28.9.19

Bloco de Esquerda



Mega almoço nacional. 
Pontapé de partida para os próximos quatro anos.





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28.09.1974 – A «Maioria [que ficou mesmo] Silenciosa»



Há 45 anos, o país esteve agitado. Esperava-se a realização da chamada «Manifestação da Maioria Silenciosa» – uma iniciativa de apoio ao apelo do general Spínola, convocada dias antes por cartazes que invadiram a cidade.



Acabou por ser proibida pela Comissão Coordenadora do Programa do MFA. Antes disso, Spínola, que tinha tentado, sem sucesso, reforçar os poderes da Junta de Salvação Nacional, acabou por emitir um comunicado, pouco antes do meio-dia, a agradecer a intenção dos manifestantes, mas declarando que, naquele momento, a manifestação não seria «conveniente».

Os partidos políticos de esquerda (CARP M-L, CCRM-L, GAPS, LCI, LUAR, MDP/CDE, MES, PCP m-l, PCP, PRP-BR, URML), sindicatos e outras organizações tinham desencadeado, no próprio dia, uma gigantesca operação de «vigilância popular»: desde as primeiras horas da manhã, dezenas de grupos de militantes distribuíram panfletos e pararam e revistaram carros em todas as entradas de Lisboa. Mas não só: foram erguidas barragens, para impedir o acesso à manifestação, em Viana do Castelo, Santo Tirso, Trofa, Póvoa de Varzim, Vila do Conde, Porto, Chaves, Mealhada, Viseu, Guarda, Coimbra, Vila Nova de Poiares, cintura industrial de Lisboa, Grândola e Alcácer do Sal.

Em 30 de Setembro, Spínola demitiu-se do cargo de presidente da República, sendo substituído pelo general Costa Gomes. Fechou-se assim o primeiro ciclo político do pós 25 de Abril. 
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Macron? Como eu os compreendo...


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As campanhas servem para alguma coisa?



«Se o padrão se repetir, 80% dos eleitores já decidiram, por esta altura, o sentido do seu voto a 6 de outubro. Aliás, se se confirmar o que aconteceu nas últimas cinco legislativas, é expectável que cerca de 8% dos portugueses decida em quem vai votar ao longo da semana, 4% no sábado e uns surpreendentes 7,5% no próprio dia do voto.

Escrito assim, parece um determinismo exagerado, contudo é o que nos dizem os dados dos inquéritos pós-eleitorais que têm sido conduzidos pelo ICS desde 2002. É precisamente sobre este tema que trata o oportuno livro acabado de publicar de Marco Lisi, “Eleições — Campanhas Eleitorais e Decisão do Voto em Portugal”.

A grande inovação do livro de Marco Lisi está no facto de ir além da análise dos determinantes clássicos do voto (que explicam os 80% já decididos) para se concentrar nas margens de instabilidade eleitoral, nomeadamente no papel das campanhas e dos fatores que explicam o voto dos eleitores mais indecisos ou daqueles que mudam de sentido de voto de eleição para eleição. No fundo, é um livro sobre o que foi decidido na semana que terminou e o que falta apurar na que agora se inicia.

O tema é importante. As campanhas eleitorais são momentos únicos para um contacto menos intermediado entre os cidadãos e a política e a literatura dá conta de um progressivo enfraquecimento dos fatores de longo prazo na decisão do voto (os sociodemográficos e as predisposições políticas), acompanhado por uma relevância crescente dos fatores de curto prazo (o impacto da economia, o desempenho do governo e a avaliação dos líderes). E é nesta medida que as campanhas contam, resta saber de que modo.

Lisi concentra-se em dois grupos de eleitores, que são, aliás, em número crescente: os indecisos e os voláteis. Com uma análise sofisticada, deixa-nos conclusões importantes que ajudam a compreender o que ainda está em jogo nos próximos dias.

Ficamos a saber que, entre nós, os indecisos já não são os menos qualificados, mas, sim, tendencialmente, os jovens, aqueles que têm níveis de qualificação mais elevados e estão empregados. E, claro está, apresentam traços de desafeição e fraco interesse pela política. Já aqueles que mudam de voto entre eleições são relativamente indistintos sociodemograficamente e fazem-no mais por fatores conjunturais. Ao que acresce que a volatilidade é maior à esquerda do que à direita, já que, neste sector, a disponibilidade para ultrapassar a fronteira ideológica é menor.

O que nos devolve ao próximo fim de semana. Haverá 20% de eleitores que ainda não decidiram o seu voto e que, mesmo pouco mobilizados, são particularmente influenciados pela campanha. Um grupo de eleitores que, na hora do voto, tende a decidir com base nas lideranças e na avaliação da governação da legislatura. Desta feita, não será muito diferente.»

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27.9.19

Tancos – é mais ou menos isto



«Já experimentaram contar a um americano que em Portugal os tipos que assaltaram um arsenal militar, arrependeram-se, contactaram com quem os procurava, combinando com quem os devia prender a devolução do que tinham roubado e acabaram a devolver mais equipamento do que o que tinham levado?

E que depois a trama foi descoberta porque um especialista em comunicações militares foi fazer uma chamada anónima a uma cabine telefónica num local remoto e levou o seu telemóvel pessoal ligado?

E que depois deputados e especialistas militares partilharam entre si informações em segredo de estado através de SMS?

E que um dos alegados envolvidos era chefe da casa militar do Presidente da República?

E que nada disto se passou na surreal Fargo, mas sim na bucólica localidade de Tancos?

Post scriptum: Já vos disse que alguns dos arguidos respondem pelas alcunhas de "Laranjinha", "Caveirinha", "Tije" e "Baião" e que o informador da PJ é o... "Fechaduras"?

