1.5.21

Iliteracia

 

Dezenas de pessoas das TVs, andam pelos restaurantes, como se não houvesse amanhã, para averiguarem se a Calamidade está a torná-los felizes. Uma delas lamenta que «nada suprime» quando pretende afirmar que «nada compensa».

Fica uma sugestão: não podiam definir uns planos de formação desses profissionais em que dedicassem meia hora por dia a fazerem Palavras Cruzadas? Garanto que ajudaria e creio que não peço muito…
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Há 110 anos foi assim

 

Foto de Joshua Benoliel

1911, Lisboa – Operários da panificação, em greve, pelo descanso semanal.
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No dia em que o futuro não tinha impossíveis

 

 
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Este MEL tem um pequeno problema: é pegajoso

 

Edward Lear, The Owl and the Pussy-Cat, 1867 

«Antes de mais, para que não haja confusões deliberadas – hoje a maioria das confusões são deliberadas –, eu acho muito bem que o Movimento Europa e Liberdade (MEL) faça uma convenção com os seus; acho muito bem que convide quem entender; acho muito bem que, se Sérgio Sousa Pinto, Álvaro Beleza e Luís Amado se sentem bem lá, devem ir; acho muito bem que se o MEL quer Ventura lá, o convide; e acho que a clarificação que daqui resulta é positiva para a política portuguesa. O caso de Rui Rio fica para o fim.

A clarificação vale muito e a lista de pessoas vale muito mais. No seu núcleo duro está a tribo. Este núcleo vem da comunicação social, em particular do principal think tank da direita radical em Portugal, o grupo de comunicação social do Observador, online, rádio e revistas, que pelos seus financiamentos é claramente um braço armado de um lóbi empresarial, e assenta numa lógica política sectária. O jornal tem qualidade e, de novo, ainda bem que existe. Mas convém não ter a ilusão de que se trata de um projecto de comunicação social – é um projecto político da ala mais radical da direita portuguesa e o que verdadeiramente nele conta é a opinião e a mobilização da tribo pelos comentários. E é essa opinião que está em peso no MEL, Rui Ramos, José Manuel Fernandes, Helena Matos, Jaime Nogueira Pinto, Alexandre Homem Cristo, João Marques de Almeida, Vítor Cunha, etc.

Esta lista comunica com blogues, alguns actualmente muito próximos do Chega e da extrema-direita, que não é a mesma coisa que a direita radical. E tem uma presença muito activa nas redes sociais, a que se acrescenta a opinião no PÚBLICO (Fátima Bonifácio, João Miguel Tavares) e no Jornal de Negócios (Camilo Lourenço, Joaquim Aguiar), na imprensa económica em geral, e nas televisões em sinal aberto, com Portas e Júdice. Só a lista de nomes e posições revela como a vitimização da direita sobre o acesso aos órgãos de comunicação social é apenas isso, vitimização, para se apresentarem como perseguidos quando têm vindo a aumentar significativamente a sua presença nos jornais, rádios e televisões. O problema não está tanto na opinião, está na crescente influência na agenda editorial. De novo, para não haver mais daquelas confusões intencionais, acho muito bem na opinião, até porque alguns deles são gente com qualidade. Agora não me venham com histórias da carochinha sobre vitimizações.

A Maçonaria está também presente, a do PSD e a outra, da direita radical. Depois há gente do PSD, e da Aliança, na sua esmagadora maioria opositores de Rui Rio, vindos do “passismo”, reciclado em nostalgia da troika, como Morgado, Pinto Luz, Paulo Sande, Nogueira Leite, etc. Do mesmo modo, a esmagadora maioria dos presentes que não são do PSD andaram nessas águas durante o governo Passos-Portas-troika e são agressivos opositores de Rio, que tratam como uma espécie de traidor serventuário de António Costa e do PS. Para eles, o que é preciso é correr o mais depressa possível com Rio para “reconfigurar a direita” com o único partido que tem votos, o PSD.

Há outra questão. O MEL não está a fazer um colóquio ou um debate, está a fazer uma “convenção”. Isso significa que há pertença, e é por isso que tem sentido falar de uma espécie de “congresso” de uma certa direita, a direita que inclui o Chega, a Iniciativa Liberal, o CDS e… parte do PSD.

