14.5.22

Gentes deste mundo (1)

 


[Retomo, ampliada, uma série que já por aqui andou há cinco anos]

Uma cidadã como outra qualquer. Lago Inle (Birmânia), 2009.
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14.05.1958 - Humberto Delgado no Porto

 


«Povo do Porto, a resposta está dada com esta manifestação. Façam eleições livres e venceremos!» Foi com estas palavras que Humberto Delgado se dirigiu à multidão que o aclamou em frente à sede da sua candidatura, na Praça Carlos Alberto, no Porto, em 14 de Maio de 1958. A fotografia passou a funcionar quase como uma espécie de ícone de uma campanha extraordinária.
 
Continuar a ler AQUI.
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Saldanha Sanches

 


Doze anos desde que partiu.

Pode ser lida AQUI uma longa entrevista dada em 2008, em conjunto com Maria José Morgado, sobre a vida, a juventude, a militância.
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O pequeno problema da guerra nuclear

 


«Uma das coisas mais absurdas e preocupantes por parte de Putin é o modo como tem agitado a ameaça da guerra nuclear. Bastava isso para o colocar no pedestal superior e único da “luta pela paz”, mas isso não acontece. “Ah” — dirão alguns dos meus amigos — “mas a NATO também as tem lá, porque não fala nelas? Não deixam de ser ameaçadoras.” Sim, tem, e são ameaçadoras, mas convenhamos que há uma diferença entre agitá-las nas declarações públicas e estar calados. “Manhosos é que eles são…” Sim, de novo, podem ser, mas há uma diferença, não há? Para a Paz.

Não é a guerra nuclear que é absurda e preocupante — é muito mais do que isso: é a facilidade com que se fala dela, porque isso diz muito sobre o grau de desespero de Putin. Esse desespero, que ele tem porque está tudo a correr mal, vem de ele saber que não há saída fácil para o erro calamitoso em que ele se meteu e meteu a Federação Russa. Mas, por muito paranóico que esteja, por muitas dúvidas sobre a sua saúde mental que existam, por muitos traços de personalidade autocráticos e violentos, ele não anda louco aos gritos pelos corredores do Kremlin e, se por acaso andar, alguém trata dele de forma pouco amável.

Putin sabe muito bem que a guerra nuclear é inganhável, sejam quais forem as circunstâncias. Ataquem primeiro ou depois, de surpresa ou com pré-aviso, não há qualquer maneira de obter vantagem num confronto nuclear. E nem sequer a modernização das armas nucleares introduz qualquer vantagem. Mesmo com as armas obsoletas do século XX contra o mais moderno arsenal de 2022, o resultado é o mesmo, aquilo que o acrónimo MAD, Mutual Assured Destruction, descreve desde os anos 50, destruição mútua assegurada. Ou seja, ninguém ganha.

As armas nucleares, ou melhor, termonucleares, têm evoluído, em particular os sistemas de detecção, as técnicas antimísseis, o comando e controlo, a sofisticação generalizada dos sistemas de armas, mas não é segredo para ninguém que evoluiu igualmente a capacidade para as disparar com tempos de resposta tão curtos que a resposta mais provável é que se eles disparam as deles, nós disparamos de imediato as nossas e fica tudo destruído pelo caminho. E os arsenais são mais do que suficientes para garantir a ultrapassagem de todos os “decoys” existentes e dar-nos o MAD certo.

Acresce que não há guerras nucleares moderadas, porque o uso de armamento nuclear táctico gera de imediato uma escalada de reposta. Não há conversas do tipo eu apenas atiro sobre Nova Iorque e tu atiras sobre Moscovo e estamos quites. O nuclear tem a característica de ser tudo ou nada, como aliás quem tem o controlo dos botões em Washington, Moscovo, Londres, Paris, Pequim, muito provavelmente Telavive, e mesmo as excepções até agora mais preocupantes de Pyongyang, Índia e Paquistão, também sabe.

