4.5.17

Convidada: JOANA LOPES



Vizinhos da blogosfera convidaram-me a escrever um texto para o «Delito de Opinião». Escolhi recordar uma das minhas viagens e aqui fica para quem estiver interessado num resumo do que vi e vivi quando fui à Etiópia.

Por terras da Abissínia

Ser turista é limitativo, eu sei. Preferia ser «viajante», sem prazos nem restrições físicas e financeiras, mas não é possível. Turista portanto me assumo e, como tal, tenho tentado conhecer um pouco dos cinco continentes deste pequeno mundo.

Preguntam-me, frequentemente, qual foi a minha viagem preferida, ou o «top 5» das que já fiz, mas deixei de ser capaz de responder. Escolho uma, sem lhe atribuir nenhum privilégio, mas porque me marcou de um modo especial. Talvez por ter nascido em África, talvez porque é o continente que menos conheço.

Há quatro anos passei duas semanas na Etiópia, pouco mais do que nada para ficar com ideias vagas sobre o segundo maior país africano em extensão. Parecia então ser um oásis naquele Corno de África, entre vizinhos em permanente conflito, e centro de onde irradiavam esperanças de conciliação e de progresso. Tristíssimo que tenha chegado a sua vez de contrariar expectativas, esperemos que não por muito tempo.

Percorri algumas centenas de quilómetros onde quase tudo é totalmente verde e fértil, com montes e vales bem cultivados (o celeiro etíope) e milhares de cabeças de gado que tornam o país praticamente autossuficiente em termos de alimentação. Mas falta tudo o resto e a pobreza é por isso extrema, as estradas e muitas outras infraestruturas são quase inexistentes ou muito rudimentares. Como mais do que rudimentares são os instrumentos usados na agricultura, numa terra onde «quem trabalha são as mulheres e os burros» – burros que são mesmo um ícone, tão grande é a sua quantidade, tão importantes as funções que exercem como meio de transporte de pessoas e de mercadorias.


O país depende cada vez mais de investimentos chineses e turcos, exporta algodão e têxteis, carne de várias espécies animais e, evidentemente, café. Aliás, reza a lenda ou a História (nem sempre é fácil perceber-se em que plano se está exactamente) que foi aqui que o café foi descoberto. Como? Uma cabra ter-se-á mostrado tão excitada depois de comer repetidamente a respectiva planta que os donos decidiram seguir-lhe o exemplo, descobrindo assim as suas potencialidades. A Etiópia é governada há quase trinta anos praticamente em regime de partido único, com as inevitáveis consequências em termos de corrupção, e a moeda nacional é tão fraca que tudo o que tem de vir do exterior tem um peso difícil de suportar. Em todo o caso, aparentemente vai-se (ou ia-se?) progredindo, por exemplo através de um interessante e muito louvável sistema de cooperativas. E, ao contrário dos vizinhos da Eritreia e da Somália, tem sido raro que multidões de etíopes fujam por essa África abaixo para se afogarem às portas da Europa.

Há também um povo altivo, orgulhoso da sua etnia («a Norte temos os árabes, a Sul os negros, nós estamos no meio»); orgulhoso também pelo facto de nunca ter sido verdadeiramente colonizado e de ter uma História rica, sem fronteiras muito nítidas que a separem de um extenso conjunto de lendas – uma realidade estranha, mas fascinante, para as nossas cabeças cartesianamente formatadas.

Axