20.6.20

O mundo à janela (5)



Casa Batlló, Barcelona, Espanha, 2013.
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João Semedo - seriam 69, hoje


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1.000 pessoas em Carcavelos?




Isto não vai lá assim, não vai parar com conferências de imprensa das autoridades de Saúde, mesmo que estas mostrem que e como a situação é grave, nem com vitórias no mundo do futebol, anunciadas canhestramente pelas mais altas personalidades do país, eufóricas e portanto ambíguas. 
Talvez uma grande campanha de esclarecimento, mas feita por quem é ouvido por muitas camadas da população – Ronaldo, Cristina Ferreira, etc. – pudesse ter algum efeito. (Estou a falar a sério.)
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Não podem estar bons da cabeça



«Esta semana, o assunto natural seria o Orçamento do Estado. Porém, do Palácio de Belém veio outro magno assunto: Lisboa vai ser palco de sete jogos de futebol. As imagens que de lá nos chegaram esclareceram o mistério do paradeiro do ministro da Educação.

Por toda a Europa, gizam-se planos e estratégias para a retoma das aulas. Em muitos países, as aulas já funcionam. Encontraram-se várias soluções. Nuns países, são ao ar livre; noutros, são em dias alternados; há ainda os que recorreram às universidades e estádios de futebol. No caso de França, as aulas funcionarão em pleno já a partir de segunda-feira. Uma preocupação constante é, obviamente, a de recuperar os alunos que ficaram para trás. Como escreve Susana Peralta no “Público”, em Inglaterra haverá programas de recuperação no verão e já se anunciou um plano de contratação de explicadores para os alunos mais atrasados. Na Bélgica, as aulas recomeçaram para os que em fevereiro mostravam ter mais dificuldades.

E em Portugal?! Nada. Na semana passada, o Conselho de Ministros aprovou um Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) sem uma linha sobre retorno às aulas. Aprovou-se um Orçamento sem uma linha dedicada ao reforço de recursos humanos nas escolas, que facilitassem a transição e ajudassem estudantes que precisem. O diretor de turma da minha filha nem sabe se, em setembro, as aulas serão presenciais ou não. Como diz Susana Peralta, o ministro da Educação finge que nada disto é com ele. O que já é do domínio do ministro é dar uma prenda aos profissionais de saúde portugueses. E que prenda!: garantir que a Final Eight da principal competição de futebol da UEFA se realiza em Lisboa. Vemos na fotografia que ilustra o artigo como Tiago Brandão Rodrigues estava empenhado nesta magnífica oferenda. É como se, em vez de um ministro da Educação, tivéssemos um organizador de eventos, provavelmente na dependência orgânica da Secretaria de Estado do Turismo (porque organizar o evento da abertura das escolas parece que não).

A hipótese de não haver ninguém a trabalhar no Ministério da Educação ganhou consistência quando a minha mulher me disse que as escolas estavam a pedir aos alunos que devolvessem os manuais escolares. Vamos lá ver. Este ano as aulas só funcionaram no 1º período e numa parte do segundo e há dezenas de milhares de alunos sem apoio dos professores. É capaz de ser um pouco óbvio que os alunos vão precisar dos manuais durante as férias. Pelo menos os que quiserem estudar. Mesmo que não estudem, no próximo ano letivo, os professores terão de cobrir parte da matéria que ficou por dar este ano. Portanto, pensei que as escolas estivessem simplesmente a aplicar os procedimentos dos anos anteriores, sem terem sequer refletido no assunto. Não liguei muito e disse à minha mulher que ficasse tranquila, que era engano e que a nossa filha não devolveria manuais nenhuns.

Mas não ficou tranquila. Teimosa, insistiu que havia um despacho exigindo a devolução dos livros. E mandou-mo. Não é que há mesmo um despacho?! Foi assinado a 9 de junho, pela secretária de Estado da Educação, Susana de Fátima Carvalho Amador, publicado a 16 de junho, e diz que os manuais têm de ser devolvidos até 14 de julho.

Não se trata de esquecimento. Num ano no qual a escola não funcionou durante mais de um período e em que dezenas de milhares de alunos perderam o contacto com os professores, há mesmo alguém na equipa do ministro da Educação que considera que os alunos têm as matérias consolidadas e não precisam mais dos manuais escolares. Imagino que, no próximo ano letivo, quando os professores quiserem ensinar a matéria que ficou para trás, os alunos deverão procurá-la na internet. Se calhar é por isso que os 400 milhões previstos no PEES para a Educação estão destinados à Escola Digital.

Lamento, mas a incompetência não explica tudo. Simplesmente, naquele ministério, não podem estar bons da cabeça.»

