16.9.20

Pode-se escolher entre ser e parecer? Não



«Mesmo que seja um reconhecimento de fragilidade, não há como rejeitar que a política é uma aparência. Antes que me atirem uma pedra, deixem-me reforçar: é uma aparência e tem que ser assim mesmo (é também mais do que isso, mas já lá vou). Votamos em quem identificamos, a cujo percurso, debates, discursos, e arroubos assistimos e até, nalguns casos, sobre quem lemos questionários de Proust e trivialidades avulsas. Olhamos para os partidos e para as instituições como velhos vizinhos, cujas ideias, propostas e até manias adivinhamos e medimos pelo que nos parecem. O sistema democrático, que é este que nos organiza, coloca a maioria da população no lugar do espectador e, por isso, a aparência conta, como é que não havia de contar? Se não vemos, não sabemos; se não reconhecemos, não conhecemos.

Assim sendo, a aparência tem regras e consequências, que não devem ser cruzadas. É o caso do futebol. Um dirigente partidário ou um governante não deve fazer parte de uma direção de clube ou de uma disputa eleitoral num clube, não só por estar a emprestar a sua figura pública a uma fronteira que deve ser reservada (ou, mais frequentemente, a aproveitar-se dela), como por estar a incentivar com essa transgressão uma proximidade sempre suspeita. Repare que o mesmo se deve aplicar a uma igreja. Um político pode ter preferência clubística ou religiosa, é o seu direito inquestionável, mas se tem o mandato da representação geral, não pode submetê-lo a um particularismo que pareça um favor. É bom dizer que, em vários casos, se trata aliás de um frio calculismo (já assisti a um debate de televisão entre dois adeptos de clubes diferentes, ambos deputados do CDS; ou atente-se como Ventura abusou do seu clube para se promover), noutros será puro deslumbramento e paixão. Não deixa de ser sempre errado: parece, mas parece mal.

Dir-se-á que isso tem sido banalizado e é verdade. A lista de passados jantares partidários em clubes de futebol em campanha eleitoral é cruel. A tolerância em relação a evocações religiosas por candidaturas políticas tem sido promíscua. Há por isso alguma ingenuidade quando o presidente da Câmara de Lisboa se espanta por só agora ser questionado por um apoio a Vieira que se repete (mas só agora se sabe que as empresas de Vieira provocaram um rombo de 225 milhões e a procissão vai no adro), ou quando o primeiro-ministro se amofina com a invasão do seu território, que diz privado. A privacidade, cuja defesa é uma essência da democracia, incluindo a da preferência clubística ou religiosa ou outra qualquer, deixa de poder ser invocada quando se participa numa lista de apoios que foi definida para ser pública. E o problema é que eles são medidos em cada momento pela aparência, foi o contrato que aceitaram ao candidatarem-se a governar-nos.

Argumentar-se-á que o governante de aparência mais austera e distanciada dos clubes pode ser, na sombra, o que mais promove algum interesse obscuro. Ou seja, não parece mas é. Ora, esse argumento não solicita a dissolução da precaução a respeito das regras de comportamento que evitem a sobreposição entre o interesse geral e a sua instrumentalização para um clube de futebol. Pelo contrário, reforça-as. Se vários governos permitiram regras fiscais duvidosas, fecharam os olhos a contas suspeitas, permitiram a lavagem de dinheiro e outras tropelias no futebol, se câmaras municipais se acotovelaram para oferecer benesses, ou seja, se são, mesmo quando não o parecem, os casos exigem a mesma reprovação.

Assim, a política não pode parecer conivente com interesses clubísticos, ou outros. E também não o pode ser. Já agora, porque o futebol, ou qualquer desporto, vale por ser popular, por ser para toda a gente e, por isso, deveria ser território proibido para a ganância de dirigentes ou o aproveitamento de governantes. Não se pode escolher entre ser e parecer. Tem que se parecer o que se é e ser o que se parece. 

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