E que ainda ninguém sabe quem afinal é o "Papagaio-mor do reino".»

Paulo Mendes no Facebook
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Raoni diz que Bolsonaro "deve sair para o bem de todos"




«Jair Bolsonaro "não é um líder e deve sair", para "o bem de todos": esta foi a resposta do cacique Raoni Metuktire, emblemático defensor dos direitos dos povos indígenas da Amazónia, ao discurso do presidente brasileiro em Nova Iorque.»
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PSD sobe quase cinco pontos e deixa PS mais longe da maioria


Sondagem da Aximage, hoje divulgada:

PS 37,4% / PSD 25,2% / BE 11% / CDU 6,8% / CDS 5,1% / PAN 3,6%

Livre 1,6% / Chega 1,4% / I.Liberal 1,2%

(Daqui)
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Golpe de marketing em Alfama



«O problema da campanha do Minipreço nos estendais de roupa de Alfama não é ser publicidade a fazer de conta que não é publicidade. Conhecemos isso há anos. Chama-se product placement ou embedded marketing.

Em 2002, os candeeiros Boa Nova, de Álvaro Siza, apareceram em dois episódios da série Sexo e a Cidade a custo zero — foi pura sorte. No mesmo ano, um quarto do orçamento de Relatório Minoritário, de Steven Spielberg, foi financiado com product placement: a Toyota pagou cinco milhões para ter um Lexus futurista, a Nokia pagou dois milhões para os protagonistas usarem os seus auscultadores — e se vir os logos da Gap, Pepsi, American Express e Reebok também não é por acaso. Em 2014, a Emirates Airlines pagou 100 milhões para ter sete manequins vestidas com a farda das hospedeiras da companhia alinhadas atrás da equipa da selecção nacional que ganhasse o mundial de futebol do Brasil — foi a Alemanha. E há dias soubemos que a telenovela da SIC Nazaré tem uma personagem que é enfermeira porque a Ordem dos Enfermeiros pagou 36 mil euros.

Com mais ou menos dinheiro, desde os anos 1970 que é assim. As marcas querem aparecer sem parecer que pagaram para ali estar. Nisso, a campanha Estende a Renda do Minipreço segue uma linhagem com pedigree.

A diferença está no orçamento. O Minipreço não pagou milhões, nem milhares, nem nada que se aproxime dos valores do mercado de publicidade português. Pagou 50 euros a cada uma das 12 pessoas que penduraram cartazes nos estendais. 50x12=600. O Minipreço fez uma campanha publicitária com impacto mediático nacional, que gerou buzz nas redes sociais, 30 notícias e pseudo-notícias no Google e a “repercussão na sociedade” de que os especialistas em marketing falam por 600 euros. Perguntei a um especialista: alugar uma rede de mupis em Lisboa custa entre cinco mil e 30 mil euros. Alfama foi um bom negócio, mas não é a definição de win-win.

O que o Minipreço conseguiu é de mestre. Fez passar a mensagem de que é uma empresa “solidária”, que se preocupa com a cidade, que “quer combater a subida de rendas” nos bairros históricos e ajudar os pobres que estão a ser pressionados para sair das suas casas. Tudo isso e ainda poupou milhares de euros.

Declaração de interesses: os donos do PÚBLICO são donos do Continente. O Minipreço tem 4% do mercado e o Continente 22%, mas é possível que sejam adversários. Não lhes quero complicar a vida e sei que o grupo espanhol que comprou a rede teve um prejuízo de 420 milhões de euros no primeiro semestre deste ano.

Mas ontem quando acordei e li as notícias, a manchete do Guardian era sobre o choque causado por uma resposta de Boris Johnson, na véspera, num debate na Câmara dos Comuns e cosi as duas coisas.

Emocionada, uma parlamentar trabalhista pediu a Johnson para “moderar a linguagem” de modo a não inspirar os fanáticos pró-Brexit e o primeiro-ministro britânico respondeu assim:

— I have to say Mr. Speaker I’ve never heard such humbug in all my life. 

O dicionário Merriam-Webster diz que o primeiro registo de “humbug” é de 1751 e que significa “alguma coisa feita para enganar ou iludir”.

Não tenho a certeza de que “humbug” seja a palavra certa para descrever a campanha publicitária do Minipreço em Alfama. Mas à falta de melhor proponho esta.

O problema da campanha do Minipreço não é a ideia. O problema são os números. O Minipreço não distribuiu cupões de 50 euros pelo bairro de Alfama, onde ainda há dois mil eleitores, mais as crianças. Deu cupões de 50 euros a 12 pessoas do bairro. Definiu um limite de dez beneficiários e, com jeitinho, aceitou acrescentar mais dois. E, no início, quando a empresa de marketing foi ao bairro apresentar a proposta, não havia sequer a intenção de pagar fosse o que fosse. Queriam que as pessoas “estendessem” publicidade nos seus estendais a troco de nada.

Liguei a Lurdes Pinheiro, presidente da Associação do Património e População de Alfama e ex-autarca da CDU, e ela contou que foi a associação quem perguntou à agência de publicidade se “havia contrapartidas para os moradores”. “Fomos nós que perguntámos. Senão, seria como a Sagres, que nos Santos Populares e no festival do fado pendura bandeiras nas varandas de Alfama a troco de quatro garrafas de cerveja.” E a Sagres, contou também, nem pede licença: “Vi com os meus olhos eles abrirem o escadote e montarem as bandeiras nas varandas por fora.”

A conversa com Lurdes Pinheiro daria uma crónica inteira. Há uma tragédia a acontecer em Alfama. Explorar essa tragédia é um golpe de marketing. O problema é que é apenas isso.»