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19.6.20

O mundo à janela (4)




Cusco, Peru, 2004.
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Vhils – isto, sim, é uma bela homenagem




«São cinco assistentes técnicos e operacionais, três enfermeiros e dois médicos. Sete mulheres e três homens. (…)
"Os rostos destas pessoas foram assim gravados na memória das paredes do hospital, de modo a sublinhar quer a sua importância individual quer a importância do Serviço Nacional de Saúde (SNS)", refere artista plástico Alexandre Farto, conhecido por Vhils, que não esteve presente na inauguração.»
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Sondagens Aximage e Intercampus (Legislativas)


  • PS 40% ou 39,9%
  • PSD 25,8% ou 24,1%
  • Bloco 9,8% ou 8%
  • Chega 6,8% ou 5,3%
  • CDU 6,2% ou 4,9%
  • PAN 4,9% ou 4,3%
  • CDS 4,1% ou 1,2%
  • IL 1,9% ou 1,4%
  • Livre 0,8% ou 0,2% 

(Fontes: Observador e Expresso)
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Isto é tão bom!



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A verdadeira Liga dos Campeões é a educação



«Muitas vozes se levantaram a denunciar o silêncio e inação do Ministério da Educação. Correndo o risco de esquecer algumas pessoas, Alexandre Homem Cristo, Carla Castro, Fernando Alexandre, João Miguel Tavares, Luís Aguiar-Conraria, Maria João Marques, todos escreveram, alguns repetidamente, sobre a forma como seis meses sem escola comprometem o futuro de uma geração. Hoje, junto-me ao coro de indignadas e indignados.

No site da UNESCO, há uma página dedicada aos encerramentos de escolas devidos à pandemia da covid-19. O mapa animado permite segui-los ao longo do tempo. No final de março, o mundo todo surge coberto por um manto roxo (escolas encerradas em todo o país), com muito poucas exceções cor-de-rosa (escolas encerradas em algumas regiões do país). Nessa altura, 91,3% das alunas e alunos do mundo estavam fora da escola. A partir de dia 10 de abril, começam a surgir manchas azuis, que é a cor dos países que reabriram escolas.

Na quarta-feira, sobravam 62,3% dos alunos afetados por encerramento de escolas. Uma parte substancial destes estão nos continentes sul-americano e africano, onde persiste um encerramento quase total das escolas. Em África, é uma catástrofe humanitária. Durante a epidemia do ébola, houve um aumento de abusos sexuais e gravidezes nas adolescentes. Esta semana houve um apelo de várias organizações, devido ao risco acrescido de mutilação genital por as meninas estarem fora da escola. Mas não é só em África que a escola é um instrumento de controlo social para situações de risco. Na semana passada, a Confederação Nacional de Ação Sobre o Trabalho Infantil anunciou um preocupante aumento nas denúncias de situações de crianças que estão a trabalhar, sobretudo na restauração. Também há um agravamento da violência doméstica, que vitimiza especialmente mulheres e crianças.

Ainda segundo o site da UNESCO, neste momento, na Europa, a norma é ter escolas a funcionar. Vários países já abriram todas as escolas: França, Suíça, Áustria, Croácia, Estónia, Suécia, Noruega. Todos os outros, à exceção de Portugal, Itália e Irlanda, estão abertos de forma “localizada”, que é como quem diz, com algumas partes do país fechadas e outras não. Fazemos, portanto, parte da minoria de três países com escolas encerradas.

Em todos estes países, foi necessária criatividade para reorganizar o ensino em face da pandemia. Algumas escolas estão abertas em dias alternados, horários parciais, com aulas ao ar livre. Na Bélgica, a opção no ensino secundário foi chamar às escolas apenas os alunos que em fevereiro estavam com maior dificuldade de progresso na aprendizagem. Houve quem mudasse de ideias. De novo na Bélgica, onde inicialmente apenas os alunos do sexto ano iam regressar às escolas por estarem em fim de ciclo, o governo acabou por voltar atrás e colocar todas as crianças do ensino básico na escola com horário normal e turmas completas. Macron, que tinha as escolas abertas a meio gás, anunciou esta semana que a partir de segunda-feira todos os alunos do primário e secundário vão estar na escola de forma obrigatória, com horário completo.

E no ano letivo que aí vem? Por enquanto, o que está anunciado é um programa de 400 milhões para equipamento digital. Mas caramba, se o ensino à distância funciona tão mal, será apenas por falta de equipamento? A equipa do economista Raj Chetty, da Universidade de Harvard, teve acesso a informação da plataforma de ensino de matemática à distância Zearn, que já era utilizada por muitas escolas antes do confinamento. O gráfico mostra o número de sessões completadas numa semana de confinamento, comparadas com o pré-confinamento, por código postal. Ou seja: 0% quer dizer que não mudou nada, -60% quer dizer que há uma quebra de 60% no progresso das crianças. Os resultados estão à vista: os códigos postais correspondentes a zonas mais ricas tiveram uma pequena quebra inicial, mas os jovens rapidamente se adaptaram à nova realidade e voltaram ao progresso pré-covid. Já nas áreas geográficas medianas ou pobres as quebras atingem 60%. Se isto se explicasse por falta de meios técnicos, seria demasiado fácil. O problema é que nas famílias com menos educação, empregos menos flexíveis e maiores angústias económicas ligadas à crise, as crianças estão sem ajuda frente ao ecrã.

