22.11.20

A ideologia neoliberal também mata

 


«Quem tivesse aterrado em Portugal na última semana e ligasse a TV, consultasse jornais e assomasse às redes sociais pensaria que havia regressado ao passado, com discussões sobre totalitarismos, fascismos, comunismos, campos de concentração ou de trabalhos forçados e até polícias políticas da ex-RDA. Tudo por causa do acordo entre PSD e Chega nos Açores. Como quase sempre neste tipo de debates, o mais revelador é o que fica de fora. O que é latente, mas nunca é enunciado. 

Neste caso, para além de se tentar criar a ideia que os opostos se atraem, o que não é designado tem nome: chama-se ideologia neoliberal, dominante nas últimas décadas no mundo ocidental. É ela que está envolta em contradições, incapaz do progresso social e de promover a coesão colectiva. É ela que tem de ser questionada. É a partir dos seus vazios que irrompem fenómenos populistas. É simples discutir fascismos e comunismos, mas é a desmontagem do neoliberalismo que interessa. O problema é que é bem mais complexo e menos sexy. Baralha noções fáceis, porque tanto é adoptado à direita, em versão musculada, como à esquerda, em versão humanista. Não possui manifesto, nem rostos de déspotas a quem possam ser assacadas responsabilidades. A sua violência faz-se por entre zonas cinzentas. 

Sempre que se evocam atrocidades do passado, o que se quer reafirmar é o presente neoliberal. É dizer: vêem? Não é perfeito, mas é o menos mau, portanto, mais vale estarmos imóveis e nem pensar em alternativas, para além das que são moldadas pelas práticas da competitividade, exclusão ou exploração. Sim, agora, felizmente, não há campos de concentração. Mas isso não nos deve fazer esquecer o terror dos campos de refugiados, do mar Mediterrânico transformado em cemitério, em guerras impostas em nome da democracia, em milhões que morrem por patologias ligadas a alterações económicas. Sim, não estamos perante um processo objectivo que alguém tivesse planeado ou executado. É uma crueldade sem rosto. Mas impiedosa e destruidora. 

Mandarem-nos à cara que houve experiências, no passado, terríficas, não significa que hoje não as tenhamos, mas que se manifestam de outras formas. E a pandemia só veio intensificar esse cenário. Parecemos, hoje, mortos-vivos, que deambulam por entre hospitais mal equipados, depois de décadas de desinvestimento, ou em cidades desertas, com medo do contágio. Os sistemas de saúde entram em colapso, as economias afundam-se, as liberdades são cerceadas, morre-se de doenças provindas da devastação ambiental ou devido à pobreza, desemprego e abandono. O trágico é que a ideologia neoliberal vive bem com isto. Alimenta-se disso. 

Cada nova crise é a forma de se reconfigurar e ganhar novo impulso. Aproveita para se ver livre de uma velha ordem, para instituir uma nova, que é apenas a velha com a aparência de nova. Ventura é isso. Não é anti-sistema. É a sua reencarnação, por excesso, alimentando-se dos destroços, reforçando a ideologia neoliberal do mercado livre, de preferência, sem o estorvo da democracia. Não é essa a tendência de parte do mundo actual? Lideranças musculadas, autoritarismo nacionalista e quanto menos democracia melhor para o capital circular à vontade? Existe lá maior distopia do que ver hoje potências como a China, EUA, Rússia, Brasil ou Índia enunciando grandes diferenças, mas expondo tantas semelhanças? 

Estamos a transformar as nossas sociedades em lugares doentios, contraditórios e sem horizonte. A imaginação política não parece ir além do seleccionar de forma instrumental o passado. Quanto ao presente e futuro, parecem ter sido apropriados pelo neoliberalismo, que promete maravilhas, a maior parte artificiais, desde que exista capital para as adquirir, claro está. Para uma outra perspectiva, seria preciso que, em vez de sonhar revoluções que nunca acontecerão, nos fôssemos religando com o mundo e as muitas possibilidades que nele existem. Oxalá.» 

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