Depois, o resto é o que se espera. Nenhum problema do país, e da sua realidade de atraso, pobreza, exclusão, desigualdade, injustiça, exploração, desequilíbrio nas relações laborais, baixos salários, débil protecção social, ambiente, corrupção, estará presente nas intervenções, ou, se não estiver ausente, será de forma perversa, para falar de outras coisas. Nem nenhum problema sério da direita conservadora, democrática e liberal será lá discutido. Compreende-se que seja assim, não é para isso que eles vão lá.

Os três problemas desta direita serão iludidos. O primeiro problema da direita é a ineficácia eleitoral, não é o adormecimento das pessoas pelas habilidades de Costa, nem a “perseguição” de que são “vítimas”, nem o esmagar das liberdades do povo português manipulado pelo PS a pretexto da pandemia. Tretas. O segundo problema, que é a causa do primeiro, é a sua radicalização e tribalização. Criam grande identidade e militância, para dentro, mas marcam fronteiras de ferro e fogo para fora. Para além da sua fronteira, todos são comunistas ou idiotas úteis da esquerda. E a tribo está longe de ser grande, daí o desejo de capturarem o PSD e o estarem à vontade com o Chega, porque precisam do populismo agressivo. Desprezam-no como gente fina que são, mas precisam de alguma rua. O terceiro problema, que deriva do segundo e explica o primeiro, é a errada análise da realidade política, com uma aproximação ideológica e política que tem medo de dizer ao que vem, com uma enorme ambiguidade em relação à ditadura e à guerra colonial, com contradições profundas entre um nacionalismo de bandeira e a aceitação do poder não-democrático da Europa, se lhes servir de reforço para a TINA, entre o reaccionarismo de costumes, a agenda evangélica à portuguesa e às modas a que são sensíveis pela idade e pelo corpo, entre o machismo, a xenofobia, o racismo e o autoritarismo para que tendem, e a perversão da palavra liberdade.

Tenham, pois, uma boa convenção. Mas, o que é que Rui Rio está a fazer lá?»

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30.4.21

Há 46 anos, o fim da Guerra do Vietname

 


No dia 30 de Abril de 1975, a rendição de Saigão (actual Ho Chi Minh) pôs fim à Guerra do Vietname que durou quase duas décadas e se saldou por uma estrondosa derrota dos norte-americanos. 

Ver AQUI um post de 2020 com informação e vídeos.
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Mariana Mortágua, Governo e Apoios (29.04.2021)

 

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Viver à fome

 


«Se o pobre tivesse silêncio de corrupto, o país indignar-se-ia em alvoroço persistente, haveria debates parlamentares e diretos nas TV, livros brancos, verdes, brancos, haveria planos nacionais e acordos de regime, haveria ação política movida a protesto cívico, mas a mobilização raspa mais vezes a cabeça do fósforo contra as vergonhas do que a favor das convicções. E nisto vergonhas não há. Porque o silêncio do pobre não zanga nem se zanga. O pobre não tem sindicato, partido, nem voz. Como escreveu Raul Brandão, que tirou esse degredo do segredo, os pobres “têm a alma cheia e não sabem falar”. Nem os demais ouvir o seu silêncio.

Eles, os pobres, são dois milhões de nós, mais ou menos centena de milhar conforme a recessão geral. Uma vez por ano, um rácio do INE é notícia do dia à noite já esquecida. Outras vezes, como agora, um estudo arranca um “isto não pode ser!” e depois continua a ser. Os outros oito milhões submergem a consciência nas suas próprias carências, sobretudo se além de não ouvirem o silêncio do pobre não virem a sua invisibilidade. É melhor não sujar o olhar, é melhor ver números, é melhor ver apenas, como também escreveu Brandão, “os pobres que não pedem”.

Agora é o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e só não lê quem não quer. Ler que há pobres com contrato de trabalho, que há pobres com trabalhos precários, que pobres crianças que serão pais de pobres, que há velhos pobres e não os há mais porque há pensões. A raiz não está na preguiça, como os ignorantes gostam de estalar, está nos salários baixos e nas pensões baixas que eles geram. O país lamenta e pede “mais, mas não de mais, se não os gajos não trabalham”. É uma farsa: metade dos pobres trabalha, com contrato ou sem ele. O “vai trabalhar, malandro” é para os privilegiados, para os que deviam trabalhar para acabar com a pobreza dos outros, mas os outros estão longe ou são invisíveis ou silentes e nós deixamos do lado de fora do quarto o aviso “não incomode por favor”. Condoemo-nos mas não é connosco, é com o Governo, e cada Governo culpará o anterior e remeterá o próximo.

