30.1.20

Nigel Farage, André Ventura e os "homens reais"



«Imagine uma fábrica de burocratas com uma linha de montagem que tem todas as peças necessárias. Pega-se no tronco, encaixam-se as pernas, depois os braços e, por fim, a cabeça. A cor do cabelo pode variar. Temos duas opções à escolha: moreno ou louro. Pente três a toda a volta, grande em cima, para dar aquele aspeto ondulado que está na moda. Temos gordinhos, mas o modelo com mais saída é o magro. Daqueles que correm todos os dias às seis da manhã, faça chuva ou faça sol, antes do banho e antes de vestirem o fato azul escuro. Ao final da tarde, vão todos beber um copo ao pub mais perto do trabalho, antes de irem para casa.

QI? Muito elevado. Fazem contas como ninguém, são autênticas enciclopédias ambulantes e, quando falam, quase nunca fogem do guião. Normalmente não têm solução para nada, mas são óptimos a problematizar, fazem relatórios ao pequeno almoço, escrevem estudos ao almoço e são incríveis a organizar conferências e a fazer apresentações. Quase sempre para plateias que já estão evangelizadas, mas isso agora não interessa nada. Só não são perfeitos porque, se fossem, não eram humanos.

A caricatura - exagerada como são quase todas - dos burocratas que tomam conta das principais instituições políticas contrasta com uma outra caricatura - mais falsa que exagerada - dos chamados "homens reais". Não são políticos como os outros. Não. Nada disso. Eles são homens do povo, falam a sua linguagem e dizem "as verdades". Essa é que essa. Há quem lhes chame populistas, mas são só calúnias. Eles não são populistas, são homens com H grande, daqueles que adormecem e acordam a pensar em pessoas. Pessoas - não é cá ciganos, nem pretos e muito menos gays. São "homens reais", muito corajosos, que vão lá para a televisão e para o parlamento e dizem a verdade toda àquela cambada de burocratas.

Esta semana, enquanto andava pelos corredores do Parlamento Europeu, cruzei-me com estas duas caricaturas políticas: os burocratas - eles são mesmo todos iguais - e os "homens reais" (alguns bastante surreais, por sinal). Naquele dia, Nigel Farage, o político britânico que mais lutou pela saída do Reino Unido da União Europeia, fazia a sua última conferência de imprensa e a sua última intervenção no plenário como eurodeputado. Egocêntrico, como qualquer populista que se preze, cheio de frases feitas e soundbytes que não significam nada, com muitas mentiras à mistura, Farage não fez nada que não tivéssemos já visto, nos últimos anos, vezes sem conta. Só que, desta vez, com uma enorme diferença: ele falava na condição de vencedor. O "homem real" venceu o burocrata.

Ao mesmo tempo que Nigel Farage anunciava a festa do Brexit - continuando a não explicar aos britânicos o que os espera -, de Lisboa chegavam notícias, várias, sobre esta forma que os "homens reais" têm de fazer política. André Ventura, que já tinha o ego a dar horas, decidiu comentar uma ideia ridícula de Joacine Katar Moreira - continua em alta, a deputada - com todo o seu racismo. Se alguém ainda tinha dúvidas, Ventura arrumou com o assunto de vez: é racista e com muito orgulho. Francisco Rodrigues dos Santos, o novo líder do CDS, também já começou a dar um ar da sua graça e decidiu fazer uma piada de mau gosto com a deputada do Livre.

Tudo alta política. E, sobretudo, política daquela que interessa às pessoas. Ainda ninguém ouviu de André Ventura ou de Francisco Rodrigues dos Santos uma única ideia sobre o Serviço Nacional de Saúde, a crise demográfica ou as alterações climáticas. Mas ao nível do insulto, das piadas e do discurso populista, a competição à direita promete ficar renhida.

E eis o que me preocupa. Que os burocratas não percebam que estes "homens reais" estão a chegar às pessoas de uma forma muito mais eficaz. Que mentir, inventar, insultar dá muito menos trabalho do que explicar uma lei, uma decisão ou uma política que teve de ser estudada e pensada. O que me preocupa é ter de reconhecer o profissionalismo político destes "homens reais", que sabem exatamente para quem estão a falar e como as pessoas precisam de se identificar com alguém, de terem uma referência, de encontrarem um salvador - enquanto os burocratas continuam a comunicar entre eles, a admirarem-se entre eles e só olham para o eleitorado em período de eleições.

O que me preocupa é que os chamados "homens reais" estão a vencer. No Reino Unido, em Itália, no Brasil, em Espanha e em Portugal. Enquanto os burocratas continuam, business as usual, como se nada estivesse a acontecer. O que me preocupa é que os democratas, sejam eles mais ou menos burocratas, em Bruxelas, em Portugal e um pouco por todo o mundo, não compreendam que combater os populismos com as mesmas armas não significa responder aos populistas, mas às pessoas.»

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