4.4.20

Última Ceia 2020


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Até quando?


«Depois de há uns meses, a pretexto do debate sobre a eutanásia, tantos terem questionado se a nossa sociedade não estava a desistir dos velhos e dos doentes, é bonito ver a sociedade mobilizar-se para os proteger. Mas este isolamento não pode durar meses e meses. Privar os nossos velhos de contactos físicos com filhos e netos não será uma condenação à morte; pelo menos imediata. Mas é impor-lhes uma pena de solidão cruel, capaz de minar a sua vontade de viver. Soubemos legalizar a eutanásia, respeitando a autonomia dos mais idosos e permitindo que muitos peçam assistência para morrer. Saibamos agora aceitar que a mesma autonomia pode levá-los a pesar os riscos e decidir que querem, apesar de tudo, estar com os seus netos. Conscientemente. E nós, em consciência, queremos impedir isso?»

Luís Aguiar-Conraria, Expresso, 04.04.2020
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O coronavírus mata



«Comecemos pelos números: em 2019, morreram em média 399 pessoas por dia em Portugal. Um valor que corresponde a um decréscimo face a 2018 (o ano com mais mortos desde 1949, quando a Europa vivia a ressaca económica dos anos de guerra). O envelhecimento da população explica, em larga medida, este padrão de incremento do número de mortos por ano em Portugal.

Curiosamente, o ano de 2020 parecia ser auspicioso no que toca à mortalidade. De acordo com os cálculos de Pedro Almeida Vieira, entre janeiro e fevereiro, morreram menos 2440 pessoas do que no ano anterior e menos 667 na comparação com a média de 2010-19. Ou seja, se consideramos apenas os dois primeiros meses do ano, a média de óbitos diários desceu para 358, um valor inferior aos 399 de 2019 e aos 369 do período entre 2010-19.

Com a chegada de março, os valores costumam atenuar-se. Passada a fase mais aguda da gripe e a chegada da primavera, com um clima mais ameno, a mortalidade tende a diminuir ao longo do mês, com diferenças significativas entre a primeira e a segunda quinzena. Foi a tendência dos anos anteriores. Este ano é exceção. Se até dia 10 de março não houve um único dia em que não tivessem morrido menos pessoas do que nos mesmos dias do ano passado, a partir de dia 15 dá-se uma súbita inversão de tendência, com um crescimento sistemático do número de óbitos, fazendo da segunda quinzena de março de 2020 a mais mortífera dos últimos dez anos. As 144 mortes com covid-19 explicam uma parcela desta variação. Contudo, continua bem longe de ser suficiente para explicar o acréscimo de 495 óbitos no período. Um aumento que não pode ser coincidência.

Há explicações para o fenómeno: o confinamento social tem efeitos mais agudos na saú¬de mental e física dos mais idosos, precipitando mortes; quer os suicídios, quer as mortes por violência doméstica podem ter aumentado; e, fundamental, os serviços de saúde estão a recentrar a sua atividade na resposta ao coronavírus, secundarizando outros tratamentos, ao mesmo tempo que os utentes se dirigem menos ou tardiamente aos hospitais (as notícias que dão conta da diminuição drástica de chamadas para o INEM e das dádivas de sangue, acompanhadas pelo aumento de reservas, são disso sintoma).

Mas o pior está mesmo para chegar. Os fatores económicos são o determinante mais poderoso da saúde pública (mais até do que o papel dos serviços de saúde). A ideia de que há uma escolha a fazer entre prioridade à saúde pública ou preservação da economia é, aliás, totalmente errada. O colapso anunciado da economia, o brutal aumento do desemprego previsto e um longo período de austeridade que se seguirá mostrarão que a tendência nos óbitos da segunda quinzena de março não foi coincidência e tenderá a intensificar-se. Vão ser muito mais aqueles que vão morrer por causa do coronavírus do que os que vão morrer com coronavírus.»

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Metade da humanidade em confinamento


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3.4.20

Velhos



Guida Vieira
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Índia, a tal tragédia inevitável




«Num artigo de opinião no The New York Times, o economista e epidemiologista Ramanan Laxminarayan, vice-presidente para a Investigação e Políticas da Fundação de Saúde Pública da Índia, admitia, citando “estimativas iniciais”, que entre 300 a 500 milhões de indianos pudessem vir a ficar infectados até ao final de Julho.

Mesmo considerando que “a maioria dos casos não teria sintomas ou teria apenas infecções ligeiras”, os números apontavam para que entre 30 a 50 milhões pudessem ter sintomas mais graves. (…)

Numa entrevista ao Nouvel Obs, a escritora indiana Arundhati Roy reforça a ideia: “Não temos um sistema de saúde como deve ser para os pobres, nem sequer para a classe média. Imaginem o que é falar de distanciamento social, de gel hidro-alcoólico, de confinamento e mesmo de lavagem de mãos a pessoas que vivem em bairros de lata, nas ruas, em campos de refugiados, pessoas cujas casas foram queimadas na onda de violência anti-muçulmana poucos dias antes do início da epidemia… não tem qualquer sentido.”