No discurso desta semana no Capitólio, Joe Biden anunciou um plano para cortar metade da pobreza infantil nos EUA e associou as medidas ao aumento do salário mínimo. Em Portugal, o aumento do salário mínimo tem efeitos colaterais adversos, como o esmagamento das faixas salariais, mas é das melhores medidas que o Governo tem promovido. Mais, até, do que as medidas avulsas em tempo de pandemia, que transformou todos os ministérios em Ministérios da Segurança Social.

Não basta. Se há coisa que o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos mostra é que um país que não cresce há duas décadas não pode se não fabricar pobres; que o dispositivo de medidas sociais disponíveis (do RSI ao Complemento Social para Idosos) tem de ser revisto, na formatação e condições de acesso; e que os pobres não se queixam nem se revoltam, resignam-se de trabalho em trabalho até serem substituídos pelo futuro da automação e da Inteligência Artificial. Artificialmente inteligentes somos nós se consentirmos este país pobre, desigual, excludente. Com os nossos apoios sociais não se morre de fome, mas com esta economia vive-se de fome. Só a sociedade pode dar voz à boca do pobre, para que a política se mova. Ou então não, ou então voltamos para a semana e falamos do silêncio do corrupto, também é bom tema e sempre cria vergonha.»

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Pobretes mas alegretes

 


Todos contentes porque vamos entrar em Estado de Calamidade. Quem diria!
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29.4.21

Nuno Brederode Santos

 


29.04.2017 – Quatro anos sem ele.
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Justo, justíssimo

 



«A Universidade de Lisboa, sob proposta da Faculdade de Letras, vai atribuir o grau de Doutor Honoris Causa a Jorge Silva Melo e Luis Miguel Cintra.»
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29.04.1945 – Quando as francesas votaram pela primeira vez

 


Em França, foi só em 1945 que as mulheres exerceram pela primeira vez o direito de voto. Em eleições municipais, 87 anos depois dos homens.

Em Outubro do mesmo ano, foram 33 as eleitas para a Assembleia Constituinte, num total de 586 deputados. Isto no país que, em 1789, gritou: «Liberé, égalité, fraternité». Foi longo o caminho.

(Note-se que só em 1965 é que as francesas puderam abrir uma conta bancária, ou aceitar um emprego, sem autorização do marido. E não havia por lá um Salazar gaulês...)




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28.4.21

O mundo virou

 


Em 2019, almocei no topo da CN Tower de Toronto. Se me mostrassem então que, dois anos mais tarde, estaria com dezenas de velhos arrumadinhos em cadeiras de plástico multicolores para sermos picados por uma espécie de maná, nem conseguiria imaginar do que se tratava.
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A Índia também é isto

 


Com o pensamento no drama que a Índia está a viver, a beleza do TAJ MAHAL em Agra.
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Tabus, orgulho na nossa História e desenvolvimento

 


Um contraponto ao discurso de Marcelo sem nunca o nomear, mas que sublinha o indispensável.

«Há povos que olham a sua História de frente, separam o trigo do joio, orgulham-se do que fizeram bem, assumem o que praticaram de errado para que não o repitam, para que as novas gerações aprendam com os erros do passado. Assim olham para o futuro e avançam.

Outros vêm a sua História como uma epopeia que se não pode questionar, como um período notável, isento de erros, cheio de glórias. Assim olham para o passado, choram o presente e não avançam. Não percebem que foi o passado que construiu o presente. Para eles o passado não é uma fonte de lições mas de inspiração.

Os primeiros olham a História do ponto de vista crítico, os segundos do ponto de vista laudatório, os primeiros como um passo incipiente e cheio de erros numa caminhada para o futuro, os segundos como um exemplo a repetir.