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26.9.19

Memória dos sítios e História: a propósito do Estado Novo e sua museologia



A questão do «Museu de Salazar» (chamem-lhe o que quiserem, será sempre isto) não está esquecida. Miriam Halpern Pereira, que foi directora do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, manifesta-se, hoje, no Público:

«É no edifício da ex-Escola-Cantina Salazar, sediada junto à antiga casa do ditador, em Vimieiro, concelho de Santa Comba Dão, que se tem vindo a propor a instalação de um centro interpretativo do Estado Novo. Mais tarde, os objectos ligados à memória pessoal do ditador seriam expostos na casa onde nasceu, facilmente transformada em lugar de romagem política. Ambos os edifícios ficam próximos, na Av. Dr. António Oliveira Salazar. (…)

Estamos bem posicionados para avançar com uma musealização do Estado Novo. A questão que se coloca é a sua topografia. Há necessidade de outra dimensão. Um museu ou centro interpretativo sobre o Estado Novo, e não sobre Salazar, não deve estar ligado a um sítio de memória. Isto conduz-me a levantar uma questão mais ampla, a necessidade de um museu de História de Portugal. Os principais países europeus têm este tipo de museu, que se encontra sediado nas suas capitais. (…)

Porventura, poderíamos também nós ter evocado criticamente a institucionalização do Estado Novo nesse ano, se tivéssemos um museu dedicado à História de Portugal. Num país com parcos recursos, não se devem multiplicar os museus históricos de âmbito nacional, cada um referente à sua época. É tempo de pensar nisso.»
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Apelo ao voto no Bloco de Esquerda



Figuro nesta lista, como habitualmente e com muita honra.


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O PS, os empecilhos e as circunstâncias



«1975, de novo. Era inevitável que esta retórica do PS e de Costa contra os partidos à sua esquerda (“os empecilhos” à governação), e em especial contra o Bloco (“irresponsável”, não fiável) o fizesse regressar à memória da Revolução. Omitindo que foi Costa abriu as hostilidades, Manuel Alegre, que foi dos que, ao contrário de boa parte dos atuais ministros, aplaudiu os acordos à esquerda de 2015, acha que “o Bloco voltou metaforicamente ao verão de 1975”, como se “fosse preciso (...) criar outro partido verdadeiramente socialista” (PÚBLICO, 23.9.2019). É que, pelo menos desde aquela famosa tirada de Mário Soares sobre ser necessário “meter o socialismo na gaveta” (1978) dadas as condições económicas do país, que o PS sabe bem que essa é a dúvida que toda a gente tem em Portugal sobre ele.

A razão pela qual, ao contrário da maioria dos países europeus, a CDU e o BE, os “empecilhos” à esquerda do PS, têm mantido nos últimos 45 anos entre 15% e 20% dos votos, impedindo (como em 2005) que este consiga (apesar de ser claramente favorecido pelo sistema eleitoral) a maioria absoluta, tem tudo a ver com essa dúvida: querem os socialistas caminhar para o socialismo? A pergunta não é extravagante: o PS fundou-se a dizer que era isso mesmo que queria; e por isso aprovou a Constituição de 1976, que inclui ipsis verbis o essencial do seu programa – redigido em 1973, num momento em que o PS não estava sujeito (como depois Soares tantas vezes insistiria) a nenhuma “pressão revolucionária”, muito menos ao “anarco-populismo” que Alegre voltou agora a dizer que teria caracterizado “as tentativas pseudo-revolucionárias do verão [de 1975]”! O PS e Soares assumiam que lutavam pela nacionalização da “grande banca” e das “grandes empresas monopolistas que exerçam uma atividade de serviço público”, pela “coletivização dos meios de produção e distribuição”, pela reforma agrária “optando pela exploração em herdades coletivas ou através de cooperativas agrícolas”, por uma “via portuguesa para o socialismo”. Não pasmem, foi assim mesmo! E se tudo isto ficou na Constituição de 1976, votada pelo PS e pelo PPD quatro meses depois do 25 de Novembro e da derrota da esquerda militar, até pode ter sido por pressão do PCP na Constituinte, ou, sobretudo, como resultado dos movimentos de ocupação de terras e casas, do controlo operário de empresas cujos proprietários as tinham deliberadamente abandonado e feito soçobrar – mas, se assim foi, é porque o PS terá sido obrigado então a constitucionalizar o seu próprio programa e não o programa do PCP!

Quem há quatro anos fez toda aquela campanha contra a inédita negociação que Costa aceitou fazer à sua esquerda, acusando-o de “trair o partido de Mário Soares”, esqueceu-se de que, a haver uma tradição fundadora do PS, ela teria que estar no programa de 1973, no qual se dizia, por exemplo, que a Comunidade Europeia era um projeto “neocapitalista” e “uma criação do patronato multinacional”. Que tenha sido o primeiro governo socialista a iniciar, em 1977, a adesão a tal projeto é revelador de como os socialistas entendem que se deve governar em democracia: comprometer-se com princípios centrais da democracia económica e social mas encontrar permanentemente razões contextuais para impedir a sua realização e fazer outra coisa. Que o PS tenha descrito a Constituição de 1976 como uma imposição com que tivera que transigir, apesar de ela ser em grande medida o seu próprio programa, e que tenha acordado com a direita todas as revisões estruturais (1982 e 1989) que eliminaram tudo quanto o PS incluíra no seu próprio programa económico e social, que os governos PS tenham privatizado muito mais que os da direita, que tenham negociado três acordos com o FMI (1977, 1983, 2011), permitiu sempre alimentar essa dúvida sobre a fiabilidade do PS – a mesma que tem vindo a arruinar a social-democracia europeia. Esta não é apenas uma história de não se cumprir o que se promete; é de não se ser quem se diz que é.