Um exemplo da abissal diferença de universos é, segundo a escritora, o facto de o primeiro-ministro Modi ter apelado a que as pessoas fossem às varandas bater as palmas contra o coronavírus. Mas “quantas pessoas têm varandas na Índia”? É por isso que, alerta Arundhati Roy, “se o coronavírus atacar a Índia como atacou a Europa, será um cataclismo”.»
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A bem-aventurança dos aerofóbicos



«Foi o pingo no nariz que me deprimiu. Com a exceção antibiótica, uma ou outra operação e com o diabo surdo, cego e mudo, perneta e maneta e o que mais for de peçonhas, e sempre nas graças de Deus, tenho convenientemente assassinado à Aspirina C efervescente, com limão, sff, as maleitas que afligem um ser humano que se preze, espécie na qual orgulhosamente me incluo.

Mas o pingo no nariz colocou-me num dilema embaraçoso que adicionou um quanto baste de ansiedade à minha dose diária de estupefação corrente. Ao fim de 35 minutos na fila de espera para entrar no supermercado, com um frio que não rachava muito, mas, mesmo assim, um frio de 5 graus, o pingo, como é normal, começou a pingar, estava eu já a entrar. Como enxugar o pingo com luvas de látex e, pior ainda, como limpar o nariz com a máscara de cirurgião? Muito pior ainda, se tiro a máscara, posso apanhar o vírus; se não tiro a máscara, não posso apanhar o pingo. Foi este o meu dilema.

Não conseguia arranjar uma maneira elegante para resolver uma situação normal e nem digo como a resolvi, mas fartei-me de esfregar o nariz enquanto olhava para um molho de brócolos ou para um nabo, que é como eu me sentia naquela figura. Se ficas ansioso, na melhor das hipóteses, tens três ou quatro meses de ansiedade, o que é uma chatice, pensei.

O melhor é passar entre os pingos da chuva viral para ficar com menos sintomas de doenças imaginárias. No entanto, o facto é que o fantasma do Corona me aparece sempre que tusso, espirro, me dói o corpo e a cabeça de tanto magicar.

De cada vez que me cruzo com alguém, já se sabe, lá fico eu mais ansioso. E mais fico em espaços abertos, em espaços fechados, sei lá, em tudo o que é sítio, em todas as situações que acamam um maníaco-depressivo. Uma pessoa por 10 m2 (como manda a lei antiviral para a frequência de supermercados) parece-me uma multidão, e mesmo à distância de dois metros um carrinho de supermercado parece um buldózer carregado de latas e embalagens de todos os vírus que acompanham a cadeia de produção alimentar.

Ah, se eu fosse um aerofóbico seria bem-aventurado, mas não sou. Consolo-me com a ideia de que só acontece aos outros e tento levar uma vida tão normal quanto possível.

Bem-aventurados os aerofóbicos, porque é deles o reino do confinamento. Não saio de casa tão cedo… só quando a Luna precisar!»

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O (não) admirável mundo novo


Exactamente há dois anos, andei pelo Oriente (sobretudo pelas várias Chinas e pela Coreia do Sul). Leio hoje o último texto que escrevi, em 31.03.2018, antes de regressar a Portugal, e copio o último parágrafo. Prefiro não comentar.

«Por tudo isto, regresso a casa com uma ideia que não me sai da cabeça: preparemos os nossos filhos e os nossos netos para aprenderem a viver em sociedades pós-democráticas, porque é bem provável que elas sejam uma realidade por aí, talvez mais depressa do que possamos imaginar.»
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2.4.20

E a América Latina?



Somos todos muito eurocêntricos ( «EUA-cêntricos e Brasil-cêntricos, também) e continuamos por isso a ser detalhadamente informados sobre o Covid-19 em meia dúzia de países. Mas o drama avança noutras paragens e o EQUADOR é uma delas. Talvez por ter estado neste país, e por dele ter guardado belas recordações, dói-me espcialemente o que leio.

(Na imagem, a fotografia que fiz a uma simpática iguana, numa praça de Guayaquil onde hoje se acumulam cadáveres.)

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Hoje, na Assembleia da República




Sobre uma das questões mais polemicas e mais discutidas nas redes sociais do novo decreto sobre o Estado de Emergência:

«Compreendemos que os prazos legais de consulta aos sindicatos e organizações patronais sejam incompatíveis com a celeridade de medidas a que este período obriga. Mas a solução não tem de ser suspender em absoluto a obrigação constitucional de ouvir os representantes dos trabalhadores sobre normas laborais. O governo deve encontrar um modelo expedito para manter esta auscultação essencial à democracia e ao acerto das medidas.»
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O estado de emergência não institui a impunidade laboral


Ana Santos, Arménio Carlos, Constantino Alves, Januário Torgal Ferreira, Fausto Leite, Joana Manuel, Maria da Paz Lima, Manuel Carvalho da Silva, Paulo Pedroso, Ricardo Paes Mamede, Sara Barros Leitão, Sérgio Monte, Tiago Gillot:

«A situação de emergência em que vivemos apela à partilha de sacrifícios e à solidariedade. No entanto, nas últimas semanas, têm-se multiplicado atropelos gritantes à lei laboral. As denúncias feitas incluem o recurso à chantagem sobre os assalariados, levando-os a renunciarem “livremente” ao exercício de direitos fundamentais.»

