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31.12.20
Auckland 2021
Já lá vão muitas horas desde que os neozelandeses festejaram a chegada do novo ano com bons motivos para o fazerem – sem máscara, porque já não precisam.
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31.12.1968 / 01.01.1969 – Uma vigília contra a Guerra Colonial
(Cabeçalho da convocatória para a Vigília)
Em 31 de Dezembro de 1968, cerca de cento e cinquenta católicos entraram na igreja de S. Domingos, em Lisboa, e nela permaneceram toda a noite, naquela que terá sido a primeira afirmação colectiva de católicos contra a Guerra Colonial, numa actividade formalmente «disciplinada». Com efeito, o papa Paulo VI decretara, em 8 de Dezembro, que o primeiro dia de cada ano civil passasse a ser comemorado pela Igreja como Dia Mundial pela Paz e, alguns dias depois, os bispos portugueses tinham seguido o apelo do papa em nota pastoral colectiva.
Assim sendo, nada melhor do que tirar partido de uma oportunidade única: depois da missa presidida pelo cardeal Cerejeira, quatro delegados do numeroso grupo de participantes comunicaram-lhe que ficariam na igreja, explicando-lhe, resumidamente, o que pretendiam com a vigília:
«1º – Tomar consciência de que a comunidade cristã portuguesa não pode celebrar um “dia da paz” desconhecendo, camuflando ou silenciando a guerra em que estamos envolvidos nos territórios de África.2º – Exprimir a nossa angústia e preocupação de cristãos frente a um tabu que se criou na sociedade portuguesa, que inibe as pessoas de se pronunciarem livremente sobre a guerra nos territórios de África.3º – Assumir publicamente, como cristãos, um compromisso de procura efectiva da Paz frente à guerra de África.»
Entregaram-lhe também um longo comunicado que tinha sido distribuído aos participantes, no qual, entre muitos outros aspectos, era sublinhado o facto de a nota pastoral dos bispos portugueses, acima referida, tomar expressamente partido pelas posições do governo que estavam na origem da própria guerra, ao falar de «povos ultramarinos que integram a Nação Portuguesa».
Apesar de algumas objecções, o cardeal não se opôs a que permanecessem na igreja, ressalvando «a necessidade de uma atitude de aceitação da pluralidade de posições». Pluralidade não houve nenhuma: até às 5:30, foram discutidos todos os temas previstos e conhecidos vários testemunhos, orais ou escritos, sobre situações de guerra na Guiné, Angola e Moçambique.
Hoje tudo isto parece trivial, mas estava então bem longe de o ser. Aliás, seguiu-se uma guerra de comunicados entre Cerejeira e os participantes na vigília, que seria fastidioso analisar aqui. Mas vale a pena referir que, com data de 8 de Janeiro, uma nota do Patriarcado denunciou «o carácter tendencioso da reunião», terminando com um parágrafo suficientemente esclarecedor para dispensar comentários:
«Manifestações como esta que acabam por causar grave prejuízo à causa da Igreja e da verdadeira Paz, pelo clima de confusão, indisciplina e revolta que alimentam, são condenáveis; e é de lamentar que apareçam comprometidos com elas alguns membros do clero que, por vocação e missão deveriam ser, não os contestadores da palavra dos seus Bispos, mas os seus leais transmissores».
A PIDE esteve presente (há disso notícia em processo na Torre do Tombo), mas não houve qualquer intervenção policial. Alguns jornais (Capital e Diário Popular) noticiaram o evento, mas sem se referirem ao tema da Guerra Colonial – terão provavelmente tentado sem que a censura deixasse passar… A imprensa estrangeira, nomeadamente algumas revistas e jornais franceses, deram grande relevo ao acontecimento. E foi forte a repercussão nos meios católicos.
Para quem esteve presente em S. Domingos, como foi o meu caso, essa noite ficará para sempre ligada à Cantata da Paz, hoje tão conhecida, mas que poucos identificam com a sua origem. Com versos propositadamente escritos para essa noite por Sophia de Mello Breyner, e com música de Francisco Fernandes, foi então estreada por Francisco Fanhais. (Quantas vezes a terá cantado depois disso, nem ele certamente o saberá…)
P.S. – Quatro anos mais tarde realizou-se uma outra vigília pela paz na Capela do Rato, com consequências bem mais gravosas porque envolveu uma greve de fome, prisões e despedimentos da função pública.
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(Também publicado em esquerda.net.)
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30.12.20
Marcelo Rebelo de Sousa, criador de passados (2)
Durante a pré-campanha para as presidenciais de 2016, contei uma pequena história em que Marcelo Rebelo de Sousa estve envolvido alguns anos antes e na qual também participei. Se a retomo hoje é porque me retorço toda quando leio sondagens que lhe dão previsões de percentagens de votação estratosféricas em 24 de Janeiro: confirmam que ainda não se percebeu que se trata de alguém cujo primeiríssimo objectivo é sempre ficar bem na fotografia, seja esta presente, futura ou mesmo passada, custe o que custar. E o problema é que não sabemos o que isso nos pode vir a custar-nos num futuro próximo.
No episódio que resumo, pretendeu criar um passado com laivos de antifascismo, que pode reduzir-se a duas das frases que declarou a uma jornalista: «Penso que nasci para a PIDE aos 16 anos», «Fulano de tal [eu], que tem ideias perigosas, (…) estava a distribuir propaganda subversiva no dia x às tantas horas». Não se saiu lá muito bem, já que a memória de todos os que o conheceram na juventude ainda estava bem viva, mas continuou o seu caminho…
O texto em causa encontra-se AQUI.
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As mulheres do ano
«Há eventos, na história mais recuada e nos tempos recentes, que percebemos bem terem sido causados, ou piorados, pela má qualidade dos políticos e dos governantes. Exemplifico. A Revolução Francesa não está desligada da mediocridade de Luís XVI. Qualquer um esperaria de governantes como Trump e Bolsonaro que potenciassem uma carnificina, em calhando uma crise pandémica como a da covid. Porque psicologicamente e politicamente são produtos que não têm o bem comum da generalidade da população como princípio norteador.
O “Brexit” foi outro caso claro de políticos desastrosos sucedendo-se como dízima infinita. O irresponsável Cameron, com a brincadeira do referendo. May, mostrando força que não tinha. Boris Johnson, impreparado e espalhafatoso. Corbyn, sempre ambíguo e politicamente radical. Desagradava tanto aos britânicos que estes, até os que detestam o cisma com a União Europeia, preferiram votar nos conservadores do “Brexit”.
