9.4.22

O risco e a sorte

 

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Um grande conselho!


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09.04.1974 – A última acção armada quase no fim da ditadura



Os principais alvos das organizações de luta armada, que surgiram em Portugal durante o marcelismo, enquadravam-se no protesto contra a guerra colonial. Com uma população desesperada e exausta por partir e ver partir os seus para uma terrível aventura sem fim à vista, tudo o que fosse atingir símbolos da política colonialista da ditadura tinha uma grande repercussão e era objecto de um significativo regozijo, mesmo que discreto e silencioso.

Foi o caso com a acção de sabotagem ao navio Niassa, no dia 9 de Abril, no Cais de Alcântara em Lisboa, no momento em que ia partir para Bissau com um contingente de soldados. Tratou-se de uma iniciativa das Brigadas Revolucionárias (BR) que avisaram a PSP do porto de Lisboa uma hora e quinze minutos antes, para que o navio fosse evacuado.

Há na net vários testemunhos de militares que se encontravam a bordo. Um exemplo:
«Para todos nós que íamos para um cenário de guerra, durante a nossa instrução já tínhamos assistido a rebentamentos de granadas, morteiros etc. mas sempre em situações controladas.
Este rebentamento para todos os presentes foi, surpresa seguida de um descontrole, mas para quem preparou a acção foi controlo completo.
O local onde foi colocado o engenho explosivo assim como a hora da sua detonação foi de tal forma feito a não permitir qualquer baixa, mas não evitou a perda, total ou parcial das bagagens dos companheiros que iam nesse porão.
A explosão verificou-se num dos porões mesmo junto da linha de água, fez um rombo de cerca 80cm nas duas chapas de ferro.
Depois do navio estar completamente evacuado, foi adernado por forma a evitar entrada de água no porão e entretanto começaram a reparação do rombo na parte exterior.
Até à meia noite tivemos de embarcar e na manhã seguinte quando acordamos estávamos no meio do Tejo junto à Ponte.
Neste dia tive oportunidade de me deslocar ao local da deflagração e verifiquei os estragos que provocou.
O rombo interior estava a ser reparado nesta altura.
Na manhã do dia 11 de Abril quando acordámos já navegávamos em alto mar.»

Outro testemunho aqui.

E os preparativos da acção, descritos por quem neles esteve envolvida: 
«A bomba foi dentro de um colete meu. Eu tinha um fato com um colete integrado. Nós cortámos o plástico em fatias e enchemos o forro desse colete, que por sua vez, foi dentro do blusão do militar que transportou a bomba para dentro do navio. Lembro-me de nos preocuparmos com o facto de ele ter de se abraçar à família antes de partir. A bomba não ia explodir, mas a carga plástica ia nesse colete que ele levava vestido e, ao ser abraçado, a família podia aperceber-se de algo anormal.» In Isabel Lindim, Mulheres de Armas, p. 215.
Laurinda Queirós, a «Branquinha», militante das BR, 23 anos em 1974, estudante de Medicina, hoje médica no Porto.
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Então hoje também não há censura? Há, mas não é a mesma coisa



 

«Já não me surpreendo com muita coisa, mas, mesmo assim, verifico que há muito mais defensores da censura do Estado Novo do que pensava. A forma de fazer essa defesa não é directa, ninguém por regra diz que as censuras (havia várias instituições a fazer censura) eram aceitáveis – mesmo assim há excepções –, mas usa-se um conjunto de mecanismos de relativização que assentam na pergunta: “Então hoje também não há censura?”

O que se pretende dizer é que a censura do passado não era assim tão excepcional, nem grave, nem especial, porque hoje também há “censura”, o que a torna uma constante “natural” do exercício do poder, seja em ditadura, seja em democracia. O resultado deste tipo de comparações é minimizar os 48 anos de censura do Estado Novo, em si mesmo algo de excepcional na história europeia, com excepção da URSS. Nem na Espanha franquista, nem na Alemanha nazi, nem na Itália fascista, nem nos países ocupados na II Guerra como a França, a censura durou tanto tempo e a duração é relevante para medirmos os seus efeitos.