Para colmatar o atraso das crianças desfavorecidas, são precisas horas de contacto presencial com docentes. É por isto que em Inglaterra o governo vai organizar programas de recuperação no verão e já anunciou um plano de contratação de tutores (se preferir, explicadores) para colocar nas escolas em setembro, ao serviço dos alunos que perderam o comboio da aprendizagem nestes meses de confinamento. Segundo a Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência, na publicação “Perfil do Docente” do ano letivo 2017/2018, os docentes com mais de 50 anos são 48% no terceiro ciclo, 52% no segundo, 38% no primeiro e 51% no pré-escolar. Em face do risco da covid-19 ligado à idade, por aqui é mesmo urgente reforçar recursos humanos, em vez de comprar Magalhães.

No meio disto tudo, onde está o ministro da Educação? Pode ser que tenha excelentes razões para não acompanhar os seus parceiro europeus na abertura das escolas. Mas então tem obrigação de as partilhar connosco. Pode ser que tenha informação sobre o sucesso do ensino à distância diferente da que tem sido anunciada, a última das quais pela própria Fenprof, que dizia que mais de metade dos professores não conseguia contactar com todos os seus alunos. Duvido. Uma das partes mais inaceitáveis do silêncio do ministro é a absoluta falta de estatísticas oficiais sobre o grau de cobertura do ensino à distância. Será mesmo que Tiago Brandão Rodrigues não quer saber? Ou será que os números que tem na secretária são tão maus como os da Fenprof e ele não quer que nós saibamos?

Afinal, não era preciso procurar muito para encontrar o ministro da Educação. Estava na quarta-feira em Belém regozijando-se com o país político em peso devido à escolha de Portugal para acolher meia dúzia de jogos de futebol. O espetáculo mediático, em direto do Palácio de Belém, foi confrangedor. Nada menos do que o Presidente da República, o primeiro-ministro, o presidente da Assembleia da República, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o ministro da Economia, a ministra da Saúde e ainda o secretário de Estado da Juventude e do Desporto. Para além de Tiago Brandão Rodrigues, claro. Que ele sabe o que realmente importa para o futuro do país e não ia perder esta festarola. Senhor ministro: a verdadeira Liga dos Campeões é a educação. Já chega de fingir que não é consigo.»

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Vera Lynn (20.03.1917 – 18.06.2020)



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18.6.20

O mundo à janela (3)



Mariana, Minas Gerais, Brasil, 2018.
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18.06.1946 – Maria Bethânia



74 anos de idade e 53 de carreira tem esta grande senhora de um país neste momento em plena ebulição e na fase terrível que todos conhecemos.

Voltar a ouvir alguns dos seus grandes êxitos a começar por «Brincar de viver» que terá sido o mais popular nos últimos cinco anos.







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PCP: um suicídio «à petis pas»


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Deslumbramento com o teletrabalho? A agenda para a igualdade entre mulheres e homens determinaria mais ponderação…



«Eis que no Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) se lê que o “Governo pretende, até ao final da legislatura, ter em teletrabalho pelo menos 25% dos trabalhadores [da Administração Pública] de entre o universo daqueles que exercem funções compatíveis com esta modalidade de trabalho, permitindo maior flexibilidade na prestação do trabalho e melhor conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020).

Esse propósito suscita-nos várias questões, desde logo: em que se fundamenta esta intenção do Governo que invoca também como finalidade uma melhor conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional? Em que estudos tão cristalinos se inspirou para que tal intenção dispense, ex ante, a integração de conhecimento, o debate público e a consulta aos sindicatos? Não constava do Programa do PS (legislativas de 2019) promover “um amplo debate em sede de concertação social, com vista a alcançar um acordo global e estratégico em torno das questões da conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar, da natalidade e da parentalidade, incluindo na negociação coletiva temas como o teletrabalho, os horários de trabalho, licenças e outros instrumentos de apoio à conciliação”? Se a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), em articulação com a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, e com o apoio da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), estão a promover (e tão oportunamente) um concurso para financiar projetos que permitam a produção e a difusão de conhecimento sobre os impactos de género da pandemia, não seria mais avisado aguardar pelos resultados dos estudos para delinear uma linha de ação que, afinal, nada tem de emergencial?

Um dos objetivos do concurso é, aliás, financiar projetos que versem sobre as transformações nas formas de organização do trabalho e a conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar. E há outras investigações a serem concluídas ou ainda em curso, além daquelas realizadas antes da crise pandémica. Mas qual o estudo de diagnóstico que sustenta a fixação da meta de 25%? Está ainda por realizar um estudo que, a propósito destes temas, envolva especificamente as trabalhadoras e os trabalhadores da Administração Pública. Não teria sido mais ponderado estimular e aguardar por um diagnóstico atualizado, cruzá-lo com o conhecimento existente, envolvendo especialistas, sindicatos e organizações da sociedade civil num debate público amplo e devidamente informado?

O PEES elucida, ainda, que serão equacionados espaços de “coworking”, antecipando que estes poderão localizar-se no interior do país de forma a contrariar o isolamento social associado ao teletrabalho e a fomentar a portabilidade dos postos de trabalho da Administração Pública. Desde quando é que a mitigação do isolamento social anula o risco de isolamento profissional? E porque não considerar o risco de individualização e fragmentação das/os trabalhadoras/es ?