Porém, neste ano de pandemia, tivemos a sorte de algumas lideranças providenciais. Daquelas que agiram para minorar ou extinguir a crise. Que velaram pelo bem comum em vez de pelo narcisismo estrepitoso próprio dos líderes proto-autoritários. Dentro delas, curiosamente, as melhores foram mulheres. Para mim, as personalidades políticas de 2020 foram quatro e estão todas no feminino.
Ursula von der Leyen é a mais emblemática. Porventura a maior responsável europeia pela vacina para a covid. Não tendo a União Europeia uma política de saúde comum, para além dos mínimos de regulamentação, a Comissão Europeia tomou para si o financiamento da pesquisa das empresas privadas, arriscou (porque poderia financiar e os resultados serem sofríveis ou insuficientes), coordenou etapas entre o regulador comunitário e as farmacêuticas, encomendou doses para toda a UE, e, por fim, está a distribui-las por todos os países simultaneamente.
Penso que em Portugal todos temos noção de que, não fora toda a estratégia, planeamento e logística da Comissão Europeia, não receberíamos vacinas contra a covid ao mesmo tempo que a Alemanha. Nem teríamos stocks atempados para recuperarmos normalidade de vida no verão. Lembremos há pouco tempo o desaire com as vacinas da gripe, esse da gestão do muito português Ministério da Saúde, que colocou pessoas que normalmente se vacinam sem dificuldades não conseguindo vacinas este ano.
A presidente da Comissão não deixou os Estados membros entregues a si próprios numa área que não é da competência da UE. Depois da calamitosa resposta inicial da UE à Itália – ficou sozinha a tratar do surto explosivo de covid, com ajuda casuística dos países vizinhos em alguns internamentos –, onde até houve ralhetes e ameaças do BCE por causa das contas públicas italianas à conta da covid, Ursula von der Leyen percebeu que a resposta teria de ser europeia. Porque o coronavírus tem a particularidade irritante de não se incomodar com fronteiras.
Não foi só na vacinação que Ursula von der Leyen entregou resultados. A bazuca europeia para a recuperação económica pós-covid tem a sua impressão digital. Conseguir convencer os mais renitentes à emissão de dívida europeia para a bazuca foi épico. O discurso do Estado da União por Von der Leyen este ano no Parlamento Europeu – memorável. Falando em inglês e francês, Ursula não tem a vivacidade que lhe é visível nas partes em que discursa em alemão, é mais pausada e contida, mas as oscilações de forma não a impediram de ser ambiciosa para a UE, tanto na economia como nos direitos humanos, passando até pela cultura.
Felizmente temos uma Ursula von der Leyen à frente da CE neste ano alucinado. Até o dossier “Brexit” a expediente Ursula conseguiu encerrar. E é curioso – e comovente – que o ano da consumação do “Brexit” seja também o ano em que a colaboração europeia fez tanto sentido e foi tão imprescindível.
Outra líder incontornável: Angela Merkel. Sempre reincidente nestes rankings de boas características. A sua firmeza a decretar confinamentos, a escolha de bons cientistas para a aconselharem e a ausência de hesitação a aplicar as recomendações foram de índole a dar segurança ao mais incréus. Os seus discursos políticos onde explicava, de modo calmo e contundente, o que sucederia se a taxa de transmissão da doença aumentasse, quantos mortos se esperariam diariamente se o Natal alemão fosse mais relaxado, e outros pormenores técnicos tornados acessíveis e evidentes por Merkel, foram de antologia. Deveriam ser usados em licenciaturas e mestrados como paradigmas de boa comunicação política.
Uma terceira é Jacinda Ardern, da Nova Zelândia. Teve como política suprimir o contágio de covid. O país fechou, para dentro e para fora (ajudou ser um arquipélago), e temporariamente teve os custos económicos da paragem. Como resultado, no total tiveram pouco mais de dois mil casos de covid e, segundo o site Worldometers, 25 mortos (para cinco milhões de habitantes). Já reabriram as fronteiras com a Austrália e regressaram à vida (quase) normal mesmo sem vacinas que lhes trouxessem a almejada imunidade de grupo.
E a quarta: Tsai Ing-wen. A Presidente de Taiwan, líder do DPP, o partido progressista e independentista da ilha. Teve melhores resultados que Ardern: menos de mil casos em Taiwan, e sete mortes. Tanto mais assinalável pela alta densidade populacional: a ilha é menos de metade de Portugal e tem mais do dobro da população. A estratégia de Tsai Ing-wen foi implementada mal se souberam dos casos em Wuhan nos primeiros dias do ano. Logo em janeiro, estava a OMS ainda a olhar para o umbigo e para a propaganda chinesa, fechou o país ao exterior (só entravam residentes e nacionais, com quarentena), convidou os turistas chineses (há lá muitos) e japoneses a regressarem a casa sem demoras, encerrou as escolas e universidades por umas tantas semanas, as máscaras tornaram-se obrigatórias e eram distribuídas à população.
Taiwan nunca teve confinamento geral, mas a pronta ação inicial e a limitação de movimentos contiveram o contágio de covid nos primórdios da doença. Podemos comparar com os países europeus, Portugal por exemplo, incentivando a vinda de turistas todo o verão, a ver se tornavam inevitável uma segunda vaga. Taiwan está na meia dúzia (mal contada) de países que vai crescer economicamente em 2020.
2020 foi um ano terrível. Porém, é reconfortante que nesta crise gigante as lideranças políticas femininas tenham sido as mais admiráveis.»
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29.12.20
Presidenciais: Entrevistas na RTP durante a pré-campanha
Terão sido muitas as queixas apresentadas ao Provedor do Telespectador da RTP, Jorge Wemans, sobre o tema em questão e reproduzo aqui a resposta recebida. (Hoje, 29.12.2020, o entrevistado será o candidato Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa.)
«Encarregue de entrevistar os candidatos a Presidente da República, o jornalista João Adelino Faria escolheu como método para dar a conhecer o pensamento de cada um deles interrogá-los sobre factos concretos e situações bem tipificadas. Insistindo para obter respostas concretas e taxativas. O método é conhecido e tem vantagens sobre entrevistas baseadas em questões genéricas e abstratas. Sobretudo tratando-se de entrevistas curtas (30 min.).
Vários telespetadores manifestaram ao provedor o seu desagrado quanto às frequentes interrupções com que o jornalista cortou o raciocínio dos candidatos entrevistados, não os deixando expressar com tranquilidade o seu pensamento, confrontando-os com interpretações distorcidas do que disseram e impedindo-os de fundamentarem os seus pontos de vista.
Alguns telespetadores usaram a correspondência com o provedor para caluniar, difamar e emitir insinuações a respeito de João Adelino Faria. Ainda que tais comportamentos se estejam a tornar habituais, o provedor repudia frontalmente tais atitudes a que obviamente não responderá.
