14.11.20

Estados de alma

 

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Regras sem excepções

 



Duas das três primeiras figuras desta República laica foram hoje a uma cerimónia religiosa em Fátima, uma delas em casal. 

Oiço numa TV que a cerimónia terminou às 12:30 e nem Marcelo, nem António Costa, nem a mulher, devem ter chegado a casa antes das 13:00. Segundo julgo, os políticos estão autorizados a circular durante horas de recolhimento obrigatório. Fernanda Tadeu não exerce, que eu saiba, qualquer cargo político – desobedeceu, pura e simplesmente. Estou, propositadamente, a ser mesquinha, mas os maus exemplos são fatais e não devem existir, nem como excepções.
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Injectar lixívia em política



 

José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«Um dos principais argumentos dos defensores do acordo com o Chega é a similitude entre a unidade da direita sob a direcção do PSD e os vários acordos do PS com o BE e o PCP. Se “eles” o podem fazer, por que é que “nós” não podemos? Sim, admitem, o Chega é pestífero, mas não o é mais o PCP ou o BE, com quem o PS se aliou para governar? O Chega é racista e xenófobo, e o PCP e o BE não são contra a Europa e a NATO, e amigos dos ditadores comunistas? Por aí adiante... 

Esta comparação não tem qualquer fundamento nem factual, nem social nem histórico nem de ciência política, faz parte apenas de uma narrativa política autojustificatória para 2020. É o equivalente aos absurdos de Trump com a hidroxicloroquina ou o injectar lixívia nas veias para “limpar” o corpo do coronavírus. 

Para nos colocarmos em 2020 e não em 1917, ou em 1933, ou em 1975, façamos uma distinção entre a tradição e o programa genético dos partidos e aquilo que é hoje o seu “programa activo”. O “programa activo” é o que um partido faz de facto, como actua, como recruta, como cresce ou diminui, o que é que o torna um sucesso ou um falhanço, que imagem tem na sociedade e junto dos seus militantes, “o que é que o faz/os faz mexer”, ou seja, a identidade prática do partido. A tradição, a história, o conteúdo programático original são muito relevantes e estão sempre presentes, mas, para analisar o que é a actuação, o carácter, a “natureza” de um partido, sem ser de forma a-histórica, ou seja, no presente, o “programa activo” é mais relevante porque toma em linha de conta a factualidade da sua actuação. Esta diferenciação não é nova e já foi usada para a história do PSD, distinguindo entre o conteúdo programático e a “história não-escrita”, ou seja, a história do partido como fonte de identidade. 

Voltemos à equivalência Chega/BE ou PCP. São o BE e o PCP partidos “revolucionários” cujo objectivo é derrubar a democracia, substituindo-a por uma ditadura do proletariado ou um eufemismo como a “democracia avançada”? Se tivermos em conta a tradição dos vários grupos esquerdistas que formaram o BE e a génese e a história do PCP, a resposta é sim. Ambos têm origem na tradição comunista de raiz marxista-leninista. Mas de há muito que quer um, quer outro têm “programas activos” bem longe dessa tradição. Não vemos nem o PCP nem o BE preparar-se para a revolução, inevitavelmente armada e violenta, nem a organizar um sector militar clandestino nem a cumprir nenhuma das explícitas obrigações de um partido comunista traduzidas nas célebres 21 condições da Internacional Comunista. E sempre foi claro desde Lenine que estas condições são para cumprir, sob pena de estarmos a falar de partidos que se “social-democratizaram” ou se “aburguesaram”. 

Nem o PCP nem o BE, cuja composição agrupa várias tradições esquerdistas, do maoísmo ao trotskismo, e que têm génese no leninismo organizacional, o fazem. E toda a panóplia de elementos complementares, seja a abolição da propriedade, a luta de classes, o anticapitalismo, é isso mesmo, de elementos complementares, que não são exclusivos do comunismo, mas partilhados pelo anarquismo, pelo fascismo, pelo nacional-socialismo, pelo socialismo radical. E só a deslocação excessiva das classificações políticas para a direita considera que sindicatos, greves, manifestações, combate aos despedimentos ou mesmo propostas anticapitalistas (que o PAN e a Iniciativa Liberal também fazem) são “revolucionárias”. 