Os protocolos de lançamento de mísseis nucleares na Rússia não são muito diferentes dos dos americanos, eventualmente com maior controlo dos militares, e não são a decisão de um homem solitário diante de um botão. Mais: esse homem ou esses homens sabem que, se carregarem no botão, morrem as suas famílias, os seus amigos, os seus próximos, e milhões de outros homens. Coisa trivial, quando muito suicídio pela bomba nuclear. En passant, como no xadrez, morrem também a Rússia, as paisagens familiares da Praça Vermelha, a Catedral de S. Basílio, a estátua do Cavaleiro de Bronze, as (os) bailarinas do Bolshoi, os mosteiros de Sergueiev Possad, o Transiberiano, o Hermitage, o Patriarca Cirilo, e muitos etc., embora admita que algumas destas coisas não lhe interessam muito. Mas, muito provavelmente, outras lhe interessam, morrem também os cantores de que ele gosta, o Valery Kipelov, o Vitas, a Dima Vilan, o Gregory Leps, desaparece o CSKA e o Lokomotiv, com os seus jogadores de futebol populares, o vodka fica contaminado e a sua jovem amiga que trabalhava nas galerias GUM e com quem dava “grandes passeios aos domingos” também desaparecerá no pó. Estou a falar do general que carregar no botão, metaforicamente, porque na realidade são vários botões, envelopes, malas e comunicações. E, mesmo no mais profundo dos bunkers, para quem tiver autoridade ou tempo de lá chegar, morre muito provavelmente ele próprio. É este o pequeno problema da guerra nuclear.»

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13.5.22

Amanhã

 

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Nossa Senhora: peregrina ou emigrante?

 


Uma imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima (existem 13) foi há algum tempo emprestada a uma diocese da Ucrânia. Saiu de Fátima, ainda está na dita diocese que gostava de ficar com ela.

Impossível, explicou um padre (ou bispo, não percebi) num telejornal: aquela imagem é «peregrina» e, portanto, foi mas tem de voltar. Mas já está pronta uma outra igual e essa, sim, será enviada e ficará por lá – porque não é peregrina.
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Finlândia, a nova fronteira da NATO

 


«“O nono alargamento da NATO desde a sua fundação, em 1949, vai ficar na História como o alargamento de Putin”, escreveu o antigo primeiro-ministro finlandês, Alexander Stubb, poucos dias antes de o Presidente e a primeira-ministra do seu país terem assinado uma declaração conjunta a defender o pedido de adesão à organização de defesa “numa questão de dias”. “A adesão à NATO fortalecerá a segurança da Finlândia; enquanto membro da NATO, a Finlândia fortalecerá toda a Aliança”, lê-se no comunicado.

A decisão oficial será tomada pelo Parlamento já na próxima semana. A maioria dos partidos com assento parlamentar votará a favor. Num texto de opinião publicado no Financial Times, Stubb acrescenta o óbvio: “Sem o ataque da Rússia à Ucrânia, isto nunca teria acontecido”.

A neutralidade finlandesa era uma marca tão forte da sua política do pós-guerra que deu origem à palavra “finlandização” para definir os países que, pelas suas particulares circunstâncias geopolíticas, não estavam em condições de exercer totalmente a sua soberania. Em 1939, a Finlândia foi invadida pela URSS. A sua resistência heróica acabou por impor ao grande vizinho de Leste o reconhecimento da sua independência. No final da II Guerra, Moscovo impôs-lhe um estatuto de neutralidade, que se manteve para lá do fim da Guerra Fria e da implosão da União Soviética. Helsínquia preferiu encontrar na União Europeia o seu espaço estratégico preferencial, quando aderiu, em 1995. A questão da adesão à NATO nunca se colocou e era essa a preferência de grande maioria dos finlandeses.

Na quarta-feira, o Presidente finlandês, Sauli Niinistro, respondendo directamente às crescentes ameaças de Moscovo, limitou-se a dizer: “Olhem-se ao espelho”. Para a Finlândia, com uma fronteira de 1340 km com a Rússia, já não chegam as garantias de solidariedade e de segurança que a União Europeu dá aos seus membros. Quer formalizar o pedido de adesão à NATO o mais depressa possível, até porque durante as negociações de adesão, o país candidato ainda não está ao abrigo do Artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, que garante o seu princípio fundador: um ataque a um dos seus membros é um ataque a todos os seus membros.