Revistas as entrevistas, o provedor conclui que a prestação de João Adelino Faria pecou por demasiada insistência nas perguntas para as quais pretendia obter respostas, excesso de interrupções do discurso dos entrevistados e, por vezes, extrapolação enviesada do que por eles tinha sido referido. Em algumas entrevistas o tempo de fala do entrevistador foi igual ao tempo concedido ao entrevistado. Desta forma, os telespetadores pouco ganharam em termos do conhecimento do pensamento e da provável ação dos candidatos caso sejam eleitos Presidente da República.
Deste parecer dou conhecimento ao jornalista e à direção de informação.
m/ cumprimentos,
Jorge Wemans
Provedor do telespectador»
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Mais médicos no SNS? Leva-os o vento
«Entre as 1385 vagas disponíveis para reforçar a saúde pública, medicina geral e as áreas hospitalares, apenas 908 foram transformadas em contratos efetivos. Médicos queixam-se da falta de condições.»
Era absolutamente óbvio que isto ia acontecer, porque não se mexeu em carreiras, salários e porque não se regulamentou a Lei de Bases da Saúde aprovada na Assembleia da República. E foi por isso que o governo, mais ciente do que nós de que seriam estes os resultados, cedeu a pôr no OE2021 números astronómicos de médicos a serem contratados em troca de uma abstenção na votação final do OE para este passar - se é que me faço entender.
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O dia seguinte
«O princípio do fim ou o fim do princípio. Foi assim, a cada um sua leitura, olhado o início da vacinação contra a Covid 19 em Portugal e no resto da Europa. Garantida está, pelo menos, uma réstia de esperança para o ano novo que se aproxima e se deseja melhor, solar, aberto. Mas nada está garantido, muito pelo contrário.
Quando acabará o longo pesadelo? Vemos uma luz ao fundo do túnel, ao mesmo tempo dá-se quase por garantida uma terceira vaga da pandemia, e bastantes vozes dizem recusar a vacina, hipotecando a possibilidade de alcançarmos a sonhada imunidade de grupo. Vamos acreditar que no domingo, com o início da vacinação, assistimos ao início de algo novo. Uma coisa é certa: não retomaremos o momento interrompido em março passado, ninguém tenha ilusões. Mas é chegada a hora de levantar os escombros, afastar esta crise que muitos classificaram, sem qualquer exagero, como uma guerra silenciosa. Desconhecemos ainda o que iremos encontrar amanhã, todavia teremos de estar preparados para o pior: para uma crise social sem precedentes. Até agora essa crise foi amortecida por apoios sociais garantidos pelos diferentes estados, por moratórias de dívidas que acabarão por ter de ser pagas. E serão aqueles que pouco ou nada têm, uma vez mais, a sofrer.
Serão "os pobres, aqueles que odiamos porque recebem subsídios e não trabalham, tirando dinheiro dos nossos bolsos, aqueles que gastam esse dinheiro na droga e no álcool, que roubam e nos atazanam a vida, e têm o privilégio de nunca terem sido amados", escreve o padre José júlio Rocha, no Diário Insular, dos Açores. Um texto que é um verdadeiro murro no estômago a lembrar-nos que é a esses, "os que não têm lugar", os que nunca foram amados, que o dia seguinte se apresenta verdadeiramente negro.»
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28.12.20
Covid e Parosmia?
Faltava esta... Se estivermos a comer um bife e nos cheirar a sardinhas pode ser mau sinal.
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Recordações de 2020
Sim, é isto o que guardo das minhas viagens em 2020 – ou seja, zero… E não creio que venha a ser diferente em 2021.
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Não, os “vistos gold” não acabaram... sequer em Lisboa e no Porto
«Várias notícias têm vindo a público dizendo que Governo aprova o fim dos “vistos gold". É preciso não nos deixarmos ir por certos títulos. A precipitação pode levar-nos ao engano.
Está anunciado desde 2019, através de uma autorização legislativa aprovada no Orçamento do Estado para 2020, que este regime seja alterado nas áreas de maior pressão imobiliária como Lisboa e Porto, prevendo que fosse interrompida a possibilidade de sua aplicação no imobiliário, uma vez que cerca de 90% do investimento no âmbito deste programa é aplicado na compra de imóveis. O Governo deixou passar 2020 e, a poucos dias do seu fim, anuncia novo decreto que prevê que as Autorizações de Residência para Investimento, os chamados “vistos gold”, continuem a investir em imobiliário, nas áreas metropolitanas de Lisboa, Porto e litoral até ao final do 2022. A partir de 1 de Julho de 2021 o valor do imobiliário adquirido nestas áreas terá de ser mais elevado (gerando ainda maior pressão nos preços) para as pessoas poderem, através dessa compra, adquirirem também uma autorização de residência. Teremos então mais dois longos anos de “vistos gold” através da aquisição de imobiliário, nas áreas de grande pressão, onde falta habitação a preços acessíveis, assim como teremos a continuação dos mesmos no resto do país.
Na verdade, os sucessivos anúncios do Governo têm promovido uma corrida aos “vistos gold” e, consequentemente, ao imobiliário nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, fomentando o processo especulativo. Agora sabemos que essa corrida prolongar-se-á até 2022, com preços a subir. Para não falar do impacto que isto terá também no interior do país e ilhas, aí sem data para terminar.
Vale a pena contar aqui uma pequena história: um dia, entrevistando um agente imobiliário, ele disse-me que não vendia casas, vendia vistos, e que, por isso, uma casa que poderia valer 200 mil era vendida a 500 mil porque era isso que interessava ao comprador. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Os “vistos gold” devem acabar. Colocam inúmeros problemas, já referidos por diversas organizações e que estão suficientemente comprovados:
- Podem ser usados para lavagem de dinheiro e formas de evasão fiscal, aumentam riscos de corrupção, falta de transparência e potenciam condutas duvidosas.
- Promovem o tratamento desigual e discriminatório, que dá ao estrangeiro que pode comprar direitos pagando o visto (e pouco depois a nacionalidade) um tratamento mais favorável que ao trabalhador imigrante que, anos a fio neste país, não consegue muitas vezes obter a sua regularização. É injusto e imoral transformar, uma vez mais, direitos em mercadoria.
- O Parlamento Europeu veio declarar-se contra os “vistos gold", defendendo que a cidadania não deve estar à venda, reafirmando os aspetos potenciadores de branqueamento de capitais e atração de criminosos que já eram referidos pelas organizações da sociedade civil.