Pode-se perguntar se isto acontece por oportunismo, para disfarçar a suanatureza aceitando as regras democráticas... Se é assim, já dura há muito tempo para que seja um disfarce. O tempo conta para o “programa activo” porque ele condiciona hábitos, práticas organizacionais, recrutamentos, processos, culturas. E isso muda quase tudo. 

Vamos ao Chega. Como é um partido novo, o programa e as propostas estão ainda próximas do “programa activo”, mas existe uma diferença de conveniência entre o discurso oficial e o discurso real, aquele que recruta, move os militantes, dá identidade ao partido. E esse é claramente racista, xenófobo, violador dos direitos humanos e antidemocrático. Podem-se apontar muitos exemplos, mas, por economia de espaço, fico-me pela pedofilia, uma das bandeiras do Chega, que levou mesmo a manifestações de rua. Corrupção e pedofilia são um par no discurso do Chega, mas as faces que são apresentadas nos cartazes são apenas de políticos, excluindo qualquer referência, quer a empresários ou a banqueiros, no caso da corrupção (“Portugal é um mar de corrupção: Duarte Lima, Vara e Sócrates”, diz um cartaz), quer a padres, no caso da pedofilia. O Chega entende que há uma ligação entre pedofilia e corrupção e essa ligação é o “sistema político”: “Pedofilia é igual a podridão do sistema político”, diz um cartaz. Esta obsessão com a pedofilia e com a castração é reveladora, porque no discurso do crime e da ordem, que é vital no Chega, não são todos os crimes que contam. Por exemplo, a violência doméstica, que mata muitas mulheres por ano, não é crime para o Chega. Na verdade, nem é o crime nem a injustiça nem a pedofilia nem a corrupção que contam, mas a sua correlação com a política democrática. A solução para o problema é simples: “Pedófilos, castrados já”, o que podemos traduzir, sem perda de sentido, por acabe-se, castre-se o “sistema político”, ou seja, a democracia, que produz pedófilos e criminosos. 

Nos seus “programas activos”, o BE e o PCP caminharam para a democracia, o Chega caminha para fora dela e a força da sua inegável vitalidade vem daí. Os eleitores do Chega não são inocentes, sabem muito bem em que votam e o que votam.»
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13.11.20

Triste sina

 

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Boa tarde

 

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PSD fez bem em formar governo nos açores com o apoio do Chega?

 


É certamente a primeira vez que divulgo um texto de MANUELA FERREIRA LEITE. Sim, lembro-me que sugeriu a suspensão da democracia por seis meses, mas o contexto e os tempos eram outros. Alguém que se diz incondicionalmente social-democrata junta-se sem reservas a todos os que já «normalizaram» o Chega como «compagnon de route» – para já nos Açores, quando puder ser em todo o Portugal.

Como alguém escreveu por aí, agora «há nós e eles». Ou, como diz o velho ditado, «diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és»


«Ao fim de 24 anos de governos socialistas, os Açores apresentam os piores índices de pobreza, indicadores negativos na Educação e na Saúde, estagnação do desenvolvimento económico e social com índices mais baixos do que a média da União Europeia, menores do que o continente e incomparáveis com os da Madeira. Esta herança só poderá ser invertida com a alteração da política seguida que se tem caracterizado por uma excessiva presença do Estado na sociedade e por uma paralisante subsidiodependência dos cidadãos — 8,5% da população activa viva de subsídios. Daqui resulta uma indisfarçável e inevitável submissão dos cidadãos às forças políticas dominantes. 

O resultado destas eleições mostra que a população açoriana não quis mais o Partido Socialista a governar sozinho. Quis mudar. Para isso, varreu o Partido Comunista da Assembleia Regional e acrescentou-lhe a novidade de dois partidos recentes. 