É também este desfasamento entre o pedido formal e a adesão que explica os acordos de segurança assinados na quarta-feira, em Estocolmo e em Helsínquia, pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson. O Reino Unido, membro fundador da NATO e o aliado europeu com maior capacidade militar, incluindo nuclear, compromete-se a ir em auxílio da Finlândia e da Suécia, no caso de serem alvo de uma agressão militar. Os três países já tinham criado uma “força expedicionária conjunta” para reforçar a sua cooperação militar. Mantém-se a expectativa de que os EUA venham a dar um passo semelhante e, eventualmente, outros países da Aliança

A adesão tem de ser aprovada por unanimidade no Conselho do Atlântico Norte, o órgão político supremo da NATO, e os analistas prevêem um processo relativamente rápido. Esperam-se ainda algumas escaramuças políticas, sobretudo da parte da Turquia, mas nada com que Washington não possa lidar. Também no domínio da coesão da Aliança e da sua missão estratégica, a guerra de Putin foi um contributo inestimável.

As autoridades suecas devem tomar a mesma decisão na próxima semana. Em Estocolmo, embora a questão levante mais problemas do que na vizinha Finlândia, ninguém quer considerar a hipótese de ser o único país nórdico que fica fora das fronteiras da NATO. A coordenação entre as primeiras-ministras dos dois países tem sido visível. A previsão dos analistas é que o pedido seja feito em simultâneo.

Os dois países não constituem um fardo para a capacidade de defesa da NATO, mesmo alargando o seu território até à fronteira europeia da Rússia. Ser neutral equivale, normalmente, a dispor de uma forte capacidade militar. A Finlândia, devido à sua proximidade da Rússia (e, antes, da URSS), dispõe de um exército de quase 300 mil homens e de uma força de reservistas da ordem dos 900 mil. “Preparamos a nossa sociedade e treinamo-nos para esta situação desde a II Guerra”, disse ao Financial Times a ministro finlandesa dos Assuntos Europeus, Tytti Tuppurainen.

A Suécia tem uma história diferente. O estatuto de neutralidade data de há mais de 200 anos, o que lhe permitiu não se envolver na II Guerra. Durante os anos da Guerra Fria, procurou manter uma política externa de não-alinhamento. Dispõe de uma forte capacidade militar, construída graças à sua poderosa indústria de armamento, mas também a uma estreita cooperação com os EUA.

A guerra na Ucrânia veio alterar radicalmente as condições de segurança na Europa. Entrar na NATO pode ser um risco, mas ficar de fora é, na avaliação dos dois países, um risco muito maior. Em meia dúzia de meses, a Aliança Atlântica passará a incluir 32 países. Putin enganou-se, mais uma vez, nos cálculos.»

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12.5.22

Bolsonaro ou Lula?

 



Tudo tem limites em termos de «preferências». Há muito que penso que VARGAS LLOSA só engana quem quer ser enganado.

Daqui.
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Covid, sexta vaga?

 



Os mais vulneráveis serão alvos preferenciais da nova variante e os especialistas admitem que a recente subida de casos positivos de SARS-CoV-2 "provavelmente contribuirá" para o aumento da mortalidade nos próximos 30 dias.»
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Better dead than red

 


«Um dos mais infames slogans políticos da nossa história – “better red than dead” –, tem de novo ecoado, de forma mais ou menos expressa, a propósito da invasão russa da Ucrânia. Não porque, esclareça-se desde já esse equívoco recorrente, o regime de Putin tenha algo a ver com o comunismo – a sua matriz é claramente czarista.

O próprio Partido Comunista Português sabe isso perfeitamente – daí que a sua posição não se explique, de todo, pela fidelidade ao regime de Putin. Antes, tão-só, pela sua fidelidade de sempre ao Partido Comunista Russo – foi assim durante toda a II Guerra Mundial, mesmo durante o pacto soviético com o regime nazi; foi assim em todo o processo da nossa descolonização; foi assim em todo o processo de desmantelamento da União Soviética; tem sido também assim, sem surpresa, agora.