- Os “vistos gold” têm sido fundamentais para inflacionar preços na habitação, desconectando-os da realidade de quem vive e trabalha em Portugal. Aprovados pela mão de Paulo Portas em 2012, foram das primeiras medidas estatais que apoiaram o disparar dos preços da habitação. Conjuntamente a outras medidas, vieram promover um mercado imobiliário virado para os altos rendimentos e transformar a habitação em produto de investimento em vez da sua função social.
- Os “vistos gold” não são investimento útil, são antes formas de guardar (e esconder) dinheiro no tijolo, não criam sequer emprego e têm fraco contributo fiscal, contribuem para a especulação imobiliária, cujos ganhos acabam depois por voltar a sair do país.
- Os “vistos gold” são responsáveis, direta e indiretamente, por milhares de expulsões e despejos. Tornaram uma parte da população mais pobre e precária, vieram contribuir para o aumento da desigualdade social. E, pelo que parece, assim vão continuar. Os interesses do imobiliário acabaram por prevalecer.»
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27.12.20
27.12.1943 – Joan Manuel Serrat
Joan Manuel Serrat faz hoje 77 anos e nasceu no bairro Poble Sec de Barcelona, numa família de operários.
Começou por cantar em catalão, passou depois para castelhano no fim da década de 60, o que provocou fortes acusações de traição por parte dos seus conterrâneos. Mas em 1968, selecionado para representar a Espanha no Festival Eurovisão da Canção, disse que só o faria se cantasse em catalão, proposta que não foi aceite e que esteve na origem da proibição, pelo governo, que actuasse na televisão e que as suas canções fossem transmitidas na rádio.
Os anos forma passando e, no Natal de 2014, estoirou de novo a polémica por ter recorrido de novo ao catalão, na TVE, poucos minutos depois do discurso do rei.
Apesar da idade, soma e segue: em Novembro de 2015 terminou uma tournée em que deu mais de 100 concertos na América Latina, Estados Unidos e Europa. E continuou…
Nos últimos anos viu-se envolvido em várias polémicas por se posicionar contra a indepedência da Catalunha.
Algumas clássicas:
Recentemente, dedicou esta interpretação de «Aquellas pequeñas cosas» aos doentes com Covid e aos profissionais que deles cuidam.
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Tino de Rans: uma boa entrevista
(Vergonhosamente excluído dos debates com os outros candidatos às presidenciais por RTP, SIC e TVI, estará no Porto Canal pelo menos com Marcelo Rebelo de Sousa e Marisa Matias.)
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Obrigado
«Os seres humanos são animais de hábitos, esses sinaleiros que nos satisfazem a nostalgia de segurança e organizam o Mundo.
Construir e viver um quotidiano alicerçado em hábitos é uma tentativa de controlar variáveis que receamos ver bailar sem coreografia visada pela (nossa) censura. Mas tal esforço de estruturação não diz só respeito aos comportamentos mais comezinhos, estendemo-lo ao fluir da vida. Inventámos relógios e calendários, pedimos à Natureza que vestisse espartilhos e se o recusa lamentamos que viole a ordem - artificial... - das coisas. Ao longo dos anos fiz essa experiência com o Senhor Augusto em Cantelães, ele olha o horizonte e profetiza o dia seguinte ao arrepio do boletim meteorológico no ecrã do meu telemóvel, se protesto recebo um matreiro "disso não percebo nada". E acerta ele, apoiado na sabedoria de gerações.
Vem aí espartilho clássico - Ano Novo. E um clamor se faz ouvir, ruge apesar das máscaras, não esquece as perdas e danos mas exige um sentimento de alívio, abraços não culpados, parques percorridos bras dessus bras dessous, a pobreza ao menos livre de mais um receio. Depois de uma tempestade assim não nos chega uma bonança tímida, precisamos de uma bebedeira de liberdade, "a nós a Vida Nova!".
Não acontece por milagre. Releio o poema de Ferreira Gullar sobre o Ano Novo: "Meia noite. Fim/de um ano, início/de outro. Olho o céu:/nenhum indício./Olho o céu:/o abismo vence o/olhar. O mesmo/espantoso silêncio/da Via-Láctea feito/um ectoplasma/sobre a minha cabeça:/nada ali indica/ que um ano novo começa./E não começa/nem no céu nem no chão/do planeta:/começa no coração./Começa como a esperança/de vida melhor/que entre os astros/não se escuta/nem se vê/nem pode haver:/que isso é coisa de homem/esse bicho/ estelar/que sonha/(e luta).
A um de Janeiro seremos os mesmos, o Mundo também. Sonhos preguiçosos nada resolverão, é preciso libertar a luta de parênteses e com ela inundar ruas e mentes. Lembrando, agradecidos, os que asseguram o metabolismo básico de uma sociedade que amiúde os destrata. Formigas incansáveis que viajam no porão, alimentam as caldeiras, limpam o casco e o tombadilho, asseguram que as cozinhas não naufragam. (Enquanto as cigarras se miram, autocomplacentes, em espelhos e soundbites nos salões da primeira classe).
Agradeço-lhes. Por exemplo, ao segurança da urbanização, viu-me entrar noite adentro, anónimo por trás de gorro e máscara, e não satisfeito por me ver rodar a chave do prédio exigiu que mostrasse o rosto. "É o meu trabalho", disse, com um sorriso tímido, e desapareceu no escuro. Eu subi. Tranquilo, por alguém velar. E tantos alguéns, dos mais diversos modos, o fazem por aí!»
Obrigado.
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26.12.20
26.12.1930 - Jean Ferrat
Representante típico de gerações de intérpretes politicamente engagés, para sempre ligado a «Nuit et Brouillard» e a tantos outros títulos, o eterno compagnon de route do Partido Comunista Francês, que não hesitou em denunciar a invasão de Praga em 1968.
C'est un nom terrible Camarade / C'est un nom terrible à dire / Quand le temps d'une mascarade / Il ne fait plus que fremir / Que venez-vous faire Camarade / Que venez-vous faire ici / Ce fut à cinq heures dans Prague / Que le mois d'août s'obscurcit.
Mas não só:
Mas não só:
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À beira de um ataque de nervos
«Ao cabo de dez meses de pandemia, o país está exausto de tensão e medos acumulados. A compressão da economia e a compressão do espaço das vidas torna-se cada dia mais insuportável. Para muitos, isso significa desespero causado pelo desemprego ou pela perda quase total de rendimento, logo agora que as coisas pareciam levar um rumo de recuperação, ainda que tímida. Comparamo-nos com outros povos e animamo-nos por não estarmos sós nesta provação, mas isso mesmo acrescenta medo ao nosso medo porque torna a nossa viragem dependente da de outros.
