29.8.20

Bairros de lata: porquê?



«Poucas coisas simbolizam tanto a doença de uma sociedade como o bairro de lata. Grandes metrópoles pelo mundo inteiro padecem dessa chaga enorme que é o slum ou a favela. S. Paulo, Cidade do México, Nairobi, Bombaim… batem recordes dramáticos. O problema é social e tem um nome simples: pobreza. E por detrás desta palavra ‘pobreza’ vêm inúmeros outros problemas: degradação, ressentimento, doença, violência… a lista é quase infinita.

Quando a desigualdade chega ao ponto de as casas dos que vivem na pobreza serem barracas feitas dos restos que outros deitam fora o problema é já antigo, muito grave e a sua solução não pode ser apenas local. O bairro de lata não é uma doença que se cure; é o sinal de um problema maior que dá a volta à governação toda de um país.

Infelizmente, em Portugal também temos situações destas. Sobretudo nos subúrbios das grandes cidades e concretamente na região de Lisboa, onde o Expresso, há cerca de um ano, contou 13 bairros de lata com mais de 12 mil famílias. Ninguém diria? Fala-se pouco neles, a não ser quando são notícia policial, como aconteceu no Bairro da Jamaica, no Seixal. De resto, oculta-se esta realidade e faz-se por ignorá-la.

A segregação habitacional, a miséria residencial, a própria estigmatização territorial do estatuto social abjeto são qualquer coisa que corrói profundamente uma sociedade desde o seu interior. Viver naquela miséria é o horror; ter aquela miséria a viver entre nós deveria sê-lo também.

Portugal que multiplica condomínios de luxo, que vende ao desbarato propriedade pública com desconto aos fundos imobiliários especulativos e atrai milionários isentando-os de impostos com vistos gold ou sem eles é o mesmo país que vira hipocritamente a cara aos seus bairros de lata, esperando que a discreta ação da Igreja e de algumas associações cívicas faça o que manifestamente não pode fazer. Ou seja, atacar o problema no ponto onde ele nasce: na desigualdade, na pobreza e na exclusão.

É que a pobreza e a desigualdade extrema, a exclusão e o mal-estar social de todos esses problemas são um rastilho de revoltas e constituem uma autêntica bomba-relógio: não há nada a fazer contra a explosão. É antes que as políticas são úteis, não é depois.

Um bairro de lata é uma violência todos os dias que se pode tornar violento de um dia para o outro. Ora, os bairros de lata, os guetos degradados, não se acabam com políticas contra a fealdade das suas barracas ou edificações precárias ou contra o mau comportamento cívico de alguns dos seus habitantes. É preciso uma iliteracia sociológica muito profunda para acreditar nisso. O bairro de lata é a expressão alarmante dos erros mais graves que persistentemente minaram as prioridades políticas sucessivas do país.

De quando em vez lançaram-se políticas para tentar resolver o problema. Foi o caso do pós-25 de Abril, quando só em Lisboa existiam 100 mil barracas; e mais tarde, depois de, em 1993, Mário Soares ter dedicado uma Presidência Aberta ao assunto — altura em que se lançou o PER — Programa Especial de Realojamento. Passados quase 30 anos, alguns destes bairros estão hoje muito degradados e sem políticas de inclusão. Em 2006, o programa Porta 65 colocou fogos devolutos a preços razoáveis apoiados pelo Estado. Em 2018 foi a vez do programa 1º Direito, com a garantia governamental de que se iria acabar com estas situações até 2024.

Tudo sempre pouco, tudo sempre muito insuficiente e ineficaz. Entretanto, o problema agrava-se e as tensões sobem. E a pergunta continua eternamente a mesma: ainda há bairros de lata — porquê?»

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