Alguns aspectos dessa pseudo-similitude são resultado da ignorância e da ligeireza crítica e, acima de tudo, da circulação à direita da ideia de que criticar o Estado Novo é algo de “esquerdista”, coisa que desde o episódio de legitimação retrospectiva da ditadura, no encontro do MEL, se tornou um lugar-comum na direita radical. Não, a censura de 1926 a 1974 é algo de muito diferente dos impulsos censórios dos nossos dias, que existem e têm crescido, quer à esquerda, quer à direita, mas não se comparam nem de perto nem de longe com a censura da ditadura.

A censura da ditadura não tinha lei, era discricionária, não tinha recurso nem apelo e, para além de proibir, podia levar à prisão, levar jornais à falência, encerrar tipografias e levar os seus alvos a nem sequer poderem usar o próprio nome, se tinham de trabalhar na imprensa, na rádio ou na televisão. No limite, levava à queima de livros, como aconteceu em Portugal, ao modo da Alemanha nazi. A censura era uma instituição do poder ditatorial, que comunicava com todas as outras instituições repressivas, com a PIDE e a Legião, ou de enquadramento forçado, como a Mocidade Portuguesa e a União Nacional. Comparar esta censura com a existência de impulsos censórios é “lavar” a violência da ditadura.

A censura de que falamos também não é fake news, embora coexistisse com falsificações desse tipo vindas do poder ditatorial. O regime publicava jornais falsos disfarçados de Avante! ou A Batalha, com o mesmo formato gráfico mas artigos favoráveis à “obra” do regime, mas, para além disso, os governantes mentiam deliberadamente para enganar as pessoas. Um exemplo é Salazar, que já sabia que tinha sido a PIDE a assassinar Delgado e a sua secretária, insinuar que este tinha sido morto pelos seus companheiros da oposição. A censura é outra coisa muito para além das fake news: é a proibição de livros, artigos, desenhos, peças de teatro, filmes, poemas populares, canções, capas de discos, reclames, tudo.

O que é significativo é que são os mesmos que minimizam a censura do Estado Novo aqueles cujo discurso político mais traços mostra do efeito antidemocrático do rastro da censura. Entre os efeitos a longo prazo da censura da ditadura, 48 anos depois do 25 de Abril, encontra-se a minimização do valor da democracia, a falsa comparação entre a corrupção da democracia e a inexistência da corrupção na ditadura – na ditadura, de facto, era ocultada a existência e gravidade da corrupção, mas também não havia “operações Marquês”, porque não se tocava nos corruptos nem para os investigar…

O ataque à democracia vai mais longe na desvalorização da política, como uma actividade menor, na demonização do confronto democrático a favor do “consenso”, no rebaixamento dos partidos a organizações criminosas e clientelares, como se o funcionamento das instituições da democracia “manchasse” Portugal, que era puro e cheio de valores superiores antes de 1974. Conhecer o que a censura real da ditadura cortava revela muito da hipocrisia do regime, que nos queria “proteger” daquilo mesmo que escondia como se não existisse.

Esta minimização da censura do passado impede-nos de olhar para os impulsos censórios de hoje, vendo-os apenas como vindos do “outro”, como um mero resultado de alguma perversão ou maldade, a que estamos imunes. A grande vítima da censura é a liberdade, a que começa na nossa cabeça, a mais importante e decisiva para que a transformemos em acção naquilo que os anarquistas chamavam “propaganda pelo exemplo”, o mais eficaz meio da defesa da democracia.» 

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8.4.22

Isto promete

 

Foi chumbada a moção de rejeição ao programa do XXIII Governo Constitucional apresentada pelo Chega.