O PS é o partido do contexto: se não der, adia-se; se Costa diz agora que “Portugal não é um país cor de rosa” (SIC, 4.9.2019) é porque se prepara para mudar de contexto, e dir-nos-á que as circunstâncias o obrigam a mudar de rumo.

Tinha razão Jerónimo de Sousa quando dizia que em 2015 “o PS não mudou; as circunstâncias é que mudaram”. Só nos resta é fazer com que as circunstâncias o obriguem a mudar. E isso só votando nos “empecilhos” à esquerda do PS.»

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25.9.19

Notícias do mundo real




«O Aeroporto Internacional de Pequim Daxing foi construído em menos de cinco anos e está projetado para receber 72 milhões de passageiros por ano. (…) 

O principal aeroporto da capital chinesa, situado no norte da cidade, é o segundo mais movimentado do mundo e o volume de passageiros está próximo do seu limite de capacidade. Em 2018, pela primeira vez, excedeu os 100 milhões de passageiros anuais.»
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Papagaio




Quem é o papagaio-mor, quem é? Aceitam-se apostas.
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Cristas entrou determinada a provocar um enorme chavascal



«Rui Rio

Possui a fisionomia mais interessante de todos os candidatos, em que a testa alta e a ténue hipotrofia das partes constituintes cria uma ilusão de concavidade que irradia a partir do centro, e o faz parecer mais distante de quem observa. É o complemento ideal da sua postura típica, curvado sobre o ângulo dos cotovelos, como um homem incessantemente empenhado em assegurar que tem os pés bem assentes na terra (a mesma terra que um dia nos vai engolir a todos e devolver-nos os cadáveres à poeira).

O tom que Rio adoptou - ou descobriu - ao longo da campanha é o equivalente retórico ao rescaldo de uma moderada crise de meia idade: o fatalismo confiante de quem percebeu que vamos todos morrer e que encontrou nessa revelação um motivo de alegria, bem como a sua modalidade preferida de senso comum. "Bom, vamos lá ver uma coisa", "Temos aqui um debate sobre uma coisa um bocado esquisita...", "Andamos aqui todos à volta dos números, né, mas...". São os maneirismos típicos de quem quer lisonjear o receio da complexidade, mas também formados pelo hábito da súmula final: da pessoa no café que espera que toda a gente acabe de falar antes de os informar que não é bem assim e que tudo aquilo foi uma perda de tempo escusada.

Como fatalista, é possível que tenha uma suspeita secreta de que não é suposto estar a divertir-se tanto. Mas não o consegue evitar, e era claramente a pessoa mais feliz entre todos os presentes.


António Costa

Como um concorrente do Preço Certo, chegou confiante e bem disposto; a boca repleta de algarismos, e os braços carregados de presentes, que tentou distribuir por toda a gente: dados estatísticos, recortes de imprensa, doçaria regional.

A estratégia de recitar percentagens sucessivas como um triunfante poema em verso branco ("baixámos de 25%/ para 24,9%!") soçobrou na ingratidão de adversários e aliados, ambos incapazes de reconhecer os méritos estéticos de uma boa décima percentual.

Visivelmente desiludido, recuou para terrenos mais familiares, dedicando toda a sua energia a demonstrar a fragilidade de um conceito problemático que é mais uma sobreposição quântica do que uma condição estável: o conceito de "vogal". Fonemas em cuja emissão o ar devia passar livremente pela boca encontram nele uma obstrução inesperada, mas firme, própria de quem é fiel aos seus princípios. Na sua faceta mais conciliadora, Costa tentou repor alguns cortes do passado, embora nem sempre da forma mais criteriosa ("Ntrdade carbónica", por exemplo, ressurgiu como "naturalidade carbónica"). Mas quando se sentiu mais cercado, não cedeu um milímetro ao vocalicamente correcto, prometendo combater a prcridade, aumentar o cmpmento sldário para idosos, e aludindo mais uma vez a esse organismo misterioso a que chama Trbnal Conxtcnal (que fiscaliza a conxtcnlidade das leis).

Numa resposta a Catarina Martins, usou a frase "Como disse Manuel Alegre, e bem", naquela que foi talvez a primeira ocasião registada em que a frase "Como disse Manuel Alegre, e bem" foi proferida, ou sequer pensada, por outra pessoa que não Manuel Alegre.


Catarina Martins

De todos os candidatos, é a que possui as mais óbvias vantagens naturais de dicção, timbre, fluência e modulação de registo, conseguindo, na mesma frase, passar de exasperação não-estridente a apaziguamento melífluo apenas com o expediente de subir ou descer duas oitavas.

Socorreu-se destes atributos, bem como de um aparente conhecimento dos cancioneiros medievais, para transformar a parte final do debate numa cantiga de amigo: aquela em que o amante desarranjado proclama gratidão pela exaltada qualidade do seu desgosto.

A acusação que fez a Costa, descodificada, é de estar a embirrar com ela pelos motivos errados, quando havia tantos motivos melhores.


Assunção Cristas

Entrou determinada a provocar um enorme chavascal com cada intervenção e foi parcialmente bem sucedida, revelando um timing exemplar na escolha dos momentos em que obrigou alguém a interromper a sua interrupção para lhe dizer "eu não a interrompi". Foi a alternativa possível (e, em rigor, mais razoável) à sua estratégia original, que consistia em rasgar o abdómen do primeiro-ministro de alto a baixo com uma unha pontiaguda e brandir o seu coração palpitante à luz dos holofotes enquanto gritava na direcção das câmaras: "É ISTO QUE ACONTECE A QUEM ME TIRA OS MEUS 6%".