Em Portugal a tendência dominante é para ter esta segunda perspetiva da História. Por isso ela é tão sensível. Qualquer referência a acontecimentos que tinjam o passado surge para os poderosos como insuportável, como ultrajante para a sua grei, como feita por inimigos que os querem impedir de repetir o passado e, de novo, atingir, a glória. Esses acontecimentos passam a ser tabus, assuntos de que se não pode falar, espaços de não liberdade, de silêncio, de censura.

Ora na era da informação, essa atitude leva-nos ao atraso e apenas tem como consequência serem outros a estudar e a revelar esses acontecimentos.

Como não quisemos estudar Química hoje aprendemos as teorias de outros. Como não quisemos estudar Física as nossas escolas ensinam agora os contributos de outros. Como não quisemos estudar Gestão os manuais desta disciplina são traduzidos de outras línguas. O rol é imenso.

Como não queremos estudar o racismo e o preconceito em Eça de Queirós é nas Universidades norte-americanas que esse exercício científico se faz.

Como não queremos estudar a guerra colonial é noutros países que esse trabalho se faz. Como não queremos estudar o Movimento Negro da I República é nas revistas científicas brasileiras que os trabalhos sobre esses acontecimentos se publicam.

Não conseguimos parar o saber, apenas conseguimos tornar-nos mais ignorantes. Transformamo-nos no povo que não sabe, não conhece e não estuda a sua própria história e que se a quiser entender tem de recorrer aos trabalhos de estrangeiros.

Na nossa História existem acontecimentos de que nos devemos orgulhar e outros dos quais nos devemos envergonhar, pedir desculpa e procurar corrigir as injustiças e o sofrimento então causados. Devemos orgulhar-nos da separação com Leão e da nossa independência, mas não do massacre da população de Lisboa, devemos orgulhar-nos da revolução de 1385, podemos orgulhar-nos de contributos para a arte da navegação à vela, mas não do tráfego de pessoas escravizadas.

Existem pontos horrendos na nossa História. A Inquisição que nos mergulhou na ignorância durante séculos, o Fascismo que nos oprimiu no século XX, o esclavagismo e o colonialismo, que permitiu a alguns beneficiar do sofrimento e da morte de muitos. Olhar para esses crimes com orgulho é monstruoso. Situa-los no tempo e no espaço é imprescindível para os compreender em todo o seu horror, nunca para os desculpar e normalizar.»

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27.4.21

Índia



 


O que se passa na Índia ultrapassa a nossa capacidade de imaginação!

«A Índia tem registrado mais de 300 mil casos por dias. Na segunda-feira, o país registrou o maior número de casos diários de coronavírus pelo quinto dia consecutivo, com 352.991 novas infecções e outras 2.812 mortes em um período de 24 horas. (…)

Vários pacientes morreram em Delhi devido à falta de suprimento de oxigénio. Os hospitais da cidade estão desesperados e alguns têm emitido alertas diários, dizendo que restam apenas algumas horas de oxigénio.»
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João Cravinho acusa Governo de Sócrates de travar o combate à corrupção

 


Ver AQUI entrevista na íntegra.
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Pouco provável, mas...

 

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Marcelo e o país mais que imperfeito

 


«Em 2017, oito alunos de história do 12.º ano do Liceu Camões aceitaram falar com o DN sobre a forma como viam o passado imperial e colonial português. Para estranheza da própria professora, a maioria reproduziu o mito de que Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura, em 1761 (altura em que foi abolida a escravatura apenas no território de Portugal "metropolitano" e mesmo assim não completamente). Do mesmo modo, quando questionados sobre o que sucedera aos escravos depois de em 1869 se ter dado a oficial abolição da escravatura em todos os territórios nacionais, muitos ficaram interditos. Um afirmou: "Então, deram-lhes o estatuto igual aos das outras pessoas."

Não é espantoso. A maioria esmagadora dos portugueses, atrevo-me a dizer - eis uma sondagem que gostava de ver - continua a achar que "fomos os primeiros a abolir" e desconhece totalmente o facto de à escravatura dos negros se ter seguido o trabalho forçado, só formalmente abolido em 1962. Essa realidade do trabalho forçado, que em pouco se distinguia da escravatura, atravessou o final do século XIX, a Primeira República e praticamente todo o Estado Novo. Nas leis, os negros classificados como "indígenas", ou seja a maioria da população de Moçambique, Angola e Guiné, eram excluídos da cidadania e tratados como sub-humanos - constatação que o próprio regime salazarista fez através dos seus documentos internos, como demonstra o historiador José Pedro Monteiro em Portugal e a questão do trabalho forçado (Edições 70, 2018).