Só o Chega votou a favor, PSD e IL abstiveram-se. Os restantes partidos (PS, PCP, BE, PAN e Livre) votaram contra.
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Jacques Brel nasceu num 8 de Abril

 


Brel nasceu em 08.04.1929. É um ritual a que regresso quase todos os anos: recordar que Jacques Brel seria hoje um velho se não tivesse adormecido demasiado cedo: «Les vieux ne meurent pas, ils s’endorment un jour et dorment trop longtemps» – disse ele.

Um dos meus monstros mais do que sagrados, com um registo especial: tive a sorte de o ver e ouvir, em pessoa, era ele jovem e eu muito mais ainda... Em Lovaina, na Bélgica, num espectáculo extraordinário a que se seguiu, já na rua, uma cena de pancadaria entre valões e flamengos, com bastonadas da polícia e muitas montras partidas à pedrada. Tudo porque Brel, em terra de flamengos, insistiu em cantar um dos seus êxitos – Les Flamandes – onde uma parte das suas compatriotas não é muito bem tratada. Ele era assim.

Ver e ouvir AQUI, num post do ano passado, cinco vídeos, escolhidos entre muitos outros possíveis.
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Vítimas “indignas” na Ucrânia?

 


«Apesar de ter vivido em Portugal nos últimos 32 anos, nasci e cresci em Nova Iorque, por isso, nos dias que se seguiram aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, recebi cerca de cinquenta e-mails de amigos e conhecidos de todo o mundo a perguntar se os meus amigos de infância e familiares estavam bem e em segurança. Nas mensagens, a grande maioria deles expressou a sua solidariedade comigo e com outros nova-iorquinos. No entanto, alguns escreveram que, embora não fossem a favor do terrorismo, podiam facilmente compreender que os muçulmanos se opusessem violentamente às recentes guerras travadas pelos Estados Unidos no Iraque – bem como ao apoio dos Estados Unidos a Israel – e estivessem ansiosos por se vingar dos americanos. Dois destes meus amigos não exprimiram qualquer empatia pelas vítimas do ataque e explicaram que os Estados Unidos “estavam a pedir isso” – sendo “isso” um ataque em solo americano.

Apesar de eu defender há décadas que a política externa dos Estados Unidos no Médio Oriente era, em grande parte, criminosa, aquelas mensagens pareceram-me incrivelmente insensíveis e inadequadas – e, dado o estado de preocupação e de choque em que me encontrava, pareceram-me também bastante crueis. No caso de um deles, aproveitei para lhe perguntar se ele diria a um amigo cujo filho acabara de morrer com uma overdose de drogas que o jovem estava “a pedir isso”? Ou se, pelo contrário, não expressaria a sua dor e preocupação? Acrescentei que há um momento para exprimir a compreensão e a solidariedade e outro momento – mais tarde – para tentar fornecer algum contexto e oferecer explicações. Disse-lhe também que, nesse momento, atribuir a culpa a quem quer que seja, e não aos terroristas, era completamente inútil porque – numa altura em que os nova-iorquinos procuravam familiares desaparecidos e enterravam os seus mortos – isso só servia para despertar sentimentos de ressentimento, em mim como em outros americanos. Sugeri que daí a alguns meses, se ele quisesse, poderíamos tomar um café juntos e conversar sobre como a política externa dos EUA tinha contribuído para o aumento de ativistas muçulmanos que acreditavam que o assassinato de 3000 homens, mulheres e crianças era justificável e poderia promover a sua causa.

E assim, uma das lições que os ataques aos Estados Unidos em 2001 me ensinaram é que há pessoas que se mostram incapazes de empatia se as vítimas são de países cujas políticas essas pessoas não aprovam ou cujos líderes se comportam de maneiras que consideram censuráveis. Para eles, existem “vítimas dignas” e “vítimas indignas”. No caso do 11 de setembro, os 3000 nova-iorquinos e outros que morreram nos ataques terroristas às Torres Gémeas eram, segundo essas pessoas, “indignos” por causa da política externa do governo dos EUA.