O próprio Putin também tem usado o “argumento da desnazificação” da Ucrânia para justificar a invasão russa da Ucrânia de forma claramente cínica. Ele não acredita nessa alegação – mas acredita que, por mero “reflexo pavloviano”, ela tenha algum efeito na opinião pública, interna e externa. E acredita bem – como, também sem surpresa, se pode verificar, inclusivamente na opinião pública portuguesa.

O slogan tem, porém, ecoado, de forma cada vez mais sonora, à medida que a resistência ucraniana se amplia – e daí as crescentes sugestões, mais ou menos tácitas, para que a Ucrânia se renda. Como sempre, aduzem-se os mais diversos argumentos, em particular o de que a resistência ucraniana tem como principal beneficiário a NATO e, em particular, os Estados Unidos da América; e como maior prejudicado colateral o modelo social europeu, pelo desvio de fundos, já em concretização, para os orçamentos de Defesa dos Estados da União Europeia.

A alegação não é infundada mas não explica o crescente incómodo com a resistência ucraniana. Explica-se antes este incómodo, a nosso ver, por um conceito que a nossa cultura historicamente recalcou: o de heroicidade. Com um efeito, se há um qualificativo adequado para a resistência ucraniana é esse: heróica. E é isso o que mais profundamente nos incomoda, a todos nós que deixámos de valorizar a heroicidade e que até criámos, na nossa cultura, como seu substituto simbólico, a figura do anti-herói. Na resistência ucraniana, olhamo-nos ao espelho e vemos, com o mais profundo incómodo, quem fomos deixando de ser.»

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11.5.22

Para pior já basta assim

 

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IVG – A polémica do dia

 



Vale a pena ver e ouvir o que passou ontem no Parlamento (primeiros 5:21 minutos do vídeo, mas o tema volta mais adiante).
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11.05.1904 – Salvador Dali

 


O mundo está talvez mais surrealista hoje do que era como ele o conheceu.
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Aborto: o que é escolha da mulher não é falha do médico. A liberdade não se penaliza

 


«Os médicos de família e elementos das suas equipas podem vir a ser avaliados pelo número de interrupções voluntárias da gravidez (IVG) realizadas pelas utentes que estão nas suas listas. Isto resultaria da introdução de novos critérios de avaliação para a remuneração variável dos profissionais das Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B). Estou convencido que os autores desta proposta (e a ministra) não foram motivados por qualquer perseguição às mulheres. Mas esta proposta absurda resulta de um equívoco sobre o que quer dizer “escolha”.

É óbvio que o recurso à IVG tem efeitos negativos para a saúde física e psicológica da mulher. Tinha muito maiores, quando era clandestino e inseguro. Mas continua a ter. O mesmo se aplica a muitos outros atos médicos. O erro é vê-la como um indicador válido de uma falha prévia. E esse foi o argumento da ministra: se a mulher aborta é porque falhou o planeamento familiar. E os médicos que conseguem que as suas pacientes tenham o planeamento familiar eficaz devem ser premiados. Não vou debater a perversidade destas metas, que tratam os pacientes como elementos passivos da ação dos médicos. É o sistema que existe. O erro é mais infantil do que isso.

A ideia é que o número de abortos mede a capacidade do médico, por via da promoção do planeamento familiar, evitar gravidezes indesejadas. Só que o número de gravidezes indesejadas não se mede pelo número de abortos, mas pelo número de gravidezes indesejadas. Depois da gravidez indesejada, umas mulheres decidem levar a gravidez até ao fim, outras decidem interrompê-la. Como não mede as gravidezes indesejadas, apenas medirá a escolha das mulheres. E a única influência que o médico pode ter nessa escolha é interferir nela. Seja convencendo a mulher a não abortar, seja não facilitando o acesso aos serviços. Imagino que não fosse esta a vontade de quem pensou neste critério, mas é o único efeito que pode ter. Ou não tem efeito nenhum, o que só pode levar à sua exclusão.

Suponho que a generalidade dos médicos respeitará, mesmo assim, a decisão da mulher. Mas a verdade é que esta proposta os coloca, como bem disse Manuela Tavares, da UMAR, num conflito de interesses. Respeitar as mulheres é trabalhar para uma remuneração menos simpática.