Para não sermos vítimas do desinvestimento de muitos anos na saúde e no trabalho, aceitamos “achatar a curva” achatando os nossos direitos. Para que a fragilização dos nossos velhos, esquecidos das políticas públicas há muito, não degenere em tragédia coletiva, deixamos de os tocar e impomo-nos distâncias. O país chega ao fim deste ano com uma ansiedade brutal.
Para um país assim, há três respostas que estão aí. A primeira é a da extrema direita. É uma resposta que explora os medos e o desespero e que alimenta a zanga de quem tem medo e desespera. É uma resposta apontada à culpabilização difusa, à segregação social e à acumulação de capital de queixa, sem nunca ambicionar mudar o que, no funcionamento da sociedade, provoca a fragilidade que é a verdadeira raiz do desespero. A segunda reposta é a da contenção de danos e tem nas diretrizes de Mário Centeno sobre a “intervenção na margem” sem medidas estruturais a sua cartilha.
É uma resposta resignada, por antecipação, ao mais que previsível regresso de Bruxelas às imposições de redução de défices e da consequente limitação da despesa social, agora que ela é o resguardo único da massa dos atirados para o vazio. Tudo nela é temporário e a bazuca europeia é o seu resguardo. A terceira reposta é a da determinação em mudar agora de fundo as condições de segurança das pessoas.
A segurança feita saúde, com um SNS redimensionado nos seus meios humanos e na sua gestão. A segurança feita emprego, com direitos do trabalho que previnam a facilidade de despedir e de recorrer a mão de obra sem direitos. A segurança feita proteção social, reforçando-a onde ela é fraca e trazendo para mecanismos robustos de apoio – e não para medidas pontuais – os muitos milhares de pessoas sem proteção.
O país precisa de esperança concreta. E isso faz-se de horizontes que mobilizem todas as nossas forças. No ano que aí vem, em cada decisão coletiva, é isso que se joga.»
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25.12.20
Não é um conto de Natal, mas podia ser
Na Austrália, dois pinguins "encontram-se regularmente para se confortarem um ao outro" após a morte dos seus companheiros.
A fotografia foi captada há mais de um ano e partilhada nas redes sociais em Março, numa altura em que uma pandemia ainda quase desconhecida começava a privar as pessoas de coisas tão simples como um toque ou um abraço.
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24.12.20
Natal sem renas
Este ano nem saio de casa, fico por aqui na Lapónia com as minhas renas, mas volto para o ano e desejo-vos uns dias tão parecidos com o Natal quanto possível.
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Cooperativa ou condomínio
«Aflorou-se um debate mais ou menos ideológico sobre o papel do mercado e do Estado na rapidez histórica com que chegámos à vacina. Além de haver razões científicas para esta velocidade — as investigações não começaram do zero —, os factos tendem a cumprir uma função meramente ilustrativa nestas contendas um pouco infantis. Porque não houve espaço para escolhas. Procurou-se apenas encontrar a vacina nas condições preexistentes: um sistema baseado em multinacionais farmacêuticas, com investigação que cruza público e privado e patentes que garantem retorno financeiro ao privado. A isto, acrescentou-se um apoio direto em subsídios e contratos de pré-reserva de doses para o desenvolvimento das vacinas, garantido pelos Estados em valores estratosféricos nunca vistos, reduzindo substancialmente o risco financeiro das farmacêuticas.
Em geral, as encomendas apoiadas não vieram com limites ao preço nem exigências de partilha da propriedade intelectual. Um negócio imposto pela necessidade que pode, é verdade, ter abreviado a chegada das vacinas. Quem pagou quer as vacinas para si. As primeiras centenas de milhões de doses foram arrebatadas pelos EUA, Reino Unido e União Europeia. Rússia e China terão as suas. 90% da produção da vacina da Pfizer e toda a produção da Moderna em 2021 já foi adquirida pelos países ricos. Só o Canadá encomendou vacinas suficientes para cinco vezes a sua população, enquanto os 70 países mais pobres poderão só conseguir vacinar uma em cada dez pessoas. Os acordos da COVAX com a AstraZeneca, Novavax e Sanofi lidam com atrasos que atiram a disponibilidade de vacinas para o final de 2021. Milhares de milhões poderão ficar sem vacinas até 2024, dizem documentos internos da OMS. É verdade que a AstraZeneca se comprometeu a disponibilizá-las de forma não lucrativa a países em vias de desenvolvimento, mas mesmo isso só chegaria a 18% da população em 2021. Uma empresa não chega e várias ONG pedem que as farmacêuticas disponibilizem a tecnologia, para descentralizar a produção. Caso contrário, a produção será demasiado lenta. São evidentes para todos as vantagens da cooperação que, no caso da União Europeia, tiveram um grau de coordenação inédito. Uma excelente notícia. Mas estamos sempre a falar de nós, os países ricos. A diferença entre isto e uma verdadeira solidariedade internacional é a diferença entre uma cooperativa e um condomínio.
O egoísmo dos países ricos, que açambarcam as vacinas, é imposto pelos seus cidadãos, que naturalmente querem estar protegidos. E por um sistema que baseia o desenvolvimento científico na propriedade intelectual. Mas ele terá um preço. Uma pandemia não conhece fronteiras. Esta acabará por nos bater à porta, pelo menos até atingirmos a imunidade de grupo. Qual será a tendência? A de fechar as fronteiras aos que vêm dos países pobres, para nos protegermos. Junte-se isto com a pressão migratória por causa das alterações climáticas e a crise social e económica à escala global, e tudo se vai desenhando para construir uma distopia política onde navegarão as mais sinistras criaturas. Há coisas inevitáveis. Outras, resultam de escolhas que fazemos agora. Nós escolhemos proteger o condomínio.»
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23.12.20
Mais ricos, mais pobres
«1. A pandemia trouxe uma crise económica e social como nunca se viu. Centenas de milhões de pessoas foram atirados para a pobreza. Muitos conheceram a fome pela primeira vez. Também em Portugal.
Mas, para um punhado de gente, este foi um ano de festa. Conta o jornal britânico "The Guardian" que, entre março e novembro, dez dos homens mais ricos do Mundo acrescentaram ao seu património cerca de 450 milhares de milhões de dólares. Números para lá da nossa capacidade de entendimento. A Oxfam (organização não governamental que combate a desigualdade e a pobreza) usa referências mais terrenas: se as 651 pessoas mais ricas dos EUA entregassem agora três mil dólares a cada um dos 330 milhões de habitantes do seu país, para os ajudar a ultrapassar as dificuldades causadas pela pandemia, continuariam a ser mais ricas do que já eram em março passado. Podemos esperar sentados. Ou podemos exigir a quem nos governa (em Portugal e na União Europeia) que tome medidas que acabem com esta acumulação pornográfica.