Menciono isso agora porque alguns comentadores e políticos decidiram que os homens, mulheres e crianças ucranianos assassinados em Bucha, Mariupol e outras cidades e vilas de toda a Ucrânia também são “vítimas indignas”. Porquê? Porque o Presidente Zelenskii e a liderança do país tiveram a audácia de desejar aproximar-se do resto da Europa e – talvez brevemente depois – buscar a adesão à NATO. Esse foi um erro imperdoável, dizem eles, e suficiente para explicar a invasão de Putin e a sua brutalidade implacável. De facto, muitas dessas pessoas acreditam que o ditador russo pode muito bem ser afinal a verdadeira vítima deste conflito. Por exemplo, a deputada trabalhista do Parlamento Britânico Dianne Abbott disse sobre o conflito durante a segunda semana de fevereiro: “Vemos que os Estados Unidos decidiram que precisam de enviar as suas forças militares e outros tropas da NATO para as fronteiras da Rússia. Isso por si só deveria mostrar-nos que as alegações de que a Rússia é o agressor devem ser tratadas com ceticismo.”

Em Portugal, o Partido Comunista recusou-se a denunciar a invasão da Rússia quando, no final de fevereiro, foi votada no Parlamento uma moção nesse sentido. O seu porta-voz, João Oliveira, ecoando os sentimentos de Abbott, disse que os Estados Unidos eram responsáveis pela guerra e “estavam prontos a sacrificar todos os ucranianos e europeus para promovê-la”.

Nas últimas semanas, Oliveira, Abbott e muitos outros políticos e comentaristas em toda a Europa fizeram o possível para transformar Putin em um peão reativo manipulado pela NATO, pelos Estados Unidos, pelo Presidente ucraniano Zelenskii e pela União Europeia. Todos eles, de alguma forma, conseguem ignorar o facto de que toda a carreira ditatorial de Putin tem sido baseada numa sede insaciável de dominação e poder – e muitas vezes caraterizada por atos de extrema crueldade.

Não, neste momento, enquanto estão a ser cometidos crimes de guerra na Ucrânia – enquanto há pais que escrevem os nomes e os endereços dos filhos na sua própria pele para o caso de eles ficarem órfãos –, eu não posso aceitar que os ucranianos sejam “vítimas indignas” ou que eles estavam “a pedir isso”. Putin tinha alternativas à invasão e é responsável por cada morte causada pelos ataques do exército russo – assim como é responsável pela prisão de milhares de russos corajosos que manifestaram a sua oposição a esta guerra imoral.

Haverá muito tempo para oferecer teorias sobre o que a Ucrânia e o Ocidente podiam ter feito para evitar este conflito quando a guerra terminar e os mortos estiverem enterrados. Mas este não é o momento. Este é o momento da empatia e da solidariedade – de ajudar ativamente os ucranianos enquanto lutam pela sua própria sobrevivência.»

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7.4.22

07.04.1893 - Almada Negreiros

 


Almada Negreiros nasceu em S. Tomé e Príncipe, em 7 de Abril de 1893. Na minha última viagem a.c. (antes Corona…), visitei e almocei na casa onde nasceu, na Roça Saudade, a 1.500 metros de altitude, da qual o pai era administrador. Com dois anos, Almada Negreiros veio para Cascais e passou a viver com a família da mãe que ficou em S. Tomé e morreu pouco depois.

Ficam aqui imagens, duas delas com algumas das muitas citações de Almada, pintadas na casa hoje transformada em restaurante-museu e um vídeo com um excerto da entrevista que Almada Negreiros concedeu ao programa Zip-Zip, em 1969 (ano anterior ao da sua morte).