Apesar de tudo, em nenhum momento transmitiu outra impressão que não a de se sentir nas suas sete quintas, nenhuma das quais fica no Alentejo.


Jerónimo de Sousa

Num político tão compenetrado em fazer o seu trabalho, que é discordar das coisas como elas são, pode parecer paradoxal que se notem tão poucas diferenças na sua linguagem corporal entre as ocasiões em que está a discordar das coisas como elas são ou a concordar com as coisas como elas são. Mas ele não mede o tempo como nós, nem reage do mesmo modo à sua prosaica linearidade. É teoricamente possível, por exemplo, que Jerónimo de Sousa não participe sequer em "debates", no plural: na sua percepção tudo o que acontece faz parte de um único e interminável debate, em que umas vezes discorda de umas coisas, e outras vezes discorda de outras: um segmento cristalizado de eternidade, à margem do tempo, que insiste obstinadamente em fluir de formas pouco comunistas.

O seu rosto é uma litografia de desencanto, os sulcos desenhados pela repulsa entre a substância humana e as substâncias do mundo. O espaço entre palavras é vasto, preenchido com silêncios e reticências. "Em relação à... questão que... também está sempre... hmm... colocada... essa concepção dum... da... de justiça fiscal... hmmm". Através da indeterminação sintáctica, o Infinito é conjurado.

Depois de supervisionar tranquilamente o tráfego aéreo de frases que o sobrevoavam, concluiu o debate com uma proposta ousada para tornar as creches gratuitas, de forma a que os jovens trabalhadores possam ter imenso sexo uns com os outros sem contraceptivo, permitindo que a interacção solidária entre esperma e óvulo produza mais jovens trabalhadores.


André Silva

Ao contrário de Jerónimo, ganha espaço para respirar não com intermitências na articulação, mas repetindo palavras, um efeito que já seria invulgar mesmo que não reproduzisse fielmente o tique de uma personagem secundária do filme Goodfellas (Jimmy Two Times): "onde eu quero chegar, onde eu quero chegar... Lisboa, assim como, assim como o Porto, ao nível, ao nível do IMI... aumentar, aumentar..." (etc).

Munido com esta redundância embutida, debateu não como como portador de opiniões específicas , mas como o fiel depositário de um segredo terrível, cuja natureza era sua missão proteger a qualquer custo. Mudando de assunto a intervalos regulares, recorreu a um catálogo restrito de temas, que usou como palavras de segurança numa exótica sessão de sado-masoquismo (Grampo. Chicote. "Fotovoltaicas!" Stop.)

Tem um talento peculiar para conseguir ser previsível mesmo enquanto diz a coisa mais inesperada possível. Quantas pessoas antes do debate esperariam ouvir a expressão "estufas da costa vicentina"? Quantas pessoas, depois de a ouvirem, não acenaram tranquilamente, pensando "as estufas da costa vicentina, como é óbvio"?»

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24.9.19

Gente que não sabe estar


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Trump



Uma pessoa vê isto e sente o mundo fugir-lhe debaixo dos pés.
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Catarina Martins responde a Manuel Alegre


«Caro Manuel Alegre, li com gosto a sua carta no Público. Sei que divulga em todas as eleições um manifesto de apoio ao seu partido e é justo que o faça. Mas, ao tomar-me como alvo, comete dois erros sobre os quais quero conversar consigo.

O primeiro é de facto. Ao reproduzir a frase de António Costa (na formação da geringonça, “o Bloco veio atrás”) avaliza uma versão falsa do que aconteceu. Semanas antes das eleições de 2015, em debate televisivo, coloquei a António Costa três condições para que nos entendêssemos para uma maioria de governo: não congelar as pensões (1660 milhões de euros), não facilitar despedimentos, não reduzir as contribuições patronais para a segurança social (2550 milhões). Sem que o tivesse feito durante quatro anos, António Costa diz agora, para me insultar, que foi “teatro”. O certo é que no sábado de reflexão combinámos que um representante seu, Fernando Medina, se reuniria com uma pessoa indicada por mim, Jorge Costa, para um encontro informal e exploratório, que ocorreu na manhã do domingo das eleições. Ficou então claro que o PS aceitaria as três condições que coloquei e começou-se a conversar sobre salário mínimo, salários, pensões, nacionalizações e outros temas. O enviado do PS, cordial e empenhado, não estava a “fazer teatro”. Nessa noite, quando se abriram os votos, Costa e eu sabíamos que era possível abrir negociações formais para um acordo.

Até percebo que agora, na ânsia eleitoral, ele tenha a deselegância de reduzir este esforço comum a uma corrida para saber quem “veio atrás”. Só que, entre parceiros, isso não se faz. Por isso, digo ao secretário-geral do PS que quem triunfa, como nós conseguimos juntos nestes quatro anos, não se rebaixa à hostilização de um aliado com uma ficção sobre como nos aproximámos.

O segundo erro do seu texto, caro amigo, é sobre o contexto destas eleições. Não gostou da minha frase sobre a disputa entre o PS e a esquerda. Reconhecerá em todo o caso que foi Costa quem, na sua primeira entrevista de campanha, explicou que um Bloco forte significaria “ingovernabilidade”, e outros dirigentes encarregaram-se de multiplicar os apelos contra os “devaneios” deste “empecilho” ou alertas sobre a “prisão” que um acordo com a esquerda imporia. Dispenso-me de fazer a lista, por ser evidente demais que a estratégia do PS é atacar o Bloco. Essa escolha estratégica não lhe passou por certo despercebida. Chega aliás ao paradoxo: Centeno acusa-nos de irresponsabilidade por propormos uma forma de reestruturação da dívida que é precisamente a que assinamos há dois anos, o PS e o Bloco, com a participação do Ministério das Finanças. O PS mostra que está zangado com os últimos quatro anos, o Bloco elogia cada um dos avanços que conseguimos em conjunto.