Perante este quadro, o PSD-Açores formará governo com o CDS-PP e o PPM, recuperando a Aliança Democrática, e assegurando o apoio parlamentar do Iniciativa Liberal e do Chega. 

A necessidade imperiosa de abafar este revês eleitoral levou à demonização do acordo parlamentar entre o PSD e o Chega invocando as características ideológicas deste partido. 

O que aprendi com a democracia leva-me a rejeitar esta reação. A democracia consagra um princípio fundamental e “sagrado”. O poder decide-se pelo voto e não pela força. Cada pessoa é um voto. Um voto livre porque é anónimo. Assim, não existem os votos dos iluminados e os votos dos ignorantes. 

Há os votos dos eleitores que traduzem a sua escolha. É esta a grandeza da democracia. Os deputados eleitos têm igual legitimidade. Não há nós e eles. Divergimos nas ideias, não no estatuto. 

Nem sempre dá jeito, mas é assim. O acordo parlamentar do PSD Açores com o Chega está escrito, não é secreto, é transparente. Os pontos acordados não beliscam os princípios e os valores do PSD. 

O combate político faz-se pelo debate ideológico e pela prática virtuosa da governação. Não é desprezando os adversários e deixando os eleitores sozinhos à mercê de discursos que, por serem uma lista de ilusões, captam os desiludidos. A alma do PSD está intacta e não vira as costas, apesar das críticas, ao serviço patriótico que pode prestar ao notável povo açoriano, contribuindo para o progresso a que legitimamente anseiam.» 

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12.11.20

Câmara Municipal de Lisboa 1993


 

Foi esta a coligação que venceu as eleições autárquicas nesse ano. Não me lembro de ter sido exigido a Jorge Sampaio, pelos diferentes partidos coligados, que organizasse excursões a Gori onde Estaline nasceu, a Coyoacán onde Trótski foi assassinado ou a ter uma estátua de Hoxha na Praça do Município.
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A quem se encostam as «direitas democráticas»

 


«Diz hoje Morais Sarmento, vice-presidente do PSD, para justificar a aproximação entre o seu partido e o Chega, que o PS tem telhados de vidro porque "o BE saúda a Venezuela e a Coreia do Norte". É curioso este argumento: negociamos com vigaristas porque vocês também fazem aliança com gente criticável. 

Vamos aos factos (e nem comento a alegação sobre a Coreia do Norte, Sarmento não precisava de mostrar a sua imensa ignorância). 

A relação com os presidentes da Venezuela foi desenvolvida pelos governos Sócrates e Passos Coelho, ou pelo presidente Cavaco Silva (na foto). Não foi por outros. Foi por estes. 

O PSD e o CDS foram dos melhores aliados do Partido Comunista Chinês, a cujas empresas entregaram a EDP e a REN. Suponho que uns e outros estão muito gratos. E Morais Sarmento, num episódio que gosta de esconder, foi o orador convidado de um congresso do partido de José Eduardo dos Santos, com o qual tinha relações privilegiadas (na foto, o seu ministro dos estrangeiros com JE dos Santos). 

Percebe agora porque é que o PSD gosta de tiranos? Ataca um partido, o PCP, que, tendo relações internacionais criticáveis, combateu a ditadura que efetivamente existiu em Portugal, e tenta confundir esse partido com o Bloco. Um truque para disfarçar o entusiasmo do PSD pela aproximação ao Chega. Mas é Morais Sarmento a falar, não se podia esperar mais.» 

Francisco Louçã no Facebook
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No desespero, decide-se bem com boa informação

 


«À medida que nos aproximamos do limite de capacidade das unidades de cuidados intensivos do Serviço Nacional de Saúde (e não serão seguramente as 112 camas de UCI dos privados, poucas delas disponíveis, que nos salvarão), a situação vai ficando mais desesperada. Sobretudo no Norte. Por mais severos que sejamos com o Governo, nem os médicos intensivistas se prepararam em meses nem Portugal tem um SNS pensado para ser o 15º país com mais casos de covid por cem mil habitantes. 