Informa-nos o exaustivo estudo coordenado pela Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e Trabalho e pela Organização Internacional do Trabalho (Eurofound/ILO, 2017) que as pessoas em teletrabalho tendem a identificar como benefícios o tempo poupado em deslocações pendulares (casa-local de trabalho-casa), a maior autonomia na gestão dos tempos e a maior produtividade. Todavia, os riscos do trabalho à distância são por elas amplamente destacados: tendência para a intensificação do trabalho; diluição das fronteiras entre o trabalho profissional e a vida familiar e pessoal; isolamento social; fragilização das condições de saúde, sobretudo pela exposição aos riscos psicossociais; e diminuição do bem-estar individual.

Apenas as situações não permanentes de teletrabalho/trabalho remoto – e que envolvem, portanto, alternância com trabalho presencial – estão associadas a algum equilíbrio entre riscos e benefícios. No caso das mulheres, e sobretudo das que são mães, há a associar – como aqui referi noutro momento ("(Des)ilusões: teletrabalho, qualidade de vida e igualdade de género") – a sobrecarga de tarefas domésticas e familiares e as frequentes interferências a este nível, agravando a intensificação do trabalho e o sacrifício do tempo pessoal e de descanso.

Creio ser difícil, a partir dos resultados das investigações sobre as experiências do teletrabalho, sustentar uma visão monolítica e determinista. Trata-se de uma modalidade que envolve benefícios e riscos, sendo certo que estes são matizados pelas desiguais condições objetivas e subjetivas das trabalhadoras e dos trabalhadores, incluindo pelas desigualdades que têm a marca do género. Na UE em geral, há mais homens do que mulheres envolvidos/as em “teletrabalho/trabalho à distância com recurso a tecnologias digitais”; no entanto, são mais as mulheres que se encontram regularmente em regime de teletrabalho no domicílio (Eurofound/ILO, 2017, Working anytime, anywhere: The effects on the world of work).

É evidente que a flexibilidade do local de trabalho, tal como a flexibilidade de tempo de trabalho, tem a marca do género – isto é, as motivações, as experiências e os efeitos dessa flexibilidade não são indiferentes aos papéis socialmente atribuídos às mulheres e aos homens. Quantas mulheres e quantos homens, com filho/a(s) com idade até três anos, transitaram para o regime de teletrabalho, à luz dos termos previstos no Artigo 166.º do Código do Trabalho? Eis uma estatística que importa recolher. Sabemos, porém, que quando a flexibilidade está associada a necessidades de conciliação com a vida familiar, são essencialmente as mulheres as trabalhadoras flexíveis, com penalizações na avaliação de desempenho, nas remunerações, nas oportunidades de formação e na progressão da carreira profissional. Basta, aliás, verificar a desproporção de pedidos de parecer que chegam à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) quando há intenção de recusa da entidade empregadora em conceder horário flexível a trabalhadoras ou trabalhadores com filhos/as até aos 12 anos; 87% desses pedidos são efetuados por mulheres.

O que se espera do Governo é que seja coerente nas orientações políticas e de intervenção, de modo a efetivar a igualdade entre mulheres e homens, fomentando a partilha de responsabilidades e a harmonização do tempo dedicado ao trabalho pago e ao trabalho não pago (doméstico/cuidar) entre mulheres e homens. Um dos efeitos que importa ponderar, quando se estimula o teletrabalho (ou a trabalho a tempo parcial), é o possível agravamento das desigualdades entre mulheres e homens no domínio profissional e familiar. O mesmo Governo que aprovou uma Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação, incluindo um Plano Nacional de Ação para a Igualdade entre Mulheres e Homens, não pode deixar de refletir ex ante sobre os possíveis impactos na vida das mulheres e dos homens que podem advir das intervenções previstas no quadro do presente programa de adaptação estrutural da economia portuguesa.

O Estado Português está obrigado à integração transversal e sistemática de uma perspetiva de igualdade entre mulheres e homens nas suas políticas setoriais e nos respetivos orçamentos. Qualquer programa que contemple medidas de emergência, estabilização ou recuperação da economia portuguesa tem necessariamente de a incorporar.»

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17.6.20

O mundo à janela (2)



Catmandu, Nepal, 2005.
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Em desconfinamento


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Faltava o futebol para ajudar o vírus?



1 – Foi hoje anunciado oficialmente que a UEFA decidiu atribuir a Lisboa-Portugal a realização de sete jogos, entre 12 e 23 de Agosto, nos estádios do Benfica e do Sporting, que correspondem aos quartos-de-final, meias-finais e final da Liga dos Campeões. Leio no DN que «a possibilidade da capital portuguesa receber jogos das principais equipas europeias em Portugal deixou os responsáveis desportivos e governamentais em êxtase. A iniciativa da Federação Portuguesa de Futebol envolveu os clubes de Lisboa (Benfica e Sporting), a Câmara Municipal de Lisboa, o Governo e até o Presidente da República, que há duas semanas antecipava uma boa notícia para agosto, referindo-se à final da Champions.»