Ler na íntegra AQUI.
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Se é para enfiar dinheiro na TAP, que desta vez se renacionalize mesmo



«Mal tudo isto começou, a TAP mandou encerrar o seu call center. Fez bem, em nome da segurança dos trabalhadores. Mas não tratou de fazer, como tantas empresas e serviços com muito menos meios, a migração imediata para teletrabalho. Em plena crise, com milhares de passageiros a tentar regressar a casa e outros milhares a tentarem recuperar o dinheiro ou vouchers de viagens perdidas, a TAP ficou sem ligação telefónica para clientes.

A TAP vai colocar 90% dos seus trabalhadores em lay-off simplificado, um mecanismo criado para garantir o emprego e impedir despedimentos. Mas foi das primeiras empresas a dispensar pessoal, em plena crise, não renovando contratos e contrariando o espírito das medidas apresentadas pelo Estado. Ou seja, o abuso vem logo de uma empresa que tem o Estado como acionista. A administração preparava-se para distribuir prémios por administradores e trabalhadores de topo em ano de prejuízos colossais. Pelo menos isso teve a decência de suspender.

Não há forma de dizer isto com carinho: a Comissão Executiva liderada por Antonoaldo Neves e escolhida por David Neeleman é provavelmente a mais incompetente da história da companhia aérea. E se ela teve administrações incompetentes... Isso verifica-se na degradação da qualidade dos serviços, nos resultados comerciais e nos sucessivos danos reputacionais que os gestores foram provocando à empresa.

Um dia alguém contará a verdadeira história da privatização da companhia aérea portuguesa, feita na 25ª hora do governo de Passos Coelho a gente com má reputação no mercado. Assim como um dia se fará a história da tentativa de concessão dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto. Não estamos a falar apenas de erros estratégicos por puro preconceito ideológico, como a privatização dos CTT, feita em bolsa e impedindo a existência de um acionista de referência. Nem o crime contra a soberania nacional, como as privatizações da REN e da ANA. Estamos a falar de histórias muito mal contadas que o jornalismo português ainda não se encarregou de vasculhar.

Mas não é apenas o governo de Passos Coelho que tem de nos dar explicações. A renacionalização parcial da TAP, feita pelo governo de António Costa, também foi uma farsa que ficou evidente aos primeiros desentendimentos entre o Estado e estes inenarráveis acionistas: o Estado mete dinheiro e não manda nada. Nem sequer é consultado. A renacionalização parcial da companhia aérea portuguesa nunca aconteceu. É uma fantasia. E confesso que cheguei, por uns dias, a acreditar nessa mentira.

Estou certo que, depois de todas as ajudas que dará como está a dar a outras empresas, o acionista Estado vai ser chamado a salvar a empresa nesta hora de crise profunda para todo o negócio aeroportuário. Todos os Estados vão, porque o discurso contra o Estado paternalista só serve para quando tudo está bem. É o discurso do adolescente, que quer uma liberdade radical para ir à festa mas dispensa-a na doença. Ainda vamos ver muitas coisas estranhas depois desta crise.

Todas as crises, mesmo as mais dramáticas, são uma oportunidade. E não têm de ser uma oportunidade apenas para os oportunistas. Podem ser para o Estado. Quando for chamado a injetar dinheiro na empresa, onde suspeito que o senhor Neeleman e os seus parceiros não vão querer enfiar um cêntimo, o Estado deve aproveitar para recuperar a maioria ou totalidade do capital e o controlo real da empresa. Gastando o mesmíssimo dinheiro que, de qualquer das formas, vai ter de desembolsar. Até porque, nos próximos anos de chumbo, vamos precisar de algumas empresas estratégicas. E podem esquecer as sacrossantas interdições europeias ao apoio público a empresas nacionais. Com o que aí vem, nenhum dos gigantes europeus o vai dispensar. Isto, se não formos todos suicidas. Ou se não voltar a vigorar a regra comunitária de que todos os Estados são iguais mas uns são mais iguais do que outros.»

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02.04.1976 - 44 anos e um Estado de Emergência


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1.4.20

Empreendedorismo deve ser isto




«Os pacotes disponíveis no Hotel Real Palácio e nos apartamentos turísticos Real Residência contemplam sete noites, em regime de meia pensão e oferta de estacionamento (€730), sete noites com pensão completa e oferta de estacionamento (€840) ou sete noites de alojamento, em apartamento, em regime de self-catering a partir de €380. Seguem todas as diretrizes da Direção-Geral da Saúde para manter os clientes seguros, providenciando “instruções contínuas” às equipas “para estarmos constantemente a atualizar os protocolos e acompanhar o cenário em incessante mudança”.

Asseguram ainda, no Hotel Real Palácio e na Real Residência que “a cada 30 minutos desinfetamos todas as superfícies com uma solução que mata 99,9% de bactérias e vírus, prestando atenção específica às áreas de refeições, maçanetas, telefones, botões do elevador e WC’s”. É garantido ainda que “ajustamos continuamente o serviço de alimentos e bebidas para permanecermos alinhados com as recomendações mais atualizadas de segurança alimentar” e que “todas as refeições são servidas nos quartos” do Hotel Real Palácio. Complementa esta oferta a possibilidade de “providenciar testes de Covid-19 no conforto do seu quarto, mediante um custo extra”.»
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Teletrabalho


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Um gráfico interessante


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Os corvos que para aí andam



«Pelo mundo inteiro, milhões de cidadãos vivem confinados. Os pássaros de Hitchcock tornaram-se realidade. Os corvos, que aparecem por todo o lado, têm agora o nome de um vírus; os outros corvos a que o filme alude, e que são hoje os do neofascismo, aguardam a sua vez.