  





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O drama de um lapso


 

O escândalo que por aí vai porque um irlandês com 47 anos, que chefia o Eurogrupo, confundiu Saramago com Pessoa, e afirmou ter gostado de conhecer a viúva deste último, irrita-me. Quantos dos ofendidos nem sequer são capazes de referir os nomes de dois grandes escritores irlandeses? Complexos de pequenez.
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Entrou na FDUL um século que por lá se desconhecia

 


«O Conselho Pedagógico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) criou uma comissão paritária de três alunos e três professores que criou um canal aberto a relatos de más práticas dos docentes. O resultado foi perturbante para quem nada sabe da casa: em apenas 11 dias, denúncias de 29 casos de assédio moral, 22 de assédio sexual, oito práticas discriminatórias de sexismos, cinco de xenofobia e racismo, um de homofobia. No total, 70 denúncias, 50 delas validadas como relevantes. A maior pare dos casos de assédio aconteceu presencialmente, mas também há utilização das redes sociais do e-mail. Incluem 31 docentes, o que corresponde a cerca de 10% dos professores a assistentes.

A decisão de criar este canal não veio do nada. E a prova é que ninguém ficou surpreendido. Casos em que houve muitas queixas e até assunção de culpa não tiveram consequência para além de pedidos de desculpa. E os mecanismos existentes pareciam não resultar. Porque o problema é mais profundo. E não serão manuais de boas práticas que o resolverão. A cultura de impunidade, numa faculdade onde se ensina a lei e a sua aplicação, resulta de uma cultura de poder. Que vai muito para lá do assédio.

A punição dos responsáveis e o acompanhamento das vítimas é fundamental. Mas o mais importante é o aviso à navegação que dá o primeiro sinal, ainda tímido, de que a cultura que sobreviveu a décadas de democracia está finalmente em perigo. E isto só acontece porque as alunas (e também os alunos) da FDUL não nasceram na FDUL, não foram educadas na FDUL, não foram formatadas pela FDUL. Vêm de um país e de um mundo que mudou enquanto a FDUL permanecia parada.

Estou a dizer que é uma faculdade de assediadores e abusadores? Não. A maioria estará longe disso. Mas, porque tenho várias pessoas (muito) próximas que passaram por lá há trinta anos e recentemente (sem que nada tivesse mudado nestas três décadas), sei que a cultura desta faculdade é indutora do abuso. E não me refiro apenas ao abuso machista. Esse é a ponta do iceberg, por ser mais destemido, temerário e alarve. Mais transversal e aceite na cultura patriarcal portuguesa. Falo da cultura de ensino, de avaliação, de autoritarismo e de endogamia. Uma cultura que recusa a autonomia dos alunos e o uso do poder com responsabilidade e moderação. Que promove a competição tóxica em vez da cooperação. A FDUL, vamos abreviar, não tem uma cultura democrática. Não é a única. Mas, talvez pela sua visibilidade, é das mais flagrantes.

É interessante pensar que a FDUL foi e é uma das principais incubadoras da elite política portuguesa. Perceber como representa muitos dos seus vícios e tiques. E é perturbante pensar que é dali que saem muitos dos nossos juízes e procuradores. Ajuda a explicar muitas coisas que nos chocam numa justiça que parece parada no tempo.

Li, numa rede social, uma aluna a queixar-se que um professor teria dito numa aula que não deviam protestar porque davam má imagem à faculdade. Educação para a cidadania, mas ao contrário. Pois é isso mesmo que devem fazer: dar má imagem da faculdade. Porque só isso levará a instituição a reagir. E a trabalhar para mudar a sua cultura e afastar os verdadeiros responsáveis por essa má imagem. A boa imagem consegue-se com transparência e esforço, não com opacidade e cumplicidade.