2 – Na conferência de imprensa de hoje, um jornalista perguntou a Graça de Freitas, DGS, se estes jogos terão, ou não, a presença de público. Resposta? Não se sabe ainda, será articulado com a FPF.

3 – Como não nasci ontem, pergunto:
a) Alguém acredita que a questão relacionada com presença ou ausência de público não tenha sido considerada / acordada entre a UEFA e as entidades portuguesas (eventualmente com uma cláusula de salvaguarda)?
b) Realizamos mesmo a possibilidade de Lisboa ser invadida, dentro menos de dois meses, por hordas de adeptos sequiosos de futebol e não só?
c) Antes de Portugal ter sido escolhido, houve outros países que recusaram albergar este evento? Não sei, mas gostava de saber.
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Uma taxa covid para a solidariedade sem austeridade



«O presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, tem insistido nas últimas semanas nas mesmas ideias: "Temos uma oportunidade de desenhar uma nova Europa". São palavras vazias ou talvez ameaçadoras, como o é o conceito de "nova normalidade" depois da pandemia. O certo é que a União vive uma crise de legitimidade, em resultado do fracasso do modelo pós-Maastricht, que supôs a constitucionalização do neoliberalismo como única política possível. As elites europeias são responsáveis por esta crise da "marca UE". Por isso se empenham numa operação cosmética de pedido de desculpas à Itália por parte da presidente da Comissão, Ursula Von der Leyen, por não ter respondido aos pedidos de ajuda no início da pandemia. Ou, pela mesma razão, Juncker apresenta desculpas à Grécia, reconhecendo agora que "não fomos solidários com a Grécia, que insultamos e injuriamos".

O problema é que as soluções em cima da mesa na reunião do Conselho desta semana não corrigem nenhum desses erros anteriores. É certo que o Pacto de Estabilidade está suspenso, mas só momentaneamente, não sendo revogado, mesmo quando as suas trágicas consequências são agora evidentes. Continua também a regra da submissão de fundos orçamentais às imposições do Semestre Europeu e a outras formas de tutela sobre as medidas económicas e sociais, assim como continua a condicionalidade nos empréstimos do Mecanismo de Estabilidade, mesmo que episodicamente aligeirados no momento em que os homens de fato negro contrastam com as necessidades das batas brancas do pessoal de saúde.

Mas a burocracia volta a falar-nos de "nova Europa", que poderia mobilizar um fundo enorme para a reconstrução pós-pandemia. É certo que a proposta em discussão, mas não consensual, é maior do que o plano original, mas ainda assim menor do que a que a Alemanha definiu para si própria, uma primeira indicação do risco de uma reconstrução assimétrica. Se assim for, temos um fundo insuficiente e desigual, com o risco de um regresso à austeridade destruidora. Este é o foco de tensão na Europa.

O dilema é mutualizar o risco para manter algum equilíbrio político, o que contradiria interesses empresariais, ou permitir que os capitais dos países centrais reajustem o conjunto da economia europeia, acentuando a desigualdade entre Estados membros. Com a recessão de 2009 e a crise da dívida soberana de 2011, ocorreu uma gigantesca transferência de recursos do sul para o centro e das classes populares para as classes dominantes. Foi um tempo marcado por escassez e injustiça. Foi um tempo de oligarquização, ou um sequestro da democracia. Não podemos aceitar que se repitam os mesmos erros.

Para evitar a repetição deste modelo, apelamos a um debate europeu sobre soluções que protejam os de baixo. Para isso, propomos uma taxa covid, de âmbito europeu, um imposto extraordinário sobre os grandes patrimónios, a riqueza e os que lucram com a pandemia, tributando os dividendos e mais-valias, a fortuna imobiliária e em ativos financeiros, as plataformas e agências financeiras e os movimentos especulativos. Essa taxa deve financiar um fundo europeu solidário, que seja utilizado pelos diversos Estados de forma soberana e livre. Este fundo deve fazer frente aos gastos criados pela pandemia, contribuir para as necessidades sociais mais urgentes, incluindo dos serviços de saúde, iniciando uma mudança ambientalmente sustentável do sistema produtivo, garantindo empregos e qualidade de vida. Seria a forma de financiar o esforço orçamental, sem voltar às soluções austeritárias que foram a marca da Comissão Europeia na última década.

Sabemos que há outras medidas urgentes. Mas esta é uma resposta imediata e indispensável, que poderia ser aplicada por vários países coligados, mesmo que não se consiga um acordo na reunião do Conselho. Apostamos decididamente em propostas positiva, ofensivas, que representam uma solução consistente e de esquerda. Assim, combatemos por soluções e não permitimos a invocação de bodes expiatórios. Na resposta à pandemia e aos seus impactos sociais e económicos, tudo depende da força e da vontade democrática.»

16.6.20

O mundo à janela (1)



Singapura, 2012.
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David Mourão-Ferreira morreu num 16 de Junho



David Mourão-Ferreira morreu há 24 anos. Um dos nossos grandes poetas do século XX, ficcionista também, acidentalmente político como Secretário de Estado da Cultura, de 1976 a Janeiro de 1978 e em 1979, autor de alguns poemas imortalizados pelo fado na voz de Amália Rodrigues.

