23.5.22

Liquidar para ser beneficiário líquido

 


«Sempre que alguém me fala na pureza das crianças, percebo que se trata de uma pessoa que não convive muito com crianças. A minha avó não tinha dúvidas sobre a minha indecência, e ainda assim esforçava-se para me manter vivo e com saúde. Essa é que é a dificuldade. Amar um ser puro é facílimo. Deixem-me dar um exemplo. Uma vez, mantive o seguinte diálogo com a minha filha mais velha, que teria uns seis anos:

— O que estás a ler?
— A biografia de um grande humorista.
— Ele era engraçado?
— Sim, muito.
— Mais engraçado do que tu?
— Bastante.
— Ele já morreu?
— Já.
— Então...

Não sei se me faço entender. É um episódio em que uma linda criança sugere, com um ignominioso “então…”, que talvez o pai possa ser o beneficiário líquido da morte de Groucho Marx. A ocorrência contém algumas revelações interessantes acerca do raciocínio da doce menina. Primeiro, ela considera que a desgraça dos outros pode ser acolhida com alegria, se significar a prosperidade dos nossos. Segundo, ela desconfia que os nossos não prosperam a menos que algo muito grave aconteça aos outros.

Quando se soube que o Presidente da República tinha dito que Portugal era beneficiário líquido da guerra da Ucrânia, lembrei-me daquela conversa. Não é todos os dias que verificamos que a nossa filha revela, aos seis anos, capacidade para ser a mais alta magistrada da nação. O raciocínio é exactamente o mesmo, com exactamente as mesmas implicações. Portugal é um atleta de alta competição. E Marcelo é o pai que lhe diz: aproveita agora, rapaz, porque todos os teus principais adversários partiram uma perna.

Não creio que seja possível apontar falhas à filosofia do Presidente. De facto, Portugal tem um problema de competitividade. E há duas maneiras de resolver esse problema: ou nos tornamos mais competitivos ou aproveitamos as ocasiões em que os outros não conseguem competir. Uma é seguramente mais fácil do que a outra, e por isso não admira que seja a nossa preferida. No entanto, há uma questão que gostaria de ver respondida: concluímos que é boa ideia dizer em público que somos beneficiários líquidos de uma catástrofe após a ingestão de que líquido? Se souberem, estou comprador de uma garrafinha.»

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