Na macabra contabilidade dos número de mortes, anunciada como as cotações na bolsa que as acompanha na queda, o medo vira terror em noticiários sensacionalistas. Na rua onde estou confinado, a vizinha da casa da frente — de onde me chega o som em contínuo da televisão —, com a terrível idade da população em alto risco, como somos lembrados constantemente, alerta-me: “Vizinho, veja a televisão, que medo, é terrível!” Medo do vírus, mas cada vez mais de um futuro de miséria, na maior recessão desde a que devastou os anos 1930.

Na Europa, os governos procuram canalizar o medo para impor medidas de emergência no combate à pandemia e fazem apelos à “união da nação”. Herdeiros do estado-providência, muitos governos, socialistas e do centro, tomam medidas para garantir os salários aos confinados, e salvar as empresas. A gripe espanhola já foi há 100 anos, e a peste negra pertence aos livros de História. As referências usadas são as da guerra e os discursos inspirados nos líderes que a venceram. Metáfora perigosa.

É bom lembrar que a extrema-direita, na Europa, renasceu da propagação do medo contra os muçulmanos e os migrantes, facilitada pela chamada guerra contra o terrorismo, da “guerra de civilizações”, do nós e eles que todas as guerras criam.

A extrema-direita tentou, sem sucesso, transformar a luta contra a pandemia numa cruzada racista, como Salvini que afirmou que o vírus tinha sido introduzido por migrantes africanos, e Trump que arengou contra o “vírus chinês” e tomou medidas de exceção contra os migrantes.

O estado de emergência tornou a extrema-direita na oposição inaudível, mas os seus líderes esperam que as medidas que limitam as liberdades habituem os cidadãos à ideia de que a autocracia é o sistema que melhor os protege. Exacerbando um discurso securitário à base de catastrofismo e teorias da conspiração, acreditam que o exemplo chinês lhes pode ser favorável.

O poder chinês, que começou por esconder a existência do novo coronavírus, impôs medidas de controlo dos cidadãos, acedendo aos seus telemóveis e vigiando, através de câmaras de reconhecimento facial, as suas deslocações, como já vinha fazendo.

O autocrata Orbán, na Hungria, mostra bem como a extrema-direita pensa aproveitar-se da crise, procura impor o estado de emergência por tempo ilimitado e penas pesadas a jornalistas.

As posições obscurantistas de Trump e de Bolsonaro, tentando negar a evidência científica, não são um exemplo que ajude a extrema-direita europeia. Se Trump decidiu, em ano eleitoral, assumir a posição de Presidente de Guerra, ambos, em declarações e atitudes criminosas, desvalorizam a pandemia e o número de mortos para salvar as bolsas e os seus interesses.

Para derrotar o vírus em democracia, para vencer a paralisia que o terror cria, é indispensável ter confiança nos cidadãos, garantir uma informação rigorosa e mostrar que a pandemia pode ser vencida. As medidas de exceção devem ser transitórias e sempre aplicadas no respeito pelo Estado de direito e pela liberdade de informação.

Da acção da União Europeia dependerá, em boa medida, o resultado deste teste dificílimo que enfrentam as democracias liberais.

A União Europeia, depois de todas as hesitações iniciais, tem tomado medidas sem precedentes para proteger o sistema financeiro e o mercado único. Medidas insuficientes, uma vez que é preciso mutualizar a divida e criar um mega-fundo europeu para proteger todos os europeus, sem exceção e socorrer os países mais carenciados. A Alemanha e os seus preconceituosos aliados têm de assumir que é a hora da Europa. Como declarou Jacques Delors, a falta de solidariedade é um perigo mortal.

Mais, a União Europeia tem sido negligente no domínio da ajuda humanitária, o que é incompreensível, dado que esse foi um domínio privilegiado da sua ação internacional. É inadmissível que os apelos de Itália tenham ficado sem resposta. Perante as insuficiências da União Europeia surgem a China e mesmo a Rússia, com operações de socorro humanitário.

Os neofascistas esperam que a crise reforce o nacionalismo, o “salve-se quem puder”, que as fronteiras que hoje se fecham não voltem a abrir. Desejam também que se prove a inutilidade da União Europeia e das organizações mundiais para nos proteger.

Mas outro destino é possível. Desta pandemia pode sair uma Europa mais democrática e fraterna, liberta do dogma do neoliberalismo, mais determinada e eficaz na defesa da vida na casa comum que é a Terra. Em suma, que a comunidade das Nações democráticas da Europa volte a ser uma esperança para o Mundo.»

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31.3.20

A Índia à beira de uma tragédia mais do que previsível




«A paragem de muitas das atividades produtivas deixou milhões de trabalhadores sem salários e sem condições de subsistência. Muitos estão a regressar a pé às zonas rurais de que são originários. A polícia tenta reprimir quem o faz. (…)

Sem redes públicas de apoio e sem proteção contratual, largos milhões de trabalhadores dos setores informais da economia, para além dos migrantes, sazonais e à jorna, que trabalham nas fábricas, perderam desta forma a possibilidade de pagar o alojamento e o ganha-pão. Em grandes quantidades começaram a tentar regressar às zonas rurais de onde são originários. Muitos pé, porque a maior parte de comboios e autocarros estão suspensos e porque as deslocações por transportes públicos implicariam custos que agora se tornam incomportáveis.»
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Maria Helena Mira Mateus




Morreu ontem. Não a via há alguns anos, falámos longamente pelo telefone há dois ou três e recordámos então, com muitas gargalhadas dela pelo meio, o passado em que fomos muito próximas e que parece agora mais do que longínquo. Menos uma.
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Uma repugnância atrás da outra



«A crise económica provocada pela Covid-19 será longa e profunda. Para a enfrentar, o Estado terá de entrar em campo como poucas vezes vimos, para apoiar o emprego, as empresas e a produção.