A esmagadora maioria dos portugueses, dizia, desconhece estes factos, e desconhece-os não porque eles não estejam amplamente estudados por gerações de historiadores e investigadores académicos, com vasta obra publicada sobre a matéria, mas porque disso pouco tem passado quer para a discussão pública quer, o que é fundamental, para aquilo que se aprende na escola e se lê nos manuais do ensino básico e secundário. E não passa porque haja uma determinação consciente e malévola de mentir, mas porque coletivamente nos apegámos à mistificação.

O problema não é, ao contrário do que se possa crer, exclusivo de pessoas "pouco cultas". Ainda há poucos meses um reputado constitucionalista português me asseverava que o "nosso" regime colonial não foi racista. Quando lhe retorqui com alguns factos básicos - nomeadamente a instituição do trabalho forçado e a lei do indigenato - respondeu-me "era assim também nos outros países". Só ficou sem argumentos quando lhe lembrei que data de 1930 a convenção da Organização Internacional do Trabalho - só ratificada por Portugal em 1956, com prazo de cinco anos para aplicação - obrigando os signatários a acabar com o trabalho forçado no mais curto prazo possível, e que os próprios relatórios dos funcionários coloniais portugueses comparavam, até ao final dos anos 1950, a realidade do trabalho forçado à da escravatura, descrevendo castigos corporais com chicote e grilhetas e chegando a dizer que o primeiro era pior que a segunda, já que nesta ao menos o dono não estava interessado em matar o escravo já que pagara por ele, enquanto no trabalho forçado tanto lhe fazia: se morria pedia outro.

A ideia de que "não se pode olhar para a realidade do passado com os olhos de hoje", tão usada a propósito da história imperial e colonial portuguesa, soçobra perante a evidência de que estamos também a falar de coisas que se passaram há menos de 100 anos, quando outros países ocidentais já tinham iniciado a descolonização e quando eram muitas as vozes, inclusive em Portugal e nas colónias, a criticar - e a lutar contra - o que se passava. Muitos dos olhos de então já olhavam aquela realidade como a olhamos hoje, como iníqua, ilegítima e brutal.

E sim, vem todo este grande intróito a propósito do discurso de Marcelo neste 25 de abril - um discurso notável, talvez o melhor que já lhe ouvi, e no qual teve a inteligência de sublinhar a sua condição de filho do último ministro das Colónias e de um dos últimos governadores de Moçambique, testemunha privilegiada (em vários sentidos) do ocaso do império e da ditadura colonial.

Esta assunção da sua condição pessoal - que aliás repetiria a seguir num encontro com capitães de Abril e jovens, no qual também fez um discurso muitíssimo interessante - tem um propósito mais ou menos claro: o de demonstrar, e bem, que o 25 de Abril é simultaneamente rutura e continuidade. Como ele, filho de um alto dignitário da ditadura que faria parte da Assembleia Constituinte de 1975 e acabaria duas vezes eleito presidente da democracia, os militares que fizeram o golpe "não vieram de outras galáxias, nem surgiram num ápice daquela madrugada para fazerem história. Traziam já consigo a sua história." E a sua história eram "as suas comissões em África, uma, duas, três, até quatro, (...) tudo em situações em que a linha que separa o viver ou morrer é muito ténue."

Eram pois os soldados do regime colonial, algozes, ocupantes, matadores, até serem os heróis da libertação. Sabemo-lo, ou devemos sabê-lo - mas saberá Marcelo distinguir entre quem retirou dessa experiência a deliberação de acabar com ela e quem, como Marcelino da Mata, a cujo enterro foi há meses como presidente, ou seja em nome de todos nós, se gabava dos seus crimes nessa guerra e louvava a ditadura?

É que esse é o problema: distinguir. E Marcelo, como a maioria esmagadora dos políticos da democracia, sejam como ele filhos de homens da ditadura ou como António Costa de oposicionistas, têm mostrado dificuldade nessa distinção e nesse olhar para trás, na capacidade de traçar a linha entre o que é admissível e até celebrável e o que deve ser censurado - porque é preciso dizer que houve coisas censuráveis e criminosas, por mais que tenham feito parte de um contexto.