Apesar de críticas que fiz e faço a várias decisões tomadas, sou muitíssimo sensível à situação que vivemos e ao escassear de soluções que atiram o Governo para medidas drásticas. Mas, mesmo que tenham de ser drásticas, as medidas têm de ser racionais. E a minha maior dúvida continua a ser em relação ao recolher obrigatório nas tardes de fim de semana. Porque ele tem um efeito indesejado e perigoso: concentrar na rua, nos supermercados, nos espaços de lazer e em todo o lado, toda a gente nas manhãs de sábado e domingo. Se juntarmos o recolher obrigatório nos dias de semana, será naquelas duas manhãs que se concentrarão imensas atividades de muitos portugueses. O que me parece o contrário do que se deseja. Outro efeito colateral é a última machadada na restauração e nas atividades culturais. Mas esse é outro debate. 

O argumento para uma medida que parece contraintuitiva é que 68% das infeções acontecem em família e encontros sociais. Que é preciso impedir os almoços e jantares de família alargada, especialmente explosivos neste momento. Evidente. Mas aí, o problema com que nos deparamos é de rigor dos números para garantir medidas acertadas. Porque continua a não ser claro se os contágios dentro do agregado familiar que vive na mesma casa estão nestes números. E se estão, estes números são inúteis. Como é evidente, o contágio dentro do núcleo familiar que coabita é muito provável e comum. 

O que precisávamos de saber é que peso têm estes almoços e jantares que se querem evitar. E não é picuinhice de quem quer ser esclarecido. É para ter a certeza que o problema que estamos a criar – concentração de pessoas nas manhãs de fim de semana – é muito menos grave do que aquele que queremos evitar. É só um exemplo de como é impossível tomar decisões acertadas sem recolha rigorosa de dados. Tem havido, aliás, muitas críticas sustentadas de cientistas à falta de rigor mínimo dos dados. 

O que leva ao verdadeiro e mais grave atraso: a utilização de mais meios para o rastreamento, que só agora parece ser uma preocupação central. A recolha de informação é, num país pouco habituado a planear, bastante desprezada. Não apenas pelo Governo, mas por toda a gente. Por isso falamos sempre das carências de médicos, mas perdeu-se pouco tempo a falar da carência de pessoal para o rastreamento epidemiológico. Os primeiros servem para tratar, os segundos é que ajudam a tomar decisões certas para prevenir. 

Dito tudo isto, as dúvidas não impedem o respeito pelas decisões tomadas. A liderança do país é democrática e as medidas anunciadas estão dentro dos limites do que se autoriza um Estado de Direito a decidir durante uma pandemia ao abrigo do Estado de Emergência. Sendo certo que o sentido critico não infeta ninguém.» 

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11.11.20

No dia delas

 


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11.11.1975 – Independência de Angola

 


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Lisboa vai morrendo a pouco e pouco

 


Casa do Alentejo. Restaurante emblemático da capital em risco de fechar 

Vídeo AQUI.
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O lado B do Chega

 


«Não estava escrito nas estrelas, mas era mais ou menos óbvio que a Direita iria pôr em marcha um plano político de poder simétrico ao da geringonça de Esquerda. A questão era saber com quem, com que urgência e com que filtros civilizacionais. Os Açores transformaram-se no tubo de ensaio para um casamento de conveniência que, por obra e graça do PSD de Rui Rio, conseguiu alcandorar à condição de cola institucional da governação regional um partido que defende a castração química dos pedófilos, a prisão perpétua, o reforço das fronteiras e o fim dos serviços públicos de saúde e educação. 

Porém, para este PSD parece haver um Chega mau (o do continente que foi a votos com um programa extremista e elegeu André Ventura) e um Chega bom (o dos Açores, que elegeu dois deputados e pugna pelo combate à corrupção, por um corte no número de deputados e pelo controlo da malandragem que vive dos subsídios do Estado). 