A minha resposta é que a questão é mesmo entre o PS, que quer maioria absoluta para se ver livre dos “empecilhos”, e a esquerda, que quer um governo com mais exigência nos próximos quatro anos. Por isso, o PS recusa acordos, o Bloco estabelece pontes. O PS pede poder absoluto, o Bloco quer entendimentos para medidas. Sim, há uma escolha entre o PS e as esquerdas, ou entre a maioria absoluta que o PS deseja e as soluções que as esquerdas defendem.

Quando o Bloco apresenta propostas para defender o SNS, recuperar o pagamento das horas extraordinárias ou salvar os CTT, Costa chama-lhes “ingovernabilidade”. Mas, caro Manuel Alegre, essas tricas partidárias são irrelevantes. No fim do dia, o que conta é mesmo saber qual vai ser o governo: o que, como Arnaut e Semedo queriam, recusa as parcerias público-privado nos hospitais públicos ou o que estabelece o período experimental que as associações patronais festejam.

Despeço-me concordando num ponto consigo. O meu amigo lembra quem apelava ao voto no PS, “mesmo se ele não merece”. O voto no Bloco, em contrapartida, virá de quem entende que o merecemos em nome de uma maioria que defenda o nosso povo.»

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Oiça a Saúde, Mário Centeno!



«O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem tido má imprensa, excepção feita a este jornal, no sábado, dia 14 de Setembro, que colheu depoimentos individuais em contra-corrente, com elogios ao SNS, o que devia ser repetido nos vários meios de comunicação. A onda da má imprensa tem estabelecido o alarme. E restabelecer a confiança também faz parte da saúde. O paradoxo em relação ao publicitado nos meios de comunicação social é que amigos e inimigos do SNS se têm confundido nas críticas. Os inimigos porque mascaram o seu objectivo de retirar ou encurtar a Saúde como serviço público com disfarçadas críticas como se o defendessem. E os amigos porque lhes compete lutar pela melhoria e tanto mais porque em tempo eleitoral qualquer elogio pode reverter a favor do partido do Governo. As melhorias têm que ser relevadas. No entanto, o que falta também é essencial e tanto o ministro das Finanças, Mário Centeno, como o secretário de Estado João Leão têm que abrir os olhos e os ouvidos àqueles que podem, evocando Fernando Pessoa, “não perceber nada de Finanças”, mas percebem de Saúde.

No debate entre António Costa e Rui Rio, o primeiro não respondeu em contraditório imediato e devia tê-lo feito em vez de fazê-lo em diferido, com um rol de números que ficam no ar sem efeito imediato. Percebe-se que Rui Rio é uma pessoa simpática, cortês, não tem os trejeitos da nova direita e é democrata, o que pode impedir um taco a taco mais directo. Ora, de facto, ao contrário do que muitos comentaram, Rui Rio não estava seguro nos números, mas foi pouco contraditado. Os comentadores também deviam abrir os dossiers.

Quanto ao que fez o Governo anterior e o que fez o actual, acompanhado pelos partidos da “geringonça”, os números são tão evidentes e a melhoria tão grande que não se pode ouvir o contrário sem contradizer imediatamente. A dotação em saúde caiu de 8849 milhões de euros em 2010 para 7762 em 2012 e em 2017 passou a 8179. E onde se foi reflectir esta redução: nos cuidados primários, nos hospitais, no pessoal e no aumento da contribuição “a partir do bolso” das pessoas. A despesa em percentagem do PIB e sobretudo per capita, que neste caso em 2010 se cruzara com a média dos países da OCDE, divergia em 2015 na ordem dos 5,9 para 6,5. A despesa com o pessoal desceu a pique, de cerca de 4000 M€ em 2011 para cerca de 3000 em 2012, à custa de redução de pessoal e de corte nas horas extraordinárias, e voltou a subir em 2017 para o número anterior. Aos hospitais foram tirados 276 M€ entre 2011 e 2015. E, no entanto, foram pagos aos hospitais privados no mesmo período mais 163 M€. Nesse mesmo período, a saúde oral perdeu 17 M€. E do bolso das pessoas passou-se de 28%, que já era alto, para 31%. Foi esta a boa gestão, Dr. Rui Rio? As consequências foram medidas em certos sectores, como o das anemias ferropénicas, doenças respiratórias e depressão. Mas os resultados a longo prazo dir-nos-ão mais. São estes os números, que não murmuram, gritam. E que foram além do que está escrito no memorando assinado com a troika (por exemplo, em relação aos hospitais, o documento só falava em 100 milhões). Não percebo porque é que o Dr. António Costa não fez este taco a taco. Mistérios que só os especialistas em atitude de campanha percebem…

Porque o Dr. Rui Rio é simpático, mas é tudo menos social-democrata. A posição do Dr. Rui Rio e da direita liberal é retirar ao máximo a intervenção do Estado nos serviços públicos e dar a voz e o papel ao mercado. Atente-se às discussões políticas nos países escandinavos: a posição dos partidos social-democratas ou do partido social-democrata alemão é inversa à do Dr. Rui Rio e, nesses países, quem tem a posição deste líder “social-democrata” são os partidos de direita que se lhes opõem. Para já não falar desta tristeza dos meios de comunicação que não pegam na expressão “social-democrata” para lhe fazer a história e descrever as mutações. Os partidos social-democratas nasceram no século XIX, o partido de Lenine e o de Rosa Luxemburgo chamaram-se social-democrata. Mas, depois disso, já correu muita água debaixo das pontes da história contemporânea e as derivas também têm significado. E poderão ser analisadas para percebermos melhor os nossos dias.