Daí que seja tão bem-vinda a exortação do presidente para "que se faça história, história da história, que se tirem lições de uma e de outra, sem temores sem complexos", o reconhecimento de que "é prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo, o que houve de bom e o que houve de mau. (...) Que saibamos fazer dessa história lição de presente e de futuro. Sem álibis nem omissões (...)."

É isso mesmo. Ou seria, se a seguir não acrescentasse: "É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas nem autoflagelações globais excessivas (...) nem apoucamentos injustificados." É de novo a preocupação com "a visão auto flageladora da nossa história" que vimos recentemente em António Costa, preocupação extraordinária num país que até hoje se encarniça em negar "o que houve de mau" ou chega mesmo a celebrá-lo; preocupação contraditória num discurso presidencial que nos diz que temos de olhar a história também "pelo olhar dos colonizados".

Olharmo-nos pelo olhar dos "descobertos", dos submetidos, dos colonizados e dos seus descendentes não é só dizer que "nunca houve um Portugal perfeito" - a melhor frase do discurso do presidente. É sobretudo reconhecer o que desse passado mais que imperfeito resta em nós como país, denunciá-lo e combatê-lo. Aquilo, suspeito, a que Marcelo chama "excesso".»

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26.4.21

26.04.1974 – «Declaração de Entrega dos Ex-Membros do Governo» no Funchal

 


No dia 26 de Abril de 1974, «foram entregues» no Funchal, pelo comandante do avião que as levou de Lisboa, as «seguintes entidades»: Américo Tomás, Marcelo Caetano, Silva Cunha e Moreira Baptista.

O governador militar assina a aceitação da «mercadoria» e o Chefe do Estado Maior / CTIM autentica. Tudo ordeiramente, na maior das legalidades. Foi assim.
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Censos 2021



 

Apercebi-me hoje de que mesmo pessoas instruídas ainda não deram pela sua existência.

É de resposta obrigatória, o prazo acaba em 3 de Maio e as multas para quem não responda estão longe de ser meigas. Fica o aviso.
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Quando tivermos um dia a mais de liberdade

 


«Tenho passado anos nestas páginas escrevendo sobre a importância do dia em que tivermos mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura, mais tempo de liberdade do que de repressão. Para mim, essa data tem uma importância que vai muito para lá de uma mera efeméride: mais do que uma comemoração, ela deve ser uma missão.

Vi por isso com natural contentamento o Governo decidir iniciar as comemorações para os cinquenta anos do 25 de Abril no dia 24 de Março de 2022 — que calcularam como a data em que o tempo da democracia ultrapassará o da ditadura — e nomear como comissário dessas comemorações Pedro Adão e Silva. É, portanto, daqui a apenas onze meses que esse ciclo se inicia. Nos próximos parágrafos quero relembrar os argumentos a favor da sua importância histórica e aqueles que, em meu entender, podem ser os seus objectivos.

Portugal padeceu a mais longa ditadura da Europa ocidental, durante praticamente quarenta e oito anos, e isso deixa marcas. A gerações, a indivíduos, à sociedade como um todo. Hoje dei por mim a pensar que a mim, nascido em Julho de 1972, o tempo em democracia superou o tempo em ditadura muito cedo, antes dos meus quatro anos. Mas ao meu pai, nascido em 1929, a democracia só chegou quase aos quarenta e cinco anos, e ele nunca chegou a ter mais tempo de liberdade do que opressão. A maior dívida de gratidão, é claro, vai para todos aqueles e aquelas que lutaram contra a longuíssima ditadura sem chegarem a ver o fim dela. Vidas que não puderam realizar o seu potencial em democracia, gerações inteiras sujeitas aos horizontes estreitos da ditadura.