Isto não se passa, obviamente, apenas nesta faculdade. Um estudo de 2019, da Federação Académica de Lisboa, sinalizava que o assédio é um problema relevante nas instituições de ensino superior. O que aconteceu à FDUL acontecerá a cada vez mais instituições portuguesas, académicas ou não. Uma nova geração que cresceu num mundo globalizado, numa democracia madura e numa sociedade mais igualitária vai-lhes entrar pela porta adentro, mudar os móveis e partir algumas janelas. Antes de tudo, serão, como estão a ser, um tipo de mulheres que estes professores nunca conheceram, que não foram ensinadas a ignorar e sorrir quando são assediadas. Mas, em geral, jovens que não compreendem o mundo que estes gerontes, alguns novos demais para o serem, tentam preservar. Boa altura, quando atingimos mais anos de democracia do que de ditadura, para isto acontecer.

Fica uma nota positiva: apesar de tudo, esta comissão paritária e este canal foram criados pela própria FDUL. Isso aconteceu, graças à existência de um Conselho Pedagógico mais plural, a que concorreram várias listas. O que prova que a democracia faz milagres, mesmo em corpos caducos. Até os pode rejuvenescer.»

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6.4.22

Acontece aos melhores

 

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Foi há 11 anos: uma eternidade ou anteontem?

 


«Passava já das oito e meia da noite quando o então primeiro-ministro, José Sócrates, falou ao País e confirmou o pedido de ajuda.»
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Inflação: morrer da cura?

 


«Um pouco de inflação é, em geral, desejável. Significa que a economia está a funcionar. Se for acompanhada por aumentos salariais, a inflação não produz perda de poder de compra e tem o efeito de tornar as dívidas antigas mais pequenas. Embora este efeito prejudique os credores, a sociedade beneficia com o alívio do peso da dívida.

Na última década, a Europa e os EUA sofreram o problema oposto, uma vez que as economias tiveram preços estagnados ou até deflação (diminuição dos preços). Isso deveu-se à falta de poder de compra da população, sob os efeitos da crise e da austeridade, da precariedade e dos baixos salários. Mas as autoridades decidiram enfrentar o problema por outro lado, o lado da finança.

Assim, desde o final da crise que os principais bancos centrais, como o BCE e a FED, injetaram triliões de euros (ou dólares) nos mercados financeiros através da compra de ativos aos bancos. Em teoria, estas políticas deveriam aumentar a disponibilidade financeira dos bancos, que emprestariam mais às famílias e empresas, as quais iriam investir e consumir mais. No fim, os preços subiriam. Mas não foi isso que aconteceu. Até ao final de 2020, a inflação recusou-se a aumentar. Para onde foram então os triliões dos bancos centrais, se não se transformaram em investimento produtivo, salário e consumo? Se olharmos à nossa volta, encontraremos setores hiperinflacionados, bem nas barbas dos bancos centrais: o imobiliário, as bolsas de valores, os mercados financeiros em geral.

Quando escolheram enfrentar o problema da estagnação económica atirando triliões para os mercados financeiros, os bancos centrais da UE e dos Estados Unidos criaram bolhas financeiras e dificultaram o acesso de milhões de pessoas à habitação: o imobiliário tornou-se um ativo especulativo por excelência.

Em 2021, o cenário começou a mudar e a alta de preços generalizou-se. Há quem argumente que os apoios dados às famílias e empresas durante a pandemia contribuíram para este resultado. Se existe, esse efeito é mínimo, quando comparado com os efeitos que a pandemia e a guerra causaram na disrupção de cadeias de abastecimento e, em particular, no preço dos combustíveis. Mas nem a restrição na oferta de combustíveis e matérias-primas pode explicar tudo o que se passa no mundo dos preços. Por exemplo, nos EUA, dados oficiais mostram que as margens de lucro das empresas são as maiores em setenta anos. Ou seja, para além das próprias empresas energéticas, as maiores empresas estão a aproveitar este momento para aumentar as suas margens à custa dos consumidores.