Uma parte deste apoio deverá necessariamente chegar sob a forma de créditos garantidos, subsídios diretos e até mesmo nacionalizações, sempre que estiverem em causa empresas estratégias. Mas uma outra parte, também importante, passa pela regulação de setores e empresas que fazem do abuso a sua regra.

Para além da violação dos direitos laborais em contexto de crise, há outras práticas que devem ser impedidas. É o caso da distribuição de lucros, seja de que forma for.

Se este é o momento de manter o emprego, de financiar a economia e de conceder moratórias aos pagamentos de bens essenciais, então este não pode ser o momento para o BPI entregar 117 milhões aos espanhóis do Caixabank, para a Navigator entregar 100 milhões à Semapa, da família Queiroz Pereira, ou para a EDP Renováveis pagar 70 milhões à EDP que, por sua vez, os entregará à China Three Gorges e à Blackrock, que é "só" o maior fundo privado do Mundo. Bem sabemos que, "nos mercados", os investidores e especuladores, alguns deles acionistas destas empresas, pouco querem saber da sustentabilidade da economia portuguesa. A prova é a penalização das ações do BCP depois de anunciada a suspensão da distribuição dos dividendos de 2019, tal como recomendado pelo Banco Central Europeu. Mas a obrigação de todas as empresas (a tal "responsabilidade social" que faz as delícias do marketing empresarial), é proteger os postos de trabalho e a sua solvabilidade futura. Para que isso seja garantido, não só a distribuição de dividendos das grandes empresas deve ser proibida, como essa regra se deve alargar a outras formas de desnatação, como o pagamento de suprimentos ou respetivos juros.

Para terminar, já que falamos de responsabilidade social das empresas, sobretudo das grandes, talvez este seja também o momento de questionar as suas estratégias de planeamento fiscal. É que, nunca é demais recordar, as holdings de todas as empresas do PSI20 (para onde vão muitos dos dividendos) pagam os seus impostos na Holanda. Já o ministro das Finanças holandês, que não se preocupa em manter um offshore fiscal que destrói as receitas dos outros estados, acha que os países que dizem não ter margem orçamental para lidar com a crise do coronavírus deviam ser investigados pela União Europeia. E o pior é que é mesmo possível que Bruxelas venha a exigir austeridade para compensar o apoio por conta da crise sem precedentes causada pelo vírus.

É uma repugnância atrás da outra.»

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30.3.20

Recuerda que eres mortal



«Talvez este tiempo difícil que estamos viviendo nos sirva de lección, aunque no estoy seguro. Tarde o temprano, por duras que sean las clases magistrales que la vida ofrece, o impone, el ser humano acaba teniendo mala memoria. Deseando, incluso, que acabe la pesadilla para hacer de nuevo lo que, a menudo, fue causa de ésta. Ha ocurrido y seguirá ocurriendo. A veces sucede en un plazo breve y otras en años, o generaciones. No soy optimista en eso, sobre todo porque además de leerlo en libros lo he visto yo mismo. Cuando vives lo suficiente y en los lugares adecuados, hay cosas que no necesitas que nadie te cuente. Las tienes de primera mano, porque forman parte de tu biografía. Las posees y las recuerdas.

Hay una pequeña tienda en el Madrid viejo en la que de vez en cuando compro una pequeña semiesfera de cristal, de ésas que al agitarlas producen un efecto de nieve, que tiene en su interior un iceberg y un Titanic a medio hundirse. Suelo regalárselo a los amigos a quienes la vida coloca en situaciones de privilegio, o de éxito. A los que viven un momento dulce personal o profesional. Era un prodigio de la técnica moderna, digo al entregarlo. Era un buque insumergible, o las 2.228 personas embarcadas en él creían que lo era. Y creer eso, a bordo de un monstruo de acero de 45.000 toneladas lanzado a 22 nudos de velocidad por un mar lleno de icebergs, costó la vida de 1.513 pasajeros. Ocurrió hace 108 años, pero el principio básico sigue siendo el mismo. Acuérdate de eso por muy bien que te vayan las cosas, o en especial cuando vayan bien las cosas. Ten presente, siempre, que cuando un general romano obtenía una gran victoria y desfilaba en triunfo por la capital, en la cuadriga, tras él, iba un esclavo público que sostenía sobre su cabeza una corona de oro, repitiéndole una y otra vez al oído: «Recuerda que sólo eres un hombre». Recuerda que eres mortal.