Num «post» de 2019, dois poemas ditos pelo próprio e dois outros cantados por Amália. 
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Aplausos dos ratos, vergonha dos humanos



Os ratos aplaudem: as máscaras apanhadas do chão são muito mais úteis do que as beatas quando quase toda a gente fumava!
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Um novo sistema de valores



«As manifestações anti-racistas surgidas em todo o mundo como reação ao assassinato gratuito de George Floyd por um polícia branco norte-americano podem indiciar uma mudança no sistema de valores, não só quanto a referências, mas também quanto a práticas concretas.

Poder-se-ia dizer que este movimento pelos direitos dos negros norte-americanos, vitimizados por táticas brutais da polícia desde a emancipação falhada do final da Guerra Civil em 1866, está na linha de vários protestos, desde o início do século XX, contra permanente abuso e linchamento, ate ao movimento dos anos 60, que finalmente abriu caminho aos direitos civis, com largos custos, como o assassinato de Martin Luther King, Jr.

Contudo, há algumas diferenças radicais em relação a protestos anteriores. Os movimentos racistas e supremacistas brancos estão em declínio; até aos anos 60 eram eles que assaltavam bairros negros e originavam os protestos. As pilhagens que se verificaram agora nalguns protestos, prejudiciais ao movimento anti-racista, têm sido condenadas, mas não os protestos em si. Nestes protestos vêem-se muitos brancos e asiáticos, ao contrário do que acontecia até aos anos 60. Finalmente, este movimento social tem-se espalhado a outros países, onde o legado colonial é visível nos locais de memória, na topografia e nos monumentos.

Há duas novidades que mostram a mudança rápida de opinião. Em primeiro lugar, o ajoelhar durante o hino nacional como protesto contra a discriminação racial, iniciado em 2016 no desporto, rapidamente condenado e banido, é agora autorizado, ao mesmo tempo que se vêem polícias brancos a ajoelhar em solidariedade com os protestos. Esta nova atitude estende-se a tradicionais corridas de automóveis organizadas no sul dos Estados Unidos sob a bandeira da Confederação, agora banida. Em segundo lugar, as autoridades locais, que durante décadas bloquearam qualquer discussão sobre estátuas controversas, consideram agora a sua transferência para museus.

A vandalização e destruição de estátuas podem ser contraprodutivas, dado o enraizamento de figuras do passado na memória coletiva. Ainda se está para ver as consequências políticas de todo este movimento, por exemplo, ao nível das eleições para a presidência americana em novembro. Contudo, Trump foi colocado na defensiva, é visível a perda de iniciativa depois de uma primeira tentativa militarista falhada por recusa das chefias militares e governadores de Estados. A verdade é que movimentos iconoclastas fazem parte da história, envolvendo a religião hebraica, o Islão e um breve período da Igreja Ortodoxa Grega, a reforma Protestante com exclusão de imagens em diversas regiões da Europa, a revolução francesa com o esvaziamento de igrejas, enquanto o pós-guerra, a descolonização e o pós-comunismo geraram natural substituição de estátuas públicas com sentido político.

Haverá um conflito de memória entre diferentes grupos sociais com interesses políticos opostos, mas na minha opinião estamos num ponto de viragem. A noção de direitos humanos, baseada na dignidade de todos os seres humanos onde quer que eles vivam e qualquer que seja a sua origem e religião, tende a prevalecer. Não se trata já da noção abstrata de Rousseau, que tanto influenciou a declaração dos direitos humanos proclamada pela revolução francesa, mas só se referia a brancos, ou a declaração de independência dos Estados Unidos, que retirou a referência ao esclavagismo dados os interesses dos estados do sul. Trata-se agora de uma atualização, na prática, da declaração universal dos direitos humanos aprovada pelas Nações Unidas em 1948.

Já nessa altura, o debate em torno dos direitos do indivíduo face ao Estado, considerado por Samuel Moyn como pedra angular, abriu-se aos direitos económicos e sociais. A meu ver, a posição de Moyn é limitada, os direitos humanos devem ser entendidos na sua complexidade. O respeito pelas minorias e a rejeição do racismo estão ali inscritos dado o genocídio dos judeus na II Guerra Mundial. Mas o que as últimas décadas trouxeram de novo foi um impulso coletivo para a concretização, na prática, desses princípios, ao nível do acesso a residência, emprego, educação, formas de mobilidade social que permitam quebrar a espiral de pobreza em que minorias e classes sociais estão encerradas.

Entretanto, os direitos das comunidades indígenas e os direitos do ambiente e dos animais têm-se afirmado, apesar dos recuos dramáticos em certos países, sobretudo no Brasil, onde a capacidade destrutiva do governo de extrema-direita podia ter ido ainda mais longe sem a resistência de instituições estaduais e federais. Esses direitos definem novas formas de solidariedade e de responsabilidade por uma relação equilibrada com o planeta onde vivemos e do qual dependemos. Mas há mais, o respeito pelas minorias de orientação sexual alternativa enraíza-se em muitos países, enquanto o respeito pelos direitos dos consumidores e pelos direitos dos trabalhadores, inclusive nos países em vias de desenvolvimento, se torna cada vez mais sensível. As empresas envolvidas em práticas de exploração de salários baixíssimos, ou de produção abaixo dos padrões mínimos de qualidade, arriscam processos de boicote que podem custar a quebra na bolsa ou a simples bancarrota.