Muitos dos que ouvem e lêem em manchetes, todos os dias, que o SNS está degradado, são capazes de acreditar e repetir sem pensamento crítico. Mas os que passaram a ter médico de família, eventualmente em Unidade de Saúde Familiar, os que não têm listas de espera “de anos”, os que fazem tratamento oncológico de milhares de euros, talvez pensem duas vezes e digam “que sorte então que eu tenho”…

Infelizmente, o debate em torno do SNS decorreu sobretudo em relação às PPP e deixou de fora fluxos financeiros bem mais importantes e medidas a tomar que poderão ser decisivas para a Saúde. E é aqui que o ministro e o secretário de Estado do Orçamento têm que ter olhos e ouvidos. O SNS pagou aos privados 87.833 (milhares de euros) em 2016 só em radiologia. Que tal investir em equipamentos e pagar bem a especialistas de alta patente que ainda militam no SNS para recuperar este dinheiro em poucos anos? Quem saiba fazer contas que as faça… Em endoscopias de gastroenterologia pagou só nesse ano 36.201 (milhares de euros). Que tal melhorar os equipamentos dos hospitais e reter os especialistas para não irem ganhar o triplo nos privados? Mais uma vez impõem-se contas a quem as sabe fazer.

Os especialistas, com sete anos de formação e avaliações para além da licenciatura em Medicina, com investigação publicada, estão a fugir-nos por entre os dedos, porque o SNS não os sabe contratar. E, para o futuro, a exclusividade é a única forma de dedicação plena. Quanto a análises clínicas, só em um ano, aquele a que tenho acesso, pagou 142.876 (milhares de euros). Poupava-se expandindo os laboratórios hospitalares e abri-los a todo o público? Mas é preciso ter coragem política para o fazer. Aplicar medicamentos oncológicos para prevenir metástases e discutir o preço com a indústria é também poupar. Gastar um pouco mais agora, para poupar depois.

Pertenço ao grupo de pessoas que acham sinceramente que este ministro das Finanças, Mário Centeno, e o secretário de Estado do Orçamento, João Leão, são pessoas de grande competência, a qual foi aplicada para reduzir o défice e a dívida. Mas chegou a hora, antes e depois das eleições, de ouvir os especialistas da Saúde para investir na qualidade e, portanto, na boa gestão e poupar no que tem que ser poupado. A política predominante na União Europeia é a de confiscar os bens comuns, a saúde, a educação, os caminhos-de-ferro e até os dados de Ciência e Medicina, como titulou na capa o jornal Le Monde. Portugal deverá aguentar-se na contra-corrente e por isso também salvar o SNS.»

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23.9.19

Ele aí está



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Solidariedades


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Maria João Avillez


Na entrevista ao Mario Centeno do Público, a Maria João Avillez escreveu esta pérola: «Entrou sem poder e sem apelido na política e hoje tem (quase, quase) o poder.» Que é como quem diz, apelido nunca vai ter.

Já Maria João Avillez entrou no jornalismo (?) há décadas com apelido e poder mas sem neurónios. O poder apesar de tudo tem-se esvaído mas o apelido está lá. Neurónios é que nunca vai ter.

Susana Peralta no Facebook
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Debates: a grande corrida das personalidades



«Já só faltam 15 dias para o primeiro acto eleitoral desde o último acto eleitoral, confirmando a percepção generalizada de que qualquer ritual periódico torna as cronologias maleáveis, fazendo que os intervalos entre estas coisas sejam cada vez mais curtos. Parece que ainda ontem celebrámos a última eleição e já as montras estão novamente cheias de luzes festivas e decorações eleitorais. Quando menos esperarmos, chegou a hora de as famílias se reunirem e trincharem a democracia na forma de um "x" cuidadosamente desenhado à frente da opção menos transtornante.

A maneira como esta escolha é feita é a mesma de sempre: com a ajuda inestimável da televisão. Neste ano, a RTP1 deu-nos generosamente um auxiliar novo. O programa em duas partes Eu, Cidadão prometia "analisar os traços de personalidade dos candidatos a primeiro-ministro", com uma bateria de "questões que escapam ao debate político".

Menção honrosa para a questão "Qual foi a pessoa com mais impacto na sua vida?" (sugerida por dois prémios Nobel da Física e pelo actual campeão mundial de xadrez), que entre o cardápio de banalidades esperadas (os pais: estruturantes; as mães: corajosas; os filhos: mudam a nossa visão do mundo; Álvaro Cunhal: um exemplo que marcou para toda a vida; etc.) devolveu uma resposta genuinamente intrigante. O líder do PAN mencionou a sua avó, com esta justificação inatacável: "Quando eu tinha 3 anos, ela salvou-me de um incêndio num parque de campismo."

Por mais inovações que surjam, o instrumento mais eficaz para descortinar personalidades continua a ser o debate televisivo. Foi essa pelo menos a garantia de Miguel Sousa Tavares, no prólogo ao último "frente a frente": "É costume os analistas políticos e a imprensa escrita desvalorizarem os debates... mas os debates televisivos, mesmo que não esclareçam, são importantes para conhecer os candidatos pessoalmente. Como é que é o comportamento deles pessoalmente. E o factor humano é cada vez mais importante em eleições."