También yo tengo cerca uno de esos Titanic, en el lugar de la biblioteca donde trabajo. Puedo verlo mientras tecleo. Y más de una vez, en los casi treinta años que llevo escribiendo esta página, he recordado aquí ese barco y lo que, en mi opinión, simboliza. Y no es sólo que cada progreso técnico, cada paso hacia lo nuevo, lleve incluida su propia disfunción, su fallo particular, su accidente específico. Es que también, y sobre todo, nuestro olvido de ese principio elemental aumenta el peligro. Intensifica los riesgos, pues cuando el fallo minuciosamente reglamentado por el azar del cosmos –hay azares que, paradójicamente, son reglas inmutables– sitúa el iceberg correspondiente en el lugar exacto de la carta náutica por la que nuestro alegre barco navega, se cumplen de modo inexorable las viejas y eternas leyes.

Olvidamos con frecuencia que el mundo es un lugar peligroso: un paisaje hostil. Y por cada olvido, cuando llega el inevitable recordatorio a corto, medio o largo plazo, pagamos precios muy altos. Cada despertar de nuestra modorra irresponsable, del engaño en que preferimos vivir, nos cuesta los mil y pico muertos de un transatlántico, los cinco mil de unas Torres Gemelas, los cincuenta mil de una Pompeya, los cien mil de un tsunami, los millones de una gran epidemia o una guerra mundial. Nuestros bisabuelos o tatarabuelos, que estaban más acostumbrados a lo real, lo sabían perfectamente. Conocían la fragilidad de sus vidas y actuaban, o intentaban hacerlo, con arreglo a esa lucidez. Las lecciones que extraían de cada golpe, de cada burla malvada del cosmos o de los dioses, eran más firmes y duraderas. Vivían sabiendo que iban a morir y que ese camino tenía innumerables atajos. Hoy, sin embargo, hemos decidido vivir como si no fuéramos a morir nunca. Cual si estuviéramos a salvo, vamos por el mundo fingiendo ser inmortales, y eso nos hace imprevisores; incluso tacaños a la hora de llevar en el bolsillo la moneda que tarde o temprano nos exigirá Caronte, el que transporta a los muertos a la otra orilla del río Estigia. Nos sorprendemos y protestamos, indignados, a la hora de pagar la factura del barquero; y creo que es un error. No se trata de vivir angustiados viendo la existencia como un drama, sino de caminar con naturalidad por un paisaje lleno de cosas hermosas y también de lugares turbios y peligrosos. Moverse entre los icebergs con la saludable incertidumbre del buen marino, preparados para ocupar los botes salvavidas o incluso para cederlos a quienes más los merecen. Se trata, en resumen, de asumir con sencillez las reglas. De escuchar atentos, serenos, lúcidos, conscientes, las palabras del esclavo que nos susurra al oído que somos mortales. Y sólo esa certeza nos hará mejores de lo que somos.»

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Manolis Glezos



Manolis Glezos morreu hoje com 97 anos. Herói nacional pela participação na resistência grega à ocupação nazi (ficou célebre a subida à Acrópole de onde arrancou a bandeira nazi e içou a grega), activíssimo durante a Ditadura dos coronéis (onze anos de prisão e quatro de exílio), eleito eurodeputado do Syriza em 2014 (erguendo-se sempre contra as medidas de austeridade da troika no seu país).

Encontrei no meu blogue este vídeo de Junho de 2016, onde Glezos responde a Martin Schulz depois de este fazer um discurso em tom de «mea culpa», em nome da Europa, pelas promessas falhadas a Portugal e Espanha passados 30 anos desde a adesão à CEE e de ter acrescentado que, pelo menos, estes dois países tinham hoje uma democracia estabilizada.



«I very much regret that I am forced again to talk about you personally. A short while ago we heard a nice rhetoric that corresponds to reality regarding the dictatorships in Spain and Portugal. But today the free Greece, a country that expresses the will of the Greek people in order to carve its own path, meets the fierce reaction from the three institutions, the troika, as well as by your side. And that strikes me. Who gave you that right? As a person you have the right to intervene and say anything, but as President of the European Parliament I think you do not have the right to express the European Parliament and to intervene in Greece trying to strangle it. All lenders, hands off Greece. Those who think that they can subjugate the Greek people are mistaken.»
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E os velhos, senhor?



«É nos momentos de guerra e de crise profundas, como a que vivemos, que os grandes líderes se confrontam com a História. E que, perante o espelho dos dias, se afirmam, inspirando os seus povos a resistirem e a reerguerem-se.

Ainda vamos no princípio da batalha, feita de soldadinhos de chumbo imaginários, sem trincheiras ou inimigo visível, para usar a linguagem de guerra que tem servido de inspiração aos discursos de chefes de Estado e de Governo um pouco por toda a Europa, de Macron a Marcelo Rebelo de Sousa. Mas os sinais dados quer pela Oposição - com Rui Rio a projetar responsabilidade para o partido e para o país - quer pelo primeiro-ministro exigem de nós igual capacidade de abnegação.

António Costa, cujas declarações de firmeza perante uma Europa que mantém o discurso da moralidade financeira do início da década, da ignomínia do comportamento de arrogância do Norte contra os estouvados do Sul, uma Europa que corre o risco de colapsar pela ausência de solidariedade numa crise sistémica, que parece culpar os mortos por terem morrido, os doentes por estarem doentes, António Costa, repita-se, aprendeu com os erros do passado.