A IVG é um direito reprodutivo de todas as mulheres. Ao médico, não cabe nem incentivar, nem dissuadir a mulher de o fazer. Cabe-lhe dar toda a informação necessária. Como o aborto não é uma coisa que acontece à mulher, mas uma escolha, não pode, por natureza, servir para avaliar o seu médico.

A legalização da IVG teve como efeito um aumento inicial do número de abortos e uma redução acentuada a partir de 2011, seguindo assim o padrão que sempre se disse que seguiria. Porque é o que acontece em quase todo o lado. Porque depois do impacto de tornar visível e acessível o que era invisível e clandestino, acompanha essa escolha com a promoção da saúde, incluindo mais mulheres no sistema. Mas a escolha está e continuará a lá estar. Esta proposta ignora isso mesmo: que há mesmo uma escolha. E que ela resulta da vontade da mulher, em que o médico não deve nem pode interferir.

A proposta limita-se a reavivar polémicas que estavam resolvidas. No debate parlamentar em que a ministra da Saúde não conseguiu defender o indefensável, disse, visivelmente irritada: “Estamos em 2022. Não é uma discussão para o nosso país, não é uma discussão para este Governo.” Então que se encerre, retirando da penalização do médico o que é escolha da mulher.»

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10.5.22

10.05.1958 – Humberto Delgado: «Obviamente demito-o!»

 


Durante a conferência de imprensa de lançamento da sua campanha para as eleições presidenciais, no Café Chave d’Ouro em Lisboa, Humberto Delgado proferiu uma frase que viria a ficar célebre: «Obviamente, demito-o!»

Interessa o seu significado, independentemente das outras versões da frase que foram sendo reivindicadas.

Ver AQUI um relato do acontecimento.
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«Grândola, Vila Morena», 50 anos

 




«José Afonso, 10 de maio de 1972, Santiago de Compostela. Um homem, uma data, um local. Apenas uma pequena parte da história. Os escritores de canções exercem o seu mister na esperança de que o que escrevem tenha pelo menos uma vida, o que nem sempre se revela fácil. Muitos escrevem canções que nunca chegam a ser gravadas ou cantadas e quando o são poucas conseguem conquistar um espaço na história. Mas mesmo essas, as que sobrevivem e se agarram com unhas e dentes e palavras e melodias a um tempo qualquer, ficam encarceradas no espaço da memória, condenadas a viverem para sempre no passado ou em antologias que recordam uma qualquer era já desaparecida. Nem todas as canções podem, portanto, ser como «Grândola Vila Morena», uma canção quase-felina que conheceu pelo menos seis vidas.» 

Continuar a ler AQUI a história de «Grândola».
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Festejar a paz ou a guerra

 


«Falou-se muito nos últimos dias da diferença entre uma Europa Ocidental que celebra sobretudo a paz pós-Segunda Guerra Mundial e uma Rússia que faz gala em comemorar como se fosse hoje a vitória de 1945 sobre os nazis. Duas formas bem distintas de ver o 9 de maio, ainda por cima no atual contexto de guerra na Ucrânia, em que a União Europeia e a Rússia estão em lados totalmente opostos da barricada, mesmo sem se enfrentarem a tiro, naquele que é o mais sangrento conflito no continente em 77 anos e um alerta de que nada é definitivo.

Hoje é evidente que o nazismo foi derrotado graças à sua desvantagem avassaladora perante a ação conjugada dos Estados Unidos e da União Soviética a partir de 1941, com um grande contributo do Reino Unido, também o esforço da França Livre de De Gaulle e ainda, no teatro asiático, da China. Por alguma razão, ainda o Conselho de Segurança das Nações Unidas reflete esses cinco vencedores na sua hierarquia, todos eles, e mais nenhum, membros permanentes e com direito de veto.

Mas a Europa que emergiu da Segunda Guerra Mundial foi uma Europa dividida, mesmo que tardasse 16 anos a ser construído o Muro de Berlim que oficializou a tal Cortina de Ferro prevista bem cedo por Churchill. A Leste, sob liderança de Moscovo, capital soviética tal como desde 1991 é capital russa, ergueu-se um bloco comunista criado pela força. A Ocidente, e sem esquecer a importância da aliança com os Estados Unidos formalizada na NATO, criou-se gradualmente uma comunidade de países baseada na vontade de reconciliação, nomeadamente da França e da Alemanha. Com o passar das décadas, essa comunidade passou a dar pelo nome de União Europeia e, apesar da saída do Reino Unido e das reticências históricas da Noruega e da Suíça em integrá-la, é um sucesso tal que inclui países do antigo bloco comunista, até três antigas repúblicas soviéticas e agora tem mesmo de lidar com a candidatura de uma Ucrânia em rutura total com Rússia depois da invasão de 24 de fevereiro.