O prólogo consistiu também em directos de viaturas a chegar a sítios. "Rui Rio... chega aqui ao Pavilhão do Conhecimento... vem no carro da frente... e no banco de trás." Emergindo do banco de trás do carro da frente, Rio foi confrontado com um enxame de microfones. "Doutor, sente-se preparado para este debate decisivo?" "Decisivo?", protestou, afagando o crânio de Yorick que trazia debaixo do braço. "Decisivo para mim é um dia quando eu morrer, isso é que é decisivo!" António Costa chegou poucos minutos depois, numa charrete ambientalmente neutra, transportada por oito assessores que usavam os braços livres para abanar caudas de faisão.

Já no estúdio, decorado com runas, triângulos e outros símbolos secretos dos Illuminati, os três moderadores elencaram sistematicamente os temas essenciais ("é um tema essencial, a questão da educação") e os motivos pelos quais esses temas essenciais não seriam de todo aprofundados ("não podemos abordar aqui todos os tópicos").

"Considera estes quatro anos uma oportunidade perdida?", perguntaram a Rio, que respondeu com uma sucessão de perguntas retóricas: "Julgas tu, Horácio, que o grande Alexandre, depois de enterrado, se parecesse com Yorick? O imperial César morto e em pó tornado, pode a fenda vedar ao vento irado?"

Costa explicou de seguida as linhas mestras do seu programa, que consiste em reduzir o défice de consoantes e exterminar todas as vogais. "Um novo prdigma de mblidade", prometeu, "na utlzção dos espçs mtrpoltanos". Rio aproveitou a alusão tangencial ao ambiente para passar ao ataque: "Imaginem o Porto e Viana do Castelo desertos. Sem pessoas! Uma vastidão pestilenta onde só a morte caminha."

"Ntrldade crbónica", ripostou o primeiro-ministro.

"Ninguém vai para a Lua, ninguém vai para Marte!", acrescentou Rio. "Vamos todos morrer juntos, neste planeta, com os nossos globos oculares a derreterem dentro das órbitas e a escorrerem-nos pelas faces queimadas em regatos viscosos."

"Vamos ser rgrosos", exigiu Costa.

De quantas vogais precisa um país? Na resposta a essa pergunta estará provavelmente a diferença entre a mria abslta e uma nova grngnça.»

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22.9.19

António Costa / Guterres



Expresso, 21.09.2019
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Ai Cavaco, Cavaco, se isto se passasse agora…



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A voto útil não se olha o dente?


Todos estão a pedi-lo, de modos diferentes – essa é que é essa!
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Novo contexto, novas exigências



«Penso que a maioria dos portugueses e portuguesas que votaram nos partidos da Esquerda (ou esquerdas) em 2015, e depois se regozijaram com os acordos parlamentares estabelecidos entre eles, mantêm até hoje uma avaliação globalmente positiva deste ciclo de governação e desejam a renovação de compromissos para novo mandato.

Entretanto, o contexto atual é radicalmente diferente do de 2015.

Em 2015, havia um rolo compressor a esmagar salários, pensões, direitos sociais e emprego que era preciso deter. Exigia-se aos partidos da Esquerda um entendimento mínimo que pudesse evitar a institucionalização do "estado de exceção" como um novo normal.

Em 2015, surgia um ciclo de crescimento económico à escala global e na União Europeia, e um BCE interveniente, fatores que favoreciam a criação de emprego em Portugal e a queda das taxas de juro, facilitando alguma conciliação entre "devolução de rendimentos" e "ajustamento orçamental".

Em 2015, na composição do Parlamento que resultou das eleições, havia uma coligação PSD-CDS capaz de bloquear qualquer iniciativa do PS sozinho.

A batalha agora tem de ser por novas conquistas, o que em regra é mais difícil do que resistir.

Hoje, embora os salários e as pensões se mantenham praticamente estagnadas em termos de poder de compra, e alguns direitos sociais - a começar pela saúde - continuem quase tão comprometidos como estavam em 2015, não há a perceção de uma ameaça eminente, proveniente de iniciativas do Governo, intencionalmente dirigidas contra as "classes populares", os seus meios de existência e direitos básicos.

Agora, muitos dos que desejam renovação do mandato na Esquerda, pretendem que se continue a reparar os estragos do "ajustamento", mas querem também levar adiante um projeto bem mais profundo de progresso, de mudança qualitativa do perfil da nossa economia, de reparação mais estrutural das desigualdades.

Às portas de 2020, existem fundadas preocupações e antevisões de um novo ciclo recessivo, que pode emergir a partir de guerras abertas ou potenciais, sejam elas bélicas, económicas ou financeiras. Quadraturas do círculo, envolvendo reposição dos rendimentos e investimento público a par de amortização da dívida em passo de corrida, são muito mais difíceis no novo contexto global e europeu que se perspetiva.

A acreditar na bissetriz do conjunto das sondagens conhecidas, das eleições de 6 de outubro não resultará uma bancada PSD-CDS capaz de bloquear o PS-sozinho. O PS não será colocado em estado de necessidade de negociações à esquerda. Mesmo sem maioria absoluta - cenário indesejável por múltiplas razões -, a hipótese mais que provável do crescimento do PS combinado com um descalabro da Direita, produzirá um contexto favorável ao forte setor do PS que sente urticária e enjoos com os acordos à esquerda e encorajam uma solução PS-sozinho, agindo em geometria variável e caso a caso, de que resultaria um viés de direita.

Uma maioria desproporcionada do PS tende a dispensar, absoluta ou parcialmente, uma negociação à Esquerda para um tão necessário novo mandato, agora focado na dignidade do emprego, no crescimento dos salários e pensões, no resgate do SNS, nas questões do território e do ambiente, na mudança do perfil da nossa economia. É preciso reforçar as forças à esquerda do PS.»

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