Temos ouvido a direita, em especial a Iniciativa Liberal, indignar-se com os impostos sobre os combustíveis. Esses impostos devem descer, mas não é por esquecimento que os liberais se calam sobre quem lucra com a vida difícil de todos os outros.

Nos anos 70 do século passado, quando a inflação disparou na sequência da crise do petróleo, havia duas hipóteses: controlar preços e margens de lucro ou impor austeridade, com desemprego e cortes salariais para esmagar a procura de bens, mesmo provocando uma recessão. O Governo e o banco central norte-americanos, inspirados pelas mesmas teorias que hoje animam os liberais, optaram pela austeridade.

Em breve estaremos confrontados com a mesma escolha: atualizar salários e pensões enquanto se controla os preços e as margens de lucro de setores estratégicos ou, pelo contrário, esmagar salários e pensões para proteger os lucros. Os liberais já tomaram posição e, até agora, o governo não dá sinais de querer fazer diferente.»

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4.4.22

04.04.1914 – Marguerite Duras

 


Marguerite Duras nasceu há 108 anos em Saigão, actual Ho Chi Minh. Foi uma das grandes escritoras do século XX francês, também realizadora e guionista de filmes, para além de resistente durante a Segunda Guerra Mundial como membro do Partido Comunista Francês.

É vasta a sua obra no domínio da literatura, de início identificada com a corrente do nouveau roman, mas destaco dois livros que nunca esquecerei: L'Amant (1984) e antes, bem antes, Moderato Cantabile de 1958.

Esta última obra viria a ser adaptada para cinema por Peter Brook, em 1960, e quem o viu terá certamente retido as interpretações de Jeanne Moreau e de Jean-Paul Belmondo. Inesquecível também, o guião que Marguerite Duras escreveu para que Alain Resnais realizasse Hiroshima mon amour. E quando há meia dúzia de anos fui ao Japão, e me passeei pelo local que foi vítima de uma das maiores tragédias da humanidade, não me saía da cabeça: «Tu n'as rien vu à Hiroshima!»




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I Had A Dream

 


04.04.1968
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Guerra segundo Einstein e Freud

 


«Corpos dilacerados e abandonados nas ruas. Um cenário de apocalipse. Bucha, localidade perto de Kiev, é a última prova da crueldade humana.

As imagens falam por si. Como é que ainda não aprendemos a limitar a força bruta ao fim de tantas experiências horrendas, algumas das quais bem próximas do chamado Ocidente civilizado?

A propósito de um livro intitulado "Pax English", cuja teoria assenta na ideia de que a paz é possível se falarmos todos a mesma língua, eu questionei há dias o bispo do Porto sobre esse cenário que ninguém rejeitaria se aí residisse a solução. "Uma das piores guerras dos últimos anos aconteceu na ex-Jugoslávia, onde 21 milhões falam o servo-croata", avancei, em jeito de pergunta. D. Manuel Linda concordou. Russos e ucranianos conseguem entender-se no plano linguístico.

O problema da guerra preocupou dois dos maiores cérebros da História. Nos anos trinta do século passado, Albert Einstein, génio da Física, escreveu a Sigmund Freud, pai da psicanálise. Ambos acreditavam que a Sociedade das Nações poderia vir a ter um papel relevante no panorama internacional. A ingenuidade de ambos seria demonstrada com a subida ao poder de Hitler, em 1933, e com a II Guerra Mundial.

Einstein tinha a certeza que cada líder por si não tinha qualquer influência no panorama internacional, sendo necessário criar uma associação supranacional de homens que defendesse um conjunto de regras assentes na moral. Numa das cartas de resposta, Freud admitia que a Sociedade das Nações pudesse servir de Tribunal, mas duvidava que fosse possível ter uma força militar internacional capaz de impor decisões. O amor e ódio são duas partes indissociáveis da mente humana, dizia Freud. Em termos ideais, a comunidade internacional deveria reprimir o ódio de determinado líder, subjugando-o aos ditames da razão assente no Direito. Temo que Bucha seja apenas o mais recente episódio macabro a envergonhar-nos.»