A Europa Ocidental festejou, pois, a paz, porque nela estão vencidos e vencedores da Segunda Guerra Mundial. Foi um feito derrotar o nazismo, mas talvez maior feito ainda tenha sido conseguir o maior período de paz na Europa em mil anos. A Rússia, que sob a forma soviética foi em termos humanos o país mais massacrado pela Segunda Guerra Mundial, celebrou a derrota do nazismo pelo valor desta, mas também por ter pouco mais, na atualidade, para celebrar. A Guerra Fria terminou em 1991 com a desagregação da União Soviética, e 2022 é um ano em que a Rússia faz ao mesmo tempo uma guerra terrível e sofre retaliações que provavelmente a deixarão mais fraca como potência quaisquer que sejam os avanços em território ucraniano.

Objetivamente, não fosse a questão dos arsenais nucleares (o maior vestígio ainda da Guerra Fria) e as ondas de choque da guerra na Ucrânia só viriam confirmar que a Rússia já não é uma superpotência, que os Estados Unidos apesar de tudo mantêm boa parte desse estatuto e que a China, ainda cautelosa, já percebeu ser a única rival à altura de lidar com uma América ainda com bastantes recursos. Quanto à Europa Ocidental, faz bem em festejar a sua unidade, reforçada até pelas ações russas, mas dificilmente poderá ambicionar ser ela própria uma superpotência. Os seus membros deixaram-se das guerras do passado, mas não desapareceram de todo as pequenas e grandes suspeitas históricas de uns e outros. Talvez daqui a mais 77 anos.»

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9.5.22

Hoje acordei a pensar nisto

 

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O Dia da Vitória

 


Como é sabido, também se festejou em Portugal o fim da II Guerra Mundial. Multidões saíram à rua com bandeiras dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e… do Benfica, estas últimas como substitutas das da União Soviética, obviamente proibidas. Como alternativa, vê-se também, nas fotografias da época, paus sem bandeira.
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Metadados, ou o desastre de empurrar com a barriga

 


«A notícia é clara: o sucesso de milhares de processos-crime ainda em curso está em risco porque as provas recolhidas por acesso aos metadados de comunicações electrónicas, essenciais em muitos processos-crime, podem ser consideradas inválidas e fazer ruir toda a investigação.

Em causa está a Lei n.º 32/2008, a “lei dos metadados”, que obriga as operadoras telefónicas a conservar, durante um ano, todos os dados gerados ou tratados no âmbito de um serviço telefónico nas redes fixa e móvel, de acesso à Internet, de correio electrónico e ainda de comunicações telefónicas através da Internet. Para Big Brother, não está mal.

O que está mal é considerar que é o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que agora vem colocar em causa investigações policiais quando, desde 2014, pelo menos, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que os Estados têm de colocar limites sérios à conservação de metadados. Não proíbe essa retenção “se for utilizada contra alvos específicos para combater a criminalidade grave”, mas condena a conservação generalizada por, como explica o TC, em relação à lei nacional, restringir “de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade e à autodeterminação informativa”.

O Presidente da República pode considerar que é o TC que “entende que a Constituição é muito fechada”, mas a verdade é que os juízes conselheiros não fizeram mais que fazer cumprir a lei fundamental portuguesa em sintonia com a lei europeia. Como muito bem alertou a provedora de Justiça, quando pediu a declaração de inconstitucionalidade no seguimento de uma queixa da associação de direitos digitais D3, perante a recusa da ministra da Justiça Francisca Van Dunem em alterar a lei.