O novo sistema de valores envolve uma nova ética de respeito pelas pessoas e pela natureza. O sistema económico capitalista baseia-se no lucro, mas os dias da sobreexploração de pessoas e recursos podem estar contados dada a tomada de consciência dos direitos humanos e ambientais. Os efeitos da globalização, como já tinha previsto Norbert Elias, poderão incluir a difusão desses direitos renovados e readaptados, com novos códigos de conduta a vários níveis, empresarial, organizacional, estatal. O desenvolvimento da economia social, com favorecimento de cooperativas, é uma opção que deve ser tida em conta neste novo período de ética social. A reforma do sistema, prometida por Elizabeth Warren, pode ser imposta simplesmente pela extraordinária crise atual, é uma ilusão pensar que tudo voltará ao que era.

Uma última palavra sobre Portugal: a ideia de que não existe racismo só me faz lembrar uma célebre sondagem de opinião no Brasil, em 1988, no centenário da abolição da escravatura, na qual 97% dos inquiridos respondeu não ter preconceitos de raça, mas 99% declarou que conhecia racistas entre familiares e amigos... O Brasil não é comparável, mas existem numerosos estudos da equipa de Jorge Vala desde 1995, bem como as sondagens regulares do Eurobarómetro, que mostram a existência de um racismo consistente, com preconceitos biológicos e culturais, no nosso país. Os dados disponíveis não colocam Portugal no grupo dos países europeus mais inclusivos. Temos claramente um problema educativo, que o negacionismo de parte da classe política certamente não ajuda a resolver.»

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15.6.20

O Professor foi à telescola



E sobre isto ninguém diz nada? Não sei em que disciplina da telescola se inseriu a «aula», nem por que motivo a RTP a transmitiu em directo em dois canais abertos, mas parece-me que a propaganda eleitoral e o narcisismo deviam ter alguns limites. Os adolescentes das Jamaicas deste mundo devem ter-se sentido bem retratados e muito mais reconfortados (not...).

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1855 foi «anteontem»


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A grande lacuna nas respostas



«Tem-se comparado os impactos da pandemia aos efeitos de uma guerra, e afirmado que se trata de uma catástrofe que ficará a marcar a sociedade como grande acontecimento histórico universal.

Estas comparações não são descabidas. Nas últimas décadas vem-se dizendo que "o Mundo está a viver a emergência de uma nova era". Têm sido relevados os esgotamentos de "velhas instituições", a existência de poderes não controlados e não responsabilizáveis, a proliferação de sofrimentos, riscos, inseguranças, contradições e também de "desafios mágicos" que geram medos e amputam horizontes. E hoje estão bem ativos os movimentos geopolíticos e geoestratégicos que alteram correlações de forças à escala global, bastante protagonizadas por lideranças novas distantes da chamada cultura ocidental.

Uma evidência do relevo histórico deste tempo que vivemos é, sem dúvida, a reafirmação do lugar central que o trabalho tem na sociedade e a necessidade de, em defesa da justiça social, das liberdades e da democracia se eliminarem gritantes desigualdades observadas na sua divisão social e internacional, na sua organização e prestação. Em 1919, no rescaldo da I guerra mundial e de uma grande pandemia, a criação da Organização Internacional do Trabalho significou um sinal da premência das reformas a adotar para proteger os trabalhadores e dignificar o trabalho. Em 1944, ainda a II guerra decorria, já se realizava a Conferência de Filadélfia, repetindo objetivos de 1919 e colocando os direitos dos trabalhadores como direitos humanos. No início da construção da União Europeia houve um forte envolvimento dos trabalhadores e seus sindicatos (até indicavam um dos comissários da Comunidade) e plasmou-se o compromisso de harmonizar no progresso os direitos laborais e sociais.

Observemos agora o que se passa em algumas áreas que mais expressam a irracionalidade do sistema económico e social dominante e mais expõem as pessoas e os países a vulnerabilidades, e verificamos: i) a afirmação crescente de que o financiamento da economia não deve continuar prisioneiro de dinâmicas mercantis e, por isso, colocam-se os bancos centrais a dar as respostas que só eles podem e devem dar; ii) o reforço da ideia de que não é sustentável um sistema produtivo baseado em redes de subcontratações (cadeias de valor) globais e discute-se a reindustrialização e a necessidade de cada país não abdicar da produção de bens e serviços essenciais; iii) a tomada de consciência quanto ao respeito pelo ambiente, debatendo-se a descarbonização, o recurso a energias limpas e práticas que não desequilibrem os ecossistemas; iv) que no trabalho, no emprego e nas relações laborais não há mudanças, nem na opinião nem nas políticas, prosseguindo a imposição da cartilha neoliberal da flexibilidade e da desvalorização, carregada de subjugações, de violações de direitos, de injustiças que ampliam a pobreza.