2. Basta abrir a página da Unicef Portugal para um pequeno vislumbre do que está do outro lado do espelho: 47 milhões de crianças já se encontravam gravemente subnutridas antes da pandemia, outros 54 milhões vão somar-se a esta indignidade por causa da pandemia. No Iémen, há dois milhões de crianças com menos de cinco anos que precisam de ajuda humanitária urgente. Morre uma a cada 10 minutos devido à falta de comida e a doenças que podiam ser evitadas. Em Cabo Delgado, Moçambique, há agora 250 mil crianças ameaçadas de subnutrição e doenças mortais, em centros de acolhimento temporários e sobrelotados. Não vale a pena contar com a filantropia dos multimilionários para ajudar a resolver estes e outros dramas. Mas se quiser dar uma prenda de Natal, há para todas as bolsas: por 4,43 euros oferece 12 vacinas contra o sarampo; com 48,76 euros garante 150 saquetas de alimento terapêutico; se chegar aos 164,89 euros, dá um kit escolar com material para uma sala de aula, um professor e 40 crianças.»
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22.12.20
O Natal do presidente
Marcelo Rebelo de Sousa explicou ontem, em entrevista à TVI, que terá quatro refeições com diferentes grupos da sua família. Ou seja, será o elemento que vai rodar por esses diferentes grupos, exactamente uma das opções que as autoridades de saúde, aquém e além Pireneus (e creio que até o nosso primeiro ministro), têm dito que deve ser evitada. Porquê? Porque se se desse o caso de ele estar infectado sem saber, ou vir a sê-lo logo no primeiro almoço, arriscava-se a contagiar mais de vinte pessoas. Bela sugestão para os portugueses!
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Burnout
«Percebi que me estava a acontecer quando os dias bons passaram a ser piores do que os dias maus. Percebi que não dava para fingir mais, quando já rigorosamente nada me tirava a vontade de chorar. Passei do não saber o que era ansiedade para ter ansiedade de manhã à noite. Quando percebi que toda a gente me irritava, percebi que o problema era eu. Sabia que o trabalho me estava a fazer mal, e no entanto, só no trabalho me sentia menos mal. Atraído pelo meu abismo, prometi a mim mesmo que não quebrava, e quebrei.
Tenho feito com as minhas palavras o que sempre fiz. Usá-las para salvar vidas. Aproveitar os meus sentimentos mais nobres, mais empáticos e mais recheados de compaixão com o eco dos que me rodeiam e escarrapachá-las no papel para que percebam a dimensão do desafio. Pode ser redundante para os que me são próximos, mas eu já vi muita merda. Sei o que me move. É das poucas coisas que eu sei. Já tinha estado próximo do burnout por duas vezes na minha vida, em 2011 e em 2019, no Paquistão e no Iémen, respectivamente. Eu sou duro de emoções, mas há ali um momento, ou momentos, em que a exaustão toma conta de nós. E quando sentimos que já não conseguimos desligar dos doentes, somos nós os doentes.
Por muito menos, encontrei o burnout. Por muito menos trabalho, por muito menos intensidade de trabalho, e por muito menos vidas que me morreram nas mãos do que vi noutras circunstâncias, encontrei o meu limite. Ainda estou a tentar perceber os porquês, e também por isso eu escrevo, para me ajudar a pensar e desconstruir o que me fez quebrar.
Acho que foi a responsabilidade, as dores físicas que são grande parte do problema, mas também a maldade alheia, a solidão, a intensidade das emoções dos que comigo trabalham, a exigência que pus em mim próprio e a representatividade de quem ninguém me pediu, mas pelos quais eu faço tudo. A vontade de não falhar, de ser correcto, de fazer a coisa certa, de estar à altura dos meus companheiros e do desafio asfixiou-me.
Acho que assumi demasiadas lutas. A luta pelos doentes, e a luta pela opinião pública. Sei que ambas são fulcrais. Sei que ambas se entrecruzam. Sei que uma guerra se ganha no coração das pessoas. E fui na minha ingenuidade tentar explicar o óbvio. Tentei sempre comunicar pela positiva, e acreditem que não é fácil resistir a não responder na mesma moeda aos que ao meu nome colaram insultos.
Eu sobrevivi emocionalmente à dureza de ter companheiros/amigos raptados pelo Estado Islâmico, já sobrevivi à tortura de olhar todos os dias para a cara de um rapaz que morreu por politiquices entre médicos, na República Centro-Africana. Chorei muitas vezes, mas sobrevivi emocionalmente. E ainda não consegui perceber muito bem porque é que desta vez não sobrevivi.
Aos que gritam “liberdade” e pelos doentes “não-covid”, eu convido-vos primeiro a deslocarem-se a um hospital central e a apresentarem alternativas. E se continuam a achar que o vírus não é assim tão mau e que mata só velhinhos já quase mortos, eu convido-vos a vir comigo e escolher quem é que deixamos morrer à porta do hospital? Até podemos fazer assim: eu tomo as decisões que tenho mais saberes para isso, mas vocês vão olhá-los nos olhos e dirigi-los para um espaço qualquer, talvez um barracão, onde os deixamos a morrer. Querem exercer a vossa “liberdade” para fazer isso? Se sim, força. Se não, não peçam aos médicos que toda a vida se bateram por fazer o melhor por todos os doentes, para o fazer. Não peçam.
Os problemas tomaram conta de mim. A raiva, a angústia de ver cada vez mais doentes a chegar, os profissionais cada vez mais exaustos, e a opinião pública cada vez mais decidida a falar do que não sabe. Quando me parece tão óbvio que “falar do que não se sabe” em tempos de crise cria confusão, entropia, hesitação e mais angústia. E angustiado fico eu por sentir que tenho uma palavra a dizer pelos doentes que vejo a morrer nas minhas mãos, pelas famílias que sinto a sofrer ao telefone, e pelos profissionais de saúde que estão a ser triturados. Querem liberdade? Então digam para onde mandamos para morrer os doentes que podem ser os vossos pais ou as vossas mães.
Sinto as coisas muito a peito, deixei-me levar pela luta. Fui sugado pela tristeza de ver a luta legítima pela insegurança económica de tantos, com a contaminação da extrema-direita e dos negacionistas, todos no mesmo palco. Como se fosse justo, colocar num campo de batalha os profissionais de saúde que estão a dar o litro para salvar vidas, e os legitimamente desesperados porque perderam emprego. São lutas diferentes. E só o rigor na luta pela pandemia nos permitirá respirar ar puro mais cedo. Está a acontecer em todo o mundo, não é culpa do nosso governo. Já sei que no final é tudo política, mas não tornem política a luta pela saúde pública, pelo amor da vossa saúde.