A Internet já não é um mundo assim tão novo e os Estados podem escolher adaptar-se, criando condições para que as polícias possam operar ou podem enfiar a cabeça na areia e chorar sobre o leite derramado. É nesta posição difícil que o Estado português se tem colocado, como é exemplo também a moratória que permite à Administração Pública não ser multada durante três anos por não cumprir o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD). Vamos ver quantos estão de acordo com a lei ao fim desse prazo.

Bom mesmo é que existem leis fundamentais que protegem os cidadãos, umas vezes de Estados totalitários e pouco cumpridores dos direitos e garantias, outras vezes de Estados laxistas e negligentes, também eles pouco capazes de salvaguardar direitos e garantias dos seus cidadãos.»

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8.5.22

Ele bem gostava de ajudar…


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Bombas e baleias

 

«Muitos ainda vivem na ingénua ilusão de que a actual guerra é um conflito regional entre a Rússia e a Ucrânia, capaz de ser resolvido em termos puramente bilaterais, não se apercebendo de que a "operação especial" de Putin deu um golpe de misericórdia nas ténues esperanças de uma transição energética equilibrada e saudável. Se já de si eram difíceis de cumprir as metas e os objectivos capazes de conter o aquecimento global, eles tornaram-se agora muito mais distantes e inalcançáveis. Além dos efeitos directos no território da Ucrânia e dos países limítrofes, a urgência com que hoje se buscam alternativas ao gás e ao petróleo russos impede que se faça uma aposta a sério, amadurecida e articulada, em fontes de energia renováveis e mais limpas. À semelhança do que aconteceu morticínio das baleias na Inglaterra do pós-guerra, os governos agem agora à pressa e sob tremenda pressão, a pressão de opiniões públicas que tanto reclamam o fim imediato das importações de energia da Rússia como não estão dispostas a fazer os sacrifícios que uma medida tão drástica implica.»

António Araújo
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Assim continuamos

Liguei a TV na RTP1 às 13h para saber algumas notícias importantes do dia. Os primeiros 13:15 minutos mostram-me que a vitória de um clube de futebol foi, sem dúvida, o que de mais importante aconteceu no mundo desde ontem à noite.
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Assédio, medo e boato na aldeia global

 


«O manto de silêncio que cobre determinados crimes é difícil de romper, mesmo quando parece aceso o debate sobre eles na praça pública. A torrente de notícias sobre os casos de assédio sexual nas universidades não tem paralelo ao nível das denúncias, acabando por haver uma desproporção entre a proliferação de canais, plataformas e relatos anónimos e o défice de inquéritos criminais.

São múltiplos os fatores que o explicam, desde as relações de poder que sempre enformam situações de assédio à existência de fatores culturais que levam a uma autoculpabilização da vítima (que alguma coisa terá feito para mostrar que está disponível, como continuamos a ouvir dizer, em jeito de comentário a casos denunciados). Em vários momentos pareceu antever-se, em atitudes públicas de denúncia, uma espécie de #metoo à portuguesa, mas continuamos com a perceção de que o medo acaba sempre por se sobrepor à tentativa de mudança.

O medo da exposição é particularmente relevante num tempo em que um vídeo, um áudio ou uma simples mensagem que caiam em mãos erradas facilmente acabam ampliados por via tecnológica. Se falar de experiências íntimas e perturbadoras já é, só por si, difícil, o problema ganha outra escala quando se sabe que um testemunho pode acabar lido por milhares de pessoas, que sobre ele comentam, ajuízam e fazem autênticos julgamentos sumários. Isto já para não falar do risco de as próprias vítimas acabarem envolvidas em narrativas ficcionadas, boatos e tantas outras consequências em que as redes são pródigas.

Na era da globalização, voltámos ao espírito mesquinho dos boatos típicos dos meios sociais mais pequeninos (em todos os sentidos do termo). Discorre-se muito, mas há défice de debate, em contraponto com o vício da crítica gratuita e da ofensa pessoal. A liberdade de expressão que Elon Musk tanto defende para o Twitter não é livre, porque a liberdade pressupõe um conjunto de outros valores que a consubstanciam. Na aldeia, o boato tocava e minava a vida dos vizinhos, mas ficava-se entre eles. Na aldeia global, percorre milhares de quilómetros. E tem um efeito de contaminação que corrói todo o espaço público.»

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