Falta-lhe apenas o discurso da crueza e, contraditoriamente, da capacidade de envolver um Serviço Nacional de Saúde, médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares, abatido por anos de desinvestimento. A mesma verdade que tem quando fala da "pancada", expressão dele, que vamos levar na outra frente da guerra, a da economia, e que nos entrincheira entre a morte da doença ou a morte da cura.

Mas sobretudo quando a única certeza que temos é de que não há certezas de nada, exija-se de cada um de nós que não deixemos, como em Espanha ou Itália, os nossos pais, avós, o retrato do nosso futuro, adormecerem em solidão. Seja porque não cuidamos deles o suficiente, ou porque os deixamos à sua mercê num lar onde jazem outros velhos abandonados.»

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Sem palavras


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29.3.20

Com humor é que isto vai!


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Teimosias e isolamentos



«Caríssimos, tenho ouvido e lido muito sobre a “teimosia” dos mais velhos, que não deixam de sair de casa e não respeitam o isolamento social. No entanto, fico um pouco surpreendida por não ter lido nem ouvido ninguém (nem mesmo o Dr. Daniel Sampaio) referir aquilo que me vai no pensamento e que aqui partilho convosco. Pelo que me apercebo, a nossa população idosa, na sua ampla maioria, conhece involuntariamente o isolamento há muitos anos: há muitos anos que vive uma vida que não escolheu e para a qual toda a vida que teve antes não a preparou. A sua noção de quotidiano foi moldada na ideia de uma estrutura familiar coesa, de uma casa cheia (em qualquer condição financeira, em qualquer situação de harmonia ou de desarmonia). E essa estrutura familiar coesa não era algo que para eles fosse minimamente questionável.

A vida encarregou-se de lhes mostrar o quanto estavam enganados: a família foi-se separando, eles foram ficando cada vez mais sozinhos entre as suas quatro estreitas paredes ou enfiados em lares ou residências como numa arrecadação, como roupa que deixou de servir, como electrodoméstico que se avariou, como objecto inútil. Sem recursos emocionais que os preparassem para enfrentar o seu novo estado, viram-se a afundar no poço da solidão, incrédulos de que ninguém percebesse a ignomínia que lhes estava a ser feita. Aos poucos, muito lentamente, foram construindo a sua minguada rede de salvação, saindo da sua reclusão forçada para um passeio, uma compra, uma troca de palavras com os vizinhos, empurrando com mãos ambas o momento de voltar a enfiar-se nas paredes cada vez mais estreitas das suas casas, adiando o encontro com aquele fantasma de abandono que os atormenta mesmo quando cabeceiam, mesmo quando nele não pensam.

Agora que a espada de Dâmocles está sobre a cabeça de todos nós, os que nada sabem de isolamento vêm ter com eles para, em coro, manifestarem a sua preocupação por não se isolarem nestes dias de crise. Confesso que eu não sei o que lhes vai na cabeça, mas imagino que pensarão que a sua preocupação chega tarde, que teria sido útil há muitos anos quando lhes teria evitado a mastigação difícil e demorada de uma vida que foram forçados a ter. Não recriminam, pois eles próprios compreendem como as circunstâncias do dia-a-dia se alteraram drasticamente ao longo das últimas décadas, mas subconscientemente não aceitam que lhes seja exigido mais um isolamento forçado dentro do seu isolamento vivido. Para eles, não se trata de um período de contenção que dura semanas. Para eles tornou-se na sua história de vida.

Será preciso muito carinho e persuasão para que também eles cerrem fileiras nesta fase, mas creio que isso só será conseguido se lhes for acendida a vela da esperança de que a preocupação dos seus e dos outros (todos nós) ultrapassará a linha temporal do vírus, lhes será companhia num “depois” que, por muito difícil que venha a ser, será sempre mais fácil se não se sentirem sozinhos.

Gostaria que entre as transformações que esta pandemia irá causar na sociedade, venha a constar a da melhor atitude perante os idosos, que, caso as pessoas se esqueçam, é o adjectivo identificativo que corresponderá a quase todos a partir de um dado momento. Acredito que, a acontecer, desse novo paradigma poderá nascer um melhor futuro para todos.

Enfim, caríssimos: Fiquem em casa e não se esqueçam deles... nem agora nem depois.»

Luísa Venturini no Facebook
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Para descontrair



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Coronavírus: Queremos ser chineses?



«Estamos ainda no princípio da pandemia, com o número de infectados a crescer exponencialmente, mas disputa-se já o futuro. A crise sanitária não atenua a rivalidade das potências, antes parece exacerbá-las. Está em curso uma “guerra sanitária” entre os Estados Unidos e a China, enquanto a Europa parece paralisada. Não é só a luta pela sobrevivência, é uma disputa pela liderança mundial na era pós-coronavírus. Há movimentações e debates em várias frentes. América, China e Europa lutam por defender os seus interesses ou para tentar alargar as suas esferas de influência. A Itália é hoje um desses “campos de batalha”. Para muitos analistas, a Itália será a chave da Europa.

Logo após o fracasso do Conselho Europeu de quinta-feira, multiplicaram-se na Weibo, a versão chinesa do Twitter, os apelos a que Roma mude de campo: “É altura de a Itália deixar o G7 e se juntar à China.” A agência Xinhua anuncia triunfalmente que a China já enviou ajuda sanitária a 89 países.