A verdade é que Rui Rio ergueu uma cerca sanitária em torno das suas linhas vermelhas e princípios morais para melhor acomodar a realidade aos seus interesses momentâneos. O PSD tem toda a legitimidade para coligar-se com quem entender, mas não pode socorrer-se do argumento da súbita moderação do Chega para assinar um acordo (ainda que seja só nos Açores) que não deixa de legitimar a natureza de um partido que age como um predador. O Chega continua a ser nacionalista, extremista e muito pouco humanista. 

Depois, esta moderação programática em que nem Rui Rio deve acreditar terá, a prazo, um efeito destrutivo junto do próprio eleitorado social-democrata. É o PSD que tem mais a perder com uma credibilização institucional do Chega, ainda para mais num contexto de dissipação eleitoral do CDS e maior fragmentação de votos. 

Acreditar que o Chega tem um lado B, de bonzinho, é não perceber que o Chega só tem uma preocupação: chegar ao poder. Pensar que um partido que elegeu um deputado está a marcar o passo da Direita em Portugal diz muito bem de André Ventura, mas diz muito mal de quem está a levá-lo em ombros.» 

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10.11.20

Moçambique; um enorme drama sem fim à vista

 



«Os grupos armados que há três anos espalham o terror no Norte de Moçambique atacaram várias aldeias, decapitando e desmembrando “mais de 50 pessoas”, incluindo vários rapazes. Os ataques começaram a 31 de Outubro e aconteceram ao longo de vários dias, primeiro em 11 aldeias do distrito de Muidumbe, depois em povoações da região de Macomia, ambas na província de Cabo Delgado.»
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Os Açores não são um offshore constitucional, Dr. Rio

 


«PSD, CDS e IL fazem o que disseram que nunca fariam: uma aliança com o Chega. O mesmo Chega que, para Cotrim de Figueiredo, líder da IL, tinha uma "matriz incompatível" com a do seu partido e que, segundo o líder do CDS, se afastava dos valores do centro-direita. Rui Rio até já tinha admitido que pudesse haver "conversas", mas só se o Chega evoluísse para uma posição "mais moderada". 

Acontece que o Chega não moderou nenhuma das suas posições violentas e anticonstitucionais. Foi o PSD que se vergou, assinando este acordo e mandando às urtigas a sua matriz democrática e constitucional. (…) 

São conhecidas as ligações do líder do Chega ao mundo selvático dos paraísos fiscais. Quem viveu um ano no Parlamento acumulando o seu cargo com a remuneração de consultor e vendendo conselhos a milionários interessados em contornar obrigações fiscais, já mostrou que pouco valor dá às regras da democracia e da República. A pátria de Ventura são o negócios e quem os faz. Acontece que os Açores são parte da nossa democracia e não um offshore constitucional.» 

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Pobre é para morrer?

 


«Foi recentemente suspensa através de Despacho Ministerial, durante o corrente mês, “a atividade assistencial não urgente que, pela sua natureza ou prioridade clínica, não implique risco de vida para os utentes, limitação do seu prognóstico e/ou limitação de acesso a tratamentos periódicos ou de vigilância”

A interpretação desta determinação não é fácil, por apelar a conceitos relativamente indeterminados. Se optarmos por uma interpretação restritiva, quase nenhuma atividade assistencial será suspensa: basta considerarmos que todo o ato clínico que não seja fútil ou supérfluo, se não for oportunamente realizado, terá consequências no prognóstico previsível da pessoa. Tal será ainda mais claro se atendermos a que a Medicina hoje é, cada vez mais, preventiva e preditiva, assegurando a prestação de cuidados que impeçam ou retardem o aparecimento da doença. Se fizermos uma interpretação ampla desta ordem ministerial, grande parte da atividade assistencial hoje prestada a doentes crónicos (pessoas com diabetes, esclerose múltipla ou Parkinson…) poderá ser suspensa, com possíveis graves consequências na sua esperança de vida. 