O 25 de Abril representou uma atualização de Portugal com a história do mundo tão grande que por vezes ainda não é inteiramente entendida. Não só porque nas meras vinte e quatro horas daquele dia uma série de coisas que eram dadas por adquiridas passaram a ser inconcebíveis — a polícia política, a censura prévia, os presos de opinião — mesmo que nem tudo tenha estado no plano inicial. Mas sobretudo porque em pouco tempo se tornou evidente que “ao fim do ciclo imperial” se iria suceder “um ciclo europeu”, como um ano antes escrevera José Medeiros Ferreira. Essa atualização inevitável significou uma viragem radical da inserção geopolítica e geoeconómica do nosso país depois de 500 anos de história. Ainda muitas vezes acho, nos nossos debates sobre Portugal, a Europa e a globalização, que não se entende verdadeiramente a enormidade desta adaptação em tão pouco tempo, e o seu significado profundo: que basicamente Portugal como era não seria sustentável nesse novo ciclo, com o fim dos mercados cativos e da extração de matéria-prima nas colónias, e com uma força de trabalho com baixos níveis de qualificações a ter de competir num continente onde a maior parte da produção continha níveis de incorporação de conhecimento e tecnologia então inatingíveis para nós.

O manifesto do Movimento das Forças Armadas trazia consigo uma espécie de fórmula-síntese particularmente brilhante no traçar do rumo para os primeiros tempos do novo regime. Eram os “três D” que vinham precisamente do texto de Medeiros Ferreira ao Congresso da Oposição Democrática de 1973, de Democratizar, Desenvolver e Descolonizar (no texto original de 1973 havia também um “S”, de socializar, que não aparece no manifesto do MFA). Nenhum desses “três D” perdeu atualidade — não, nem o de descolonizar. Continuamos a precisar de aperfeiçoar e reforçar a nossa democracia; precisamos absolutamente de encontrar um novo modelo de desenvolvimento para o país; e ainda apenas adentrados no ciclo pós-imperial, continuamos a precisar de definir melhor o nosso lugar na Europa e no mundo, e a encontrar formas de sarar as chagas do colonialismo que ainda sobrevivem em novos preconceitos, discriminações e assimetrias.

Mas agora que nos aproximamos de ter mais tempo de democracia do que de ditadura, é cada vez mais pelo futuro que temos de definir. Isso significa rever metas, mesmo dentro do acervo de abril. Um exemplo que costumo dar: o objetivo da convergência com a média da União Europeia já deveria desde o início deste século ter sido considerado obsoleto; ele serviu bem à geração dos meus pais e dos meus irmãos, mas já não chega para a geração dos meus sobrinhos e filhos. E significa, no fundo, encontrar os novos “três D”, a fórmula-síntese que trace o rumo para uma democracia madura que depende cada vez mais só de si.

Por isso digo que mais do que comemoração, precisamos de uma missão. Uma missão por uma nova relação entre Estado e cidadão, entre o país e o seu território, entre as gerações e o seu futuro, num período que será marcado por enormes transformações tecnológicas, ambientais e sociais mas no qual queremos que a democracia fundada no 25 de Abril não só sobreviva mas floresça. Venham mais cinquenta.»

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25.4.21

As minhas fotografias de Abril

 

(Francisco Sousa Tavares, Nuno Bragança, Maria Belo, eu e Pedro Tamen)

Tenho duas fotografias pessoais de 25.04.1974. Uma é a que está na minha foto de perfil, a outra é esta. A tarde tinha acabado, o Largo do Carmo estava já vazio, nós andávamos por ali e a Liberdade também.
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Cidade sem muros nem ameias

 



Cidade / Sem muros nem ameias / Gente igual por dentro / Gente igual por fora / Onde a folha da palma / afaga a cantaria / Cidade do homem / Não do lobo, mas irmão / Capital da alegria
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Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias depois

 


«A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparámos com colunas militares inundadas de sol; e povo logo a seguir, muito povo, tanto que não cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas, de cinquenta anos de morte e de humilhação, correndo sem saber exactamente para onde mas decerto para a LIBERDADE!

Liberdade, Liberdade, gritava-se em todas as bocas, aquilo crescia, espalhava-se num clamor de alegria cega, imparável, quase doloroso, finalmente a Liberdade!, cada pessoa olhando-se aos milhares em plena rua e não se reconhecendo porque era o fim do terror, o medo tinha acabado, ia com certeza acabar neste dia, neste Abril, Abril de facto, nós só agora é que acreditávamos que estávamos em primavera aberta depois de quarenta e sete anos de mentira, de polícia e ditadura. Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias, só agora.»

José Cardoso Pires, Alexandra Alpha
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