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3.4.22

Salgueiro Maia – O dia é dele, 30 anos depois

 

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Hoje é assim, amanhã não sabemos

 

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03.04.1926 – Luís Sttau Monteiro

 



Faria hoje 96. Em jeito de homenagem, uma «Redacção da Guidinha».


Senhores da política:

Oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua senão qualquer dia estão no olho da rua a ouvir o que se disse na rua.

Jornal, 22.09.1978

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A panaceia dos baixos salários

 

© Vítor Higgs

«Um destes dias, ouvi na rádio um dirigente de uma confederação empresarial do Norte a defender, enfaticamente, a "importação de mão de obra". O conteúdo daquela afirmação é revelador da fraca preparação de muitos representantes empresariais e relevante por diversas razões. Consideremos fundamentalmente duas.

Primeira. Pela linguagem utilizada. A expressão "importação de mão de obra", felizmente é - ou tem sido até agora - considerada inapropriada na nossa sociedade e, como tal, evitada. Mão de obra é trabalho humano inseparável das pessoas que o executam, logo, das condições de dignidade enquanto seres humanos e seres sociais. Não é coisa que se importe e exporte como qualquer mercadoria. Será a utilização do termo em público sinal de uma perda de decoro? Porventura estamos na continuidade de teses expostas recentemente por alguns que, a coberto de uma solidariedade urgente, defenderam e procuram organizar o acolhimento dos refugiados da Ucrânia centrado no contributo para a desobstrução do mercado de trabalho.

Segunda. Pelo que revela quanto à persistência do erro que sustenta as conceções de muitas confederações patronais. Depois das últimas eleições legislativas e de António Costa insistir na necessidade de se aumentarem todos os salários, os dirigentes patronais surgem na Concertação Social afirmando repetidamente que também gostavam de pagar melhor, mas que não há produtividade suficiente, e juram que querem resolver os problemas da competitividade e do crescimento económico aumentando-a. Todavia, no dia a dia, repetem apenas o que afirmava convictamente aquele entrevistado: que não pode haver crescimento económico com falta de mão de obra. Ora, o problema é que pode e deve. Mais, só teremos valorização dos salários quando, em vez de se apostar no crescimento extensivo - à custa de mais e mais trabalhadores mal remunerados -, se aumentar a quantidade produzida por dia de trabalho e/ou o valor criado por unidade produzida.

Parte significativa dos nossos empresários continua a falar da produtividade como se ela dependesse apenas do esforço dos trabalhadores e não de uma melhor colocação das empresas nas cadeias de valor, da melhoria de investimento em tecnologias, em organização do trabalho e em eficácia de gestão.

Imaginemos, entretanto, que a "importação de mão de obra", tão desejada, acontece mesmo. O que podemos esperar? 1) prolongamento no tempo da estagnação salarial; 2) continuação da agonia de um padrão de especialização com peso desproporcionado de atividades só viáveis com baixo salário (como por exemplo o turismo barato); 3) mais investimento em formação e qualificação dos portugueses desperdiçado, pois continuarão a emigrar em grande número.

Há razões para acolher em Portugal trabalhadores estrangeiros. Contudo, se forem acolhidos com ofertas de trabalho mal remuneradas, esses imigrantes estarão entre nós apenas o tempo necessário para poderem imigrar de novo: desta vez para países europeus onde os salários e as condições de trabalho e de vida são muito superiores às prevalecentes entre nós.

O apelo à "importação de mão de obra", avançada como panaceia pelo entrevistado da confederação patronal do Norte - que infelizmente não é uma ovelha tresmalhada no conjunto do patronato português -, é indigno quanto à linguagem, revela conceções culturais, económicas e sociais retrógradas, e é fútil quanto ao resultado que promete.»

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