A determinação do exato conteúdo deste despacho terá consequências na delimitação do universo de pessoas que serão abrangidas, no curto prazo, pela suspensão de atividade assistencial no âmbito dos hospitais do SNS. Porém, independentemente da grandeza do universo abrangido, coloca-se outra questão fundamental: onde irão essas pessoas aceder aos indispensáveis cuidados de saúde de que necessitam e que, com frequência, não serão adiáveis sem consequências mais ou menos sérias para a sua saúde? 

A Pordata diz-nos que somos cerca de dez milhões e 280 mil habitantes, dos quais cerca de seis milhões e 600 mil se integravam, em 2018, na população em idade ativa. Que o número de pensionistas, nesse ano, rondava os três milhões de pessoas, sendo o rendimento anual médio dos da Segurança Social manifestamente reduzido. As consequências da pandemia de covid-19 no mercado de trabalho traduziram-se no aumento significativo da taxa de desemprego e da precariedade laboral, elevando, deste modo, o número de pessoas que carecem de proteção da sua saúde no nosso País. 

A Constituição diz-nos que o direito à proteção da saúde é realizado através de um SNS universal e geral, incumbindo prioritariamente ao Estado “garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação”. A ordem de suspensão poderá impedir o Estado de cumprir parcialmente esta sua tarefa fundamental. Parte (cerca de um milhão e 200 mil) dos cidadãos recorrerá ao subsistema da ADSE. Parte acionará, para o efeito, o contrato de seguro de saúde privado de que é titular… E como acederão a cuidados de saúde “não urgentes” os que não têm proteção alternativa à conferida pelo SNS e que são a grande maioria da população portuguesa? 

O reforço orçamental previsto para o SNS só produzirá efeitos atempadamente se se alterarem de forma ainda mais significativa os morosos procedimentos concursais, que nem sempre asseguram os valores do mérito (pense-se no peso excessivo atribuído ao fator “entrevista” na seleção dos candidatos à generalidade dos concursos públicos) e se houver um real empenho na substancial melhoria das condições laborais e de carreira dos profissionais de saúde. 

O rápido aproveitamento da capacidade instalada nos sectores social e privado, através do recurso equitativo e em obediência a critérios de interesse público aos instrumentos jurídicos negociais disponíveis para o efeito, é outra solução possível. 

Ou, ainda, a alternativa do fazer de conta que se faz, deixando arrastar a situação e aplicando o lema que, uma vez, ouvi, no Recife: “Pobre é para morrer.” O aumento da mortalidade em 2020 tem sido significativo, relativamente à média dos anos anteriores. 

A celeridade no assegurar a prestação de cuidados de saúde que evitem a deterioração do estado de saúde da grande parte da população socioeconomicamente desfavorecida em Portugal é um imperativo ético-jurídico urgente. Se foi importante assegurar a viabilidade económico-financeira da TAP pelo menos até ao final do corrente ano, também o é assegurar a melhor saúde possível do Povo que a empresa simboliza e que não quer antecipar, num dia que seja, o seu voo para o Céu, por falta de “atividade assistencial” atempada.» 

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9.11.20

Rui Rio – cristalino

 


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O «novo normal» também é isto

 

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Precisa-se de quem saiba falar de covid-19. Entrada imediata



 

«O Governo português preparou bem o país para a segunda vaga da covid-19? Não, falhou em vários pontos fundamentais, convergem vários especialistas com os quais o PÚBLICO falou. Uma das falhas foi a comunicação com os cidadãos, essencial para mudar comportamentos que barrem o caminho a infecções, como o uso da máscara. Quanto à conferência de imprensa tri-semanal (começou por ser diária) da Direcção-Geral da Saúde e membros do Governo (primeiro lado a lado, agora já separados), acabe-se com ela. 

