstrói o País depois das crises. Não o esquecemos. Resistência ao risco não é sinónimo de perda de inteligência. Há que explicar, que demonstrar os ganhos de eficiência, que convencer.

Há muito trabalho de casa nos escassos meses até às eleições. Novos governos carecem de novas ideias e chegam com a força que falece no fim do ciclo. Haverá que reunir um grupo de peritos com experiência, conhecimento, pragmatismo, vivência externa e legitimidade. O seu papel seria desenhar a nova dedicação exclusiva no SNS de forma a convencer os que a venham a abraçar, de que ela amplia eficácia, eficiência, equidade e qualidade no SNS. Sobretudo usar de realismo no faseamento, para garantir adesão e sustentabilidade crescentes. Nada é impossível. Está na altura.»

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16.6.19

Frida Kahlo




Ler: Será esta a voz de Frida Kahlo?
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No pasarán?





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David Mourão-Ferreira morreu num 16 de Junho



David Mourão-Ferreira morreu em 16 de Junho de 1996. Um dos nossos grandes poetas do século XX, ficcionista também, acidentalmente político como Secretário de Estado da Cultura, de 1976 a Janeiro de 1978 e em 1979, autor de alguns poemas imortalizados pelo fado na voz de Amália Rodrigues.

Dois poemas ditos pelo próprio, dois outros cantados por Amália:











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Velhos e beatas



«Cada número é uma agressão. Um idoso. Uma idosa. Às vezes um estalo. Mas há murros. Pontapés.

E sabe-se lá que misérias mais escondem quatro paredes. Às vezes de um familiar. Um filho ou uma filha. Outras de um cuidador. Pago para cuidar.

Os números são aterradores. Quase quatro mil só nos primeiros meses deste ano. Mas tanto as polícias como a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima temem que sejam muitos mais. Bastantes mais, escondidos na vergonha da denúncia e no medo da solidão. De acabarem sozinhos.

Os números são aterradores, mas bastaria um. Com um nome e um rosto. E não há um clamor. Uma ténue revolta. Uma indignação. Vá, uma pequena intenção, quanto mais não fosse para reforçar os meios do Ministério Público, que, perante tantos processos abertos no ano passado (15 997), assume, em declarações a este jornal, ser a violência contra idosos uma área de intervenção prioritária, uma realidade que "merece particular atenção por parte da investigação criminal".

Há falta de políticas concretas para as terceira e quarta idades, lares decentes, integração social, combate ao abandono e à solidão. Mas perante os velhos, o país político que criou nos anos da troika a inveja geracional, empurrando a "peste grisalha" para o patamar dos alegados privilegiados, não é muito diferente do país político que se entretém a aprovar e a debater multas pesadas para os prevaricadores das beatas de cigarros.

Não está aqui em causa a necessidade de sensibilização de um povo que ainda cospe para o chão de perceber que a responsabilidade entre gerações é também tentar deixar como herança um planeta melhor, que se afunda no aquecimento global. Está sim a criação da brigada do policiamento dos costumes, todas as dúvidas sobre quem fiscaliza, com que meios, como se regista o cadastrado que deitou a beata para o chão, a carta de pontos do prevaricador, mas sobretudo a falta de perspetiva e de noção da realidade das necessidades dos portugueses.

Mas é provável que os velhos não sejam uma causa fraturante.»

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