Urge mudar de agulha no mundo do trabalho, sob pena de se transformar o choque pandémico numa crise social e económica permanente. Nesta pandemia, os trabalhadores, presenciais ou em teletrabalho, demonstraram uma capacidade de adaptação, de rigor, de criatividade que devia envergonhar quem teima em pagar salários de miséria e legislar utilizando os escabrosos pressupostos da vantagem do chicote e da suspeição sobre quem vive da venda da sua força de trabalho.»

Manuel Carvalho da Silva
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14.6.20

Mudam-se os tempos, muda-se Marcelo


Há um ano, andava ele pela Costa do Marfim, onde foi coroado «rei do amor», certamente bem mais divertido do que neste país semiconfinado, sem selfies nem abraços.
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Estátuas


«Em Berlim, em Moscovo ou no PREC, o entusiasmo da libertação justificou o excesso. Não há qualquer razão para o confronto se fazer assim em democracias consolidadas. Mas podemos discutir as estátuas que temos, como começou a fazer, perante estes acontecimentos, a Câmara de Londres. Como vivemos em democracia, não o fazemos pela calada da noite. As estátuas não são sagradas, a democracia sim.»

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Não é apagar a História. É História a acontecer



«Enquanto as revoltas de rua que se seguiram à morte de George Floyd estiveram, digamos assim, confinadas ao território americano, foi uma maravilha. Toda a gente pôde partilhar nas redes sociais o seu lado humanista. A imprensa nem por um momento discorreu sobre eventuais conflitos de saúde pública pela aglomeração de pessoas. Compreenderam-se até alguns excessos; afinal, falávamos de raiva reprimida. Havia um ambiente geral empático, talvez motivado pelo facto de ser relativamente fácil antagonizar com Trump, ou então, por existir essa ideia mítica de que isso do racismo é lá uma coisa deles, que nós aqui não temos nada disso.

O problema foi quando a indignação chegou também aqui. Começou com as manifestações do fim-de-semana, em particular com a de Lisboa, da qual resultou um vibrante sobressalto cívico. E de repente o que foi uma exteriorização sem igual foi transformada num desfile desordeiro, por causa de um ou dois cartazes marginais, e imprudente, quando muitos dos que se manifestaram têm a sua vida exposta ao risco pela pandemia (nos transportes, obras ou cadeias produtivas em que trabalham para que outros fiquem em casa) desde o início da mesma, perante o alheamento geral.

Mas não se ficou por aqui, surgindo responsáveis políticos como Rui Rio, a afirmar com bonomia que racismo em Portugal não existe, e que manifestações anti-racismo são, isso sim, o combustível do racismo. O tipo de raciocínio que Trump costuma utilizar, quando nos confrontos de Charlottesville, em 2017, pôs ao mesmo nível neonazis e quem se manifestava contra os mesmos, da mesma maneira que agora tenta colar quem está na rua a um pequeno grupo antifascista, procurando afastar as atenções sobre as origens raciais, sociais e económicas da indignação.

Agora são as estátuas. A memória colonial. Um debate que tem vindo a ser feito nos últimos anos e que só ganha em ser aprofundado, mas que aqui resvala quase sempre para as ideias simplistas de inocência ou culpa, quando o que está em causa é olhar o passado de forma plural, como ele é sempre, para melhor perspectivar o presente e futuro. E, sim, isso passa por questionar representações, principalmente se forem actuais, sobre o passado colonial, como no caso da estátua do Padre António Vieira, erguida em 2017. No limite, não está em causa a figura, nem o possível legado anti-racismo à luz da época em que viveu, mas sim a imagética que perpetua narrativas colonialistas e esclavagistas que devem ser discutidas hoje.

Ficou nítido nestes últimos dias a grande incapacidade que Portugal ainda tem em integrar estas questões e perceber a zanga que paira no ar. E essa é que é a questão. Falamos de pessoas a quem foi prometido um futuro melhor e com menos desigualdades. Estão fartas de sofrerem os chamados “efeitos colaterais” do sistema económico. Querem olhar de frente o futuro e ter voz própria, embora afirmá-la não seja fácil, principalmente quando o foco da sua intervenção é constantemente desviado, como aconteceu nos últimos dias. O pensamento dominante não consegue, ou não quer, pôr-se no seu lugar. Não é apenas o racismo. A insatisfação é mais lata. É um programa crítico comum em que a cultura neocolonial, patriarcal, neoliberal e a ausência de políticas ecológicas firmes desempenham um papel central.

É um grito de mudança. Foi nisso que se transformou a morte de George Floyd. Uma luta colectiva que para milhões é a única forma de darem sentido à sua vida. E é por isso que existe tanta crispação. Criam-se novas conflitualidades e existem paradoxos e até alguns excessos em todas estas lógicas? Inevitavelmente, porque é de desejo de transformação que falamos e de hierarquias de dominação ou de privilégio que foram naturalizadas e agora são contestadas. Há quem diga que aquilo que está a acontecer é apagar a História, mas é exactamente o contrário — é História a acontecer.»

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