“A meu ver, só se alterarmos o comportamento das pessoas é que conseguiremos evitar um novo confinamento. Temos de voltar a conseguir dialogar com as pessoas, a consciencializá-las. Não é responsabilizá-las, é consciencializá-las”, frisa Tiago Correia, professor associado de Saúde Internacional e investigador sénior no Global Health and Tropical Medicine, unidades do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa. 

E isso não acontecerá mantendo os protagonistas que os portugueses se habituaram a ver na televisão a debitar números da pandemia – a directora-geral de saúde, Graça Freiras, a ministra da Saúde, Marta Temido, ou os secretários de Estado da Saúde. “A directora da DGS ficou associada à política e, como perita, perdeu a confiança dos cidadãos, por ter ficado associada aos políticos, nos quais os cidadãos e cidadãs não confiam”, diz por sua vez José Manuel Mendes, coordenador do Observatório do Risco - OSIRIS, com sede no Centro de Estudos Sociais, na Universidade de Coimbra. 

“Esta ainda é uma hipótese, tenho de a testar, temos de fazer inquéritos”, admite Mendes. Mas o que tem visto, sublinha o sociólogo, “não é comunicação de risco, é basicamente transmissão de informação para a comunicação social, e controlo da narrativa”. Por isso não tem dúvida: “Aquelas conferências não são comunicação de risco, deixaram de o ser há muito tempo e deviam acabar, são uma legitimação da narrativa política...” 

O pneumologista Jaime Pina viu inúmeros sinais de uma comunicação disfuncional. “A estratégia comunicacional esteve muito mal, muito baseada nos números. Aqueles briefings da DGS que já ninguém vê. Não podemos esquecer que mais de dois milhões portugueses têm mais de 65 anos. Não podemos esquecer que as organizações internacionais dizem que Portugal é dos países com maior iliteracia em saúde. Nós somos dos países da União Europeia com menor acesso aos media”, sublinha. 

“Fez-se uma comunicação baseada em números para quê? Para chegar aos órgãos de comunicação social. Ora isto não chegou a ninguém e por isso é que há uma população que na sua maioria não tem mensagens interiorizadas”, completa Jaime Pina, membro da direcção da Fundação do Pulmão. 

Os cidadãos estão cansados daqueles rostos, já não acreditam naquelas imagens, naquelas vozes, naquele discurso, frisa Tiago Correia. “Não é um julgamento sobre a sua competência, é uma constatação.” É que sem haver medicamentos, ou vacinas, interroga Jaime, Pina, o que resta? “As velhas medidas de combate às infecções, que são eficazes. Não é por acaso que a China não tem casos. Não sendo uma democracia, com tudo o que de mal que isso acarreta, não esteve oito meses à espera de tornar a máscara obrigatória”, como nós. 

Mas, para que a comunicação de risco seja eficaz, é preciso segmentar os públicos-alvo e encontrar interlocutores capazes de fazer chegar as mensagens a esse público. “Vozes que criem menos ruído, que cheguem mesmo às pessoas, porque claramente com estes as pessoas já desligaram”, frisa Tiago Correia. 

“Vão buscar os youtubbers e os influencers, se for preciso, e os artistas, as pessoas que têm capacidade de passar as mensagens necessárias para os jovens”, sugere José Manuel Mendes. “Quem tem mais seguidores no TikTok?” 

É preciso confiança 

Isto não quer dizer, no entanto, que devamos continuar a ter um espaço público povoado por tantas cabeças falantes que às tantas é impossível saber quem são, ou quem está correcto – na verdade, isso é o que está a acontecer, diz José Manuel Mendes: “O campo está muito cacofónico, há muitas vozes a falar, o representante dos Médicos de Saúde Pública, a Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Médicos, e as conferências diárias”, enumera. Isto para não falar nos comentadores políticos puros e duros, como Paulo Portas ou Marques Mendes, cujas aparições nos media “podem parecer informativas mas não são”, frisa o especialista em avaliação de risco. 