Depois de ter encoberto a epidemia em Wuhan e de se ver no “banco dos réus”, o regime chinês está a recuperar a sua imagem no exterior. “O país demonstrou a sua capacidade para enfrentar um dos novos e mais difíceis desafios sanitários do mundo global”, escreveu o El País em editorial. O Presidente da Sérvia “agradece à China que nos salva”.


A beatificação de Pequim

Em dois meses, muitos italianos passaram de amaldiçoar os chineses e dos insultos e agressões racistas para uma atitude de celebração da “gloriosa China”. Não é uma reacção maciça mas é significativa. Na Itália há um poderoso lobby pró-Pequim. A ajuda sanitária chinesa merece um largo destaque nos media italianos. “Estamos a perder as referências internacionais e tudo se torna numa onda que sobe e desce”, declara Vittorio Emanuele Parsi, professor de Relações Internacionais. “A Itália tornou-se num terreno fértil para as narrativas da Rússia e da China.”

Pequim está a apagar, através uma enérgica campanha de propaganda, interna e externa, o seu fracasso e a responsabilidade na transformação de um surto viral numa pandemia global. Ignoramos o que se passa por trás dos bastidores do Partido Comunista Chinês. O PCC celebra já a sua vitória sobre o vírus. No entanto, a expulsão de correspondentes de jornais americanos é um sinal de fraqueza.

A estratégia americana começou por acusar a China e o “vírus chinês”. Trump recusou assumir a liderança da resposta internacional ao vírus, como os EUA fizeram antes nos casos da SARS ou do ébola. Em contraponto, Pequim adoptou uma estratégia mais fina, apresentando-se como campeã do multipolarismo e da cooperação internacional contra a pandemia.

Observa o comentador Carmelo Palma: “Os êxitos do contágio político cultural da covid-19 levaram, pelo menos na Itália, à beatificação do regime de Pequim e à implícita, ou até declarada, confiança na superior eficácia da não-democracia na gestão das emergências sanitárias ou das emergências em geral. (…) De certa forma, o coronavírus está a completar o trabalho de demolição da hegemonia cultural da democracia, já duramente atingida por duas décadas de declínio económico e de loucura política, populista e soberanista.”

Corre entretanto, na mesma Itália, um debate sobre a “restrição das liberdades”, como efeito perverso da emergência antivírus. É um “debate absurdo”, responde o escritor Michele Serra. “É óbvio que neste período, e não se sabe por quanto tempo, estamos todos sujeitos a drásticas limitações da liberdade individual. (…) Todos perdem alguma coisa, mas em proveito de todos, da comunidade.”

Há um velho princípio do Direito Romano: Salus populi suprema lex - A salvação do povo é a lei suprema. É a lógica da emergência na Itália ou em Portugal.


A distopia chinesa

Para lá da dimensão geopolítica, a pandemia suscita uma segunda e, talvez, mais importante questão: em que sociedade queremos viver? 

Num artigo publicado no El País, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, que ensina na Alemanha, argumenta que o coronavírus está a pôr à prova o nosso sistema. Países asiáticos, como Taiwan, Coreia, Singapura ou Japão estão a responder eficazmente à pandemia, enquanto a Europa dá mostras de a não conseguir controlar.

Evoca algumas razões: “uma mentalidade autoritária, que vem da sua tradição cultural”; as pessoas “são mais obedientes do que na Europa” e “confiam mais no Estado”; na Ásia “impera o colectivismo e não há um individualismo acentuado”. E, sobretudo, “para enfrentar o vírus, os asiáticos apostam fortemente na vigilância digital”.

O caso da China não tem comparação com os vizinhos. Pequim elevou à máxima potência os meios digitais de controlo social. Não estão em causa apenas os 200 milhões de câmaras de vigilância, muitas delas dispondo de técnicas de reconhecimento facial. Vale a pena ler o que Han escreve sobre o sistema de controlo social que a China introduziu e que é inimaginável aos nossos olhos dos europeus.

“Cada cidadão deve ser avaliado pela sua conduta social. Na China, não há nenhum momento da vida quotidiana que não esteja submetido a observação. Controla-se cada clic, cada compra, cada contacto, cada actividade nas redes sociais. Quem passa um semáforo vermelho, quem tem relações com críticos do regime ou põe comentários críticos nas redes sociais perde pontos. (…) Ao contrário, quem compra na Internet alimentos saudáveis ou lê periódicos afins ao regime, recebe pontos. Quem tem pontos suficientes obtém um visto de viagem ou créditos baratos. Quem desce abaixo de um determinado número de pontos pode perder o trabalho. Esta vigilância social é possível porque há um irrestrito intercâmbio de dados entre os fornecedores da Internet, dos telemóveis e as autoridades” (El País, 21.3.20).

Este sistema é particularmente eficaz no combate à epidemia. “Quando alguém sai da estação de Pequim é imediatamente captado por uma câmara que mede a temperatura corporal. Se a temperatura for preocupante todas as pessoas que iam sentadas na mesma carruagem recebem uma notificação nos seus telemóveis. O sistema sabe quem ia na carruagem.”

Esta longa citação serve apenas para frisar a distância entre a nossa emergência e a deles. Quanto à maior eficácia dos sistemas autoritários, podemos também devolver a interrogação: numa cidade ocidental, teria sido possível silenciar um surto do coronavírus como de Wuhan?

Fica a interrogação: em que modelo de sociedade desejamos viver?»

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