Há dias cheguei ao hospital “pronto” para trabalhar 24 horas nos Cuidados Intensivos a uma intensidade que nunca vimos antes, e uma colega ao olhar para as minhas olheiras perguntou-me se eu estava a sair de noite. Já não durmo direito há muito tempo, e quando me perguntam o que me faz feliz, dá-me vontade de chorar. Privei-me de quase tudo para estar apto para trabalhar. Aguentei as minhas dores até onde pude, pelos doentes, pela minha equipa, e por todos que fizeram de mim médico. E por esses, eu prometo que vou voltar mais forte, para quando outro quebrar eu poder dar um bocado mais de mim. É certo que vamos ser muitos a quebrar. Talvez os mais duros, talvez os a quem mais se pede, talvez os que mais sentem. Há muita gente nos hospitais a chorar e mais ainda a esconder as lágrimas.
Não há vencedores nesta luta em que estamos todos a perder. Há a luta contínua por um mal menor. Tenho-me alimentado de palavras incríveis de pessoas incríveis que sei que partilham dos ideais de quem quer o melhor para todos. Ao telefone, quando ouço os familiares a engolir as lágrimas e a dizer “Muito Obrigado”, fico eu com lágrimas de querer fazer melhor. “Eu só quero é que vocês tenham muita força!”, e eu prometo-lhes que sim, querendo acreditar que é verdade, mas agora sabendo que menti, porque não fui capaz.
No meu dia de anos, uma mãe deu-me a honra de conhecer o seu filho Francisco que já não está entre nós. Prometi-lhe o melhor de mim pela honra e inspiração que me concedeu. Sinto que estou a falhar ao mundo inteiro, menos à minha consciência. Nunca foram as palmas à janela que nos motivaram, é o saber que estamos a fazer a coisa certa, é saber que estamos do lado certo da luta. Fazer a coisa certa, será assim tão difícil de compreender?
Vou-me afastar do hospital para me proteger porque já não aguento mais, mas morro de angústia pelos doentes a quem podia ser útil, e pelos meus colegas por estar a sobrecarrega-los quando já estamos todos tão cansados. Infelizmente não tenho outra saída se não tomar conta de mim, para em breve poder voltar a tomar conta dos outros.
Prometo voltar.
(E voltei. Este texto foi escrito a 22 de Novembro após trabalhar 24 horas e me retirar para me tratar. Hoje, dia 21 de Dezembro, chego a casa após o meu regresso ao hospital com 24 horas de trabalho nos Cuidados Intensivos completas. Consegui, e estou muito feliz por voltar à luta. Queria dedicar o meu esforço aos meus companheiros de trabalho por me protegerem à custa da sua sobrecarga e da sua exaustão, e em nome deles e de todos que estão exaustos decido publicar estas palavras. Queria agradecer à minha fisioterapeuta e à minha psicóloga por terem pegado em mim pela mão, como se faz a uma criança para atravessar a rua, nesta que foi uma das travessias mais difíceis da minha vida, e claro à minha mãe que me ensinou que só vale a pena olhar para o mundo se for com o coração. Obrigado.)
Este é o maior desafio das nossas vidas. Abram os vossos corações.»
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21.12.20
E pachorra para isto?
Começo a ler nas redes sociais, e por pessoas que deviam ter alguma contenção, que o estrondo provocado pelo recente anúncio da nova versão do vírus no Reino Unido não é mais do que uma manobra inventada por Boris Johnson para desviar as atenções do falhanço nas negociações sobre o Brexit, já que a circulação do vírus em questão já era conhecida há três meses e foi escondida.
Creio é que temos por cá uma variante, ainda não identificada, que ataca especialmente neurónios.
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Sol na eira, chuva no nabal
«Os duros impactos económicos da pandemia e o cheiro à entrada de um significativo volume de dinheiro, vindo da União Europeia, começa a aquecer o fósforo na cabeça de alguns dirigentes de organizações patronais, precipitando-os num chorrilho de contradições.
Nas últimas semanas, vêm afirmando, simultaneamente, que o principal problema das empresas portuguesas é a falta de procura; não estamos em tempo de crescimento do salário mínimo nacional; o país não pode continuar a endividar-se; as empresas precisam de mais apoios; a carga fiscal é exagerada. E vão dizendo também aquela verdade de senso comum: "O dinheiro não cresce nas árvores". Afinal em que ficamos?
Deixando de lado a análise sobre onde nasce o dinheiro e como lhe é deitada a mão, direi que é muito importante os nossos empresários colocarem a falta de procura no topo das preocupações. Estamos numa crise sincronizada à escala global, fruto das caraterísticas da pandemia e das respostas (no mínimo complexas) que vão sendo dadas e, também, porque se tornaram evidentes outros perigos que nos rodeiam. A aposta nas exportações - que de forma alguma deve deixar de ser considerada - perspetiva-se como muito limitada por um período indefinido, e as cadeias de valor vão ser sujeitas a mudanças. É, pois, necessário dar redobrada atenção à procura interna. Isso implica reforço do valor dos salários e de outros rendimentos, encontrarem-se mais atividades úteis que propiciem emprego, evitar desemprego, garantir meios financeiros para o Estado, reforçar investimento público e privado.
Uma outra contradição tem a ver com a crença de que a liberdade de iniciativa e a maximização do lucro tudo resolvem na economia. É esta tese que enforma os cenários avançados pela Direita quando discutem processos como o da TAP, dos CTT e de outras empresas. Com base naquela crença e na pretensa autossuficiência empresarial, pretende-se, agora, caminho limpo para colocar o dinheiro nos acionistas das empresas, no pressuposto de que a sua ciência garante negócios lucrativos, e que daí resultará a resolução de todos os problemas da sociedade. Esta via é comprovadamente desastrosa.
Há que não desperdiçar tempo, mas é indispensável planificação e estudos sérios (feitos pelo Estado, universidades e empresas) com a perspetiva crítica que um contexto de mudanças impõe. Sem planeamento arriscamo-nos ao desperdício de recursos. Será perigoso desviar investimentos para segmentos mais voláteis e expostos a choques externos, para áreas que não puxem pela economia, ou para setores com reconhecido interesse nacional, mas de reduzido valor acrescentado.
As opções têm de ser integradas numa estratégia de desenvolvimento do país, onde se consideram não apenas no objetivo do lucro caso a caso, mas sim, nomeadamente, o emprego direto e indireto e a sua qualidade, a utilização de capacidades e interesses das regiões e o interesse das populações. Veja-se o caso do hidrogénio onde, se a prioridade for dada às preferências do mercado, teremos o mercado externo a ser favorecido, Portugal a transformar-se num mero produtor de um "novo crude" e as nossas carências energéticas sem solução.
O setor privado tem necessidades e interesses próprios, todavia partilha responsabilidades com toda a sociedade. Não pode querer sol na eira e chuva no nabal.»
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20.12.20
12:59, à porta do Fonte Nova em Lisboa
Pode alguém viver sem comprar chouriços antes de se confinar às 13h? Aparentemente, a resposta é «Não». E podem estas barracas levantar arraiais um minuto mais tarde, como são obrigadas a fazê-lo? Claro que também não.
Siga o baile, as Emergências já foram chão que deu uvas.
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SEF: é preciso mudar tudo
«Já quase tudo foi dito sobre o bárbaro assassinato de Ihor Homenyuk nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto de Lisboa, às mãos das autoridades portuguesas. Além da punição exemplar dos torturadores, das condolências e da indemnização à família, é preciso questionar profundamente o modelo político de acolhimento que temos e a estrutura institucional que permitiu que este crime ocorresse. Deixo quatro notas para esse debate urgente.
1.Parece que se está a chegar finalmente a um consenso sobre o absurdo que é tratar a relação entre o Estado e as pessoas migrantes como se fosse uma questão de polícia, em que pessoas que não cometerem qualquer crime podem ser detidas, privadas de liberdade sem qualquer garantia de apoio e proteção jurídica, e submetidas a todo o tipo de arbitrariedades, humilhações e agressões. Há anos que é assim e não faltaram denúncias das associações de direitos humanos e da Provedora de Justiça sobre o tema. Não basta, pois, encerrar estes “centros de instalação temporária” nos aeroportos, nem basta garantir – coisa que aliás devia ter sido assegurada desde sempre - o acesso imediato a advogados nos aeroportos. Pequenas adaptações humanizadoras do modelo policial não chegam. É preciso acabar definitivamente com a ideia de que a relação entre os imigrantes e o Estado português é estabelecida através de uma polícia (tratando as pessoas, à partida, como criminosos em potência) e não de uma autoridade administrativa.
2.O caso de Homenyuk não é um caso isolado, embora nem todos os abusos e maltratos nos Centros de Instalação Temporária tenham tido consequências tão trágicas. Além disso, os disfuncionamentos do SEF não são apenas nestes centros. Milhares de imigrantes que trabalham em Portugal e fazem os seus descontos para a Segurança Social ficam anos à espera de ver os seus documentos emitidos. Ao longo dos anos privilegiou-se o reforço do corpo policial, em lugar de se ter apostado em reforçar o pessoal administrativo. Esta decisão fez com que hoje em dia seja quase impossível obter uma marcação, o que deixa milhares de pessoas sem acesso aos documentos mais básicos. Ao SEF faltam meios, mas abunda, também na componente administrativa, uma incompreensível arbitrariedade e injustiça.
Portugal deve ter uma polícia para investigar as redes de tráfico e essa é uma boa missão para o SEF, em relação à qual não falta o que fazer. Basta pensar, por exemplo, na dimensão do trabalho forçado na agricultura nos campos do olival intensivo do Alentejo, ou nas vindimas, a norte. Essas missões de investigação e combate às redes de tráfico e exploração, para as quais não basta a atuação da Autoridade para as Condições de Trabalho, precisam de mais meios e de um corpo profissional com a experiência que equipas do SEF acumularam. Por outro lado, existe uma dimensão policial do controlo da fronteira que o Estado assegura. Mas o acolhimento de migrantes e de requerentes de asilo não é competência para uma polícia. Como não o é a renovação dos vistos ou autorizações de residências, que têm de ser feitas nas mesmas lojas dos cidadãos ou conservatórias onde qualquer cidadão português renova o seu cartão de cidadão. Lidar com uma polícia para assuntos administrativos é um absurdo que tem de ser definitivamente eliminado. Esperemos que seja desta.
3.Infelizmente, a discriminação, a xenofobia e a violência racista não são casos isolados nas polícias portuguesas. A Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância tem produzido relatórios em que acusa explicitamente a hierarquia da PSP e a Inspeção-geral da Administração Interna de serem tolerantes ao racismo, apelando mesmo a que estes organismos parem de “relativizar a violência grave” contra as pessoas racializadas e migrantes, bem como a “pôr termo ao sentimento de impunidade que prevalece entre os seus agentes”. Este organismo do Conselho da Europa tem insistindo que o Estado português deveria por em marcha uma política de tolerância zero relativamente ao racismo nos seus serviços. O SEF tem sido também objeto de várias denúncias deste tipo de comportamentos de violência racista, encontrando-se alguns sob investigação pelo Ministério Público. A morte de Homenyuk não foi, infelizmente, um mero acidente de percurso em instituições que seriam exemplares.
Também por isso, a proposta de Magina da Silva, no encontro com o Presidente da República, de fusão do SEF e da PSP numa grande polícia nacional é duplamente disparatada. Em primeiro lugar porque não cabe ao chefe da PSP anunciar decisões políticas desse tipo, por mais que sonhe em liderar uma super-polícia com um corpo militarizado. Em segundo lugar, porque isso tenderia a reforçar o próprio modelo policial na relação com os estrangeiros, o que é um erro absoluto. Não é a primeira vez, aliás, que Magina da Silva brinda o país com um discurso irresponsável de pistoleiro, como quando defendeu a compra de carros blindados como os que foram usados na Guerra do Iraque para intervir nos “bairros de risco”. É exatamente deste tipo de discursos que precisamos de nos libertar.
4.A reação das instituições ao assassinato de Ihor Homenyuk esteve muito aquém do exigível. O Presidente da República, conhecido pela abundância dos seus telefonemas e notas de felicitação e condolências, utilizou a esfarrapada desculpa de não querer “interferir na investigação” para justificar não ter tido uma palavra para a família do cidadão ucraniano assassinado por agentes do estado português. A direção do SEF esteve meses sem assumir que havia responsabilidades, parecendo mais empenhada em encobrir o sucedido do que em ser motor de uma transformação profunda na instituição. E o Ministro da Administração Interna – que, reconheça-se, abriu de imediato um inquérito e processos disciplinares aos envolvidos – não contactou a família, resistiu meses a pagar a indemnização e só por arrasto e sob altíssima pressão política e mediática substituiu a direção do SEF (cuja saída foi, no entanto, apresentada como “voluntária”) e anunciou uma reestruturação cujos contornos são ainda desconhecidos.
Este caso trágico, contudo, tem de ser a oportunidade para mudar tudo no SEF. O modelo de relacionamento do Estado com as pessoas migrantes e refugiadas não precisa de uns remendos ou alterações cosméticas. Tem de ser integralmente substituído. E haverá pouco quem acredite que Eduardo Cabrita tem ainda condições para conduzir tal empreendimento.»
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