“Em Portugal, as instituições em que as pessoas tinham mais confiança eram os bombeiros e o INEM, e depois os peritos, os cientistas, os professores. A comunicação de risco no caso da covid-19 baseou-se no modelo convencional antigo, aquilo a que se chamava a compreensão pública da ciência, ou seja, parte-se do princípio que o cidadão é ignorante, e que temos de lhe dar os dados para compreenderem o que são os factos. Mas as pessoas são co-produtoras, vão analisar e avaliar, desde logo, a legitimidade de quem está a comunicar. E só se coopera se houver confiança”, explica José Manuel Mendes. 

Um exemplo? “As pessoas têm de ter confiança nas instituições para ter a Stay-Away Covid no telemóvel, e não a estão a usar porque não confiam na forma como foi instituída e não querem o estigma de estar inseridos numa base de dados de pessoas que tiveram a doença”, afirma o sociólogo. 

“A nossa falta de preparação teve muito a ver com a falta de capacidade para fazer rastreios e a má comunicação. As pessoas só ouviram que morreram não sei quantas pessoas, e mais não sei quantas estavam internadas, e quando muito a informação vinha dividida por cinco regiões. Ora isso não é nada para as pessoas, é completamente abstracto”, afirma o investigador. 

“A etapa de reforço do sistema nacional de saúde foi muito bem tratada”, assevera o pneumologista Jaime Pina. “Mas a estratégia comunicacional com a população falhou e essa é que permitiria efectivamente diminuir o número de casos. Não transmitiu às pessoas as regras que deviam ter interiorizado, e fez com que existissem mais casos na segunda onda de infecções pelo novo coronavírus, que teria sempre que existir. Houve na Gripe Asiática, na Gripe de Hong Kong, há sempre duas ondas, é uma regra…” 

Perceber a nossa bolha 

Mas o pior, constata Tiago Correia, é que tudo isto pode não chegar para evitar um novo confinamento. “Lamentavelmente acho que não. Em virtude de haver um descontrolo nas cadeias de transmissão, uma falta de capacidade de voltarmos a rastrear todos os casos.” 

É aqui que entra a urgência de melhorar a comunicação, para mudar rapidamente a forma como agimos. “Só os nossos comportamentos é que nos podem salvar neste momento. É crítico que no próximo mês, até voltarmos a reduzir o número de casos, e voltarmos a ter capacidade de rastreio, as pessoas interiorizem a ideia da bolha: apelar às pessoas que restrinjam ao mínimo o número de pessoas com quem têm contactos de risco.” 

Esse mínimo é o seu agregado familiar, os seus filhos, os seus pais. E como perceber quem está fora da sua bolha e pode ser um contacto de risco? “Um exercício engraçado é pedir às pessoas que escrevam num papel o número de pessoas com quem está, sem máscara, em sua casa. E verá que um amigo foi lá jantar, um amigo do filho, um avô que já não via há muito tempo, etc, etc. Quando começam a escrever num papel vêem que tem muitos contactos que não podem ter, infelizmente…” 

Mas a falta de clareza na comunicação e nos objectivos pretendidos persiste, nota José Manuel Mendes. “Agora estamos em estado de emergência, para salvarmos o Natal. Mas eu gostava de saber, o que é se pretende salvar no Natal - as dinâmicas familiares, ou a dinâmica comercial? A mensagem nunca foi clara, sobre o que pretendemos e como podemos chegar lá.”» 

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Açores

 

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8.11.20

Marisa Matias

 


O Diário de Notícias publica hoje uma importante entrevista à candidata à Presidência da República, que pode ser lida AQUI.
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E na próxima quinzena...

 

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Aviso à Navegação

 


O Conselho de Ministros esteve ontem reunido durante cinco horas e deitou búzios para decidir o que fazer. Não reparou que os ditos búzios estavam rachados, interpretou mal os sons e saiu ISTO

As inscrições para fugir para Marte já esgotaram. A primeira descolagem é no próximo Sábado, 14.11.2020, às 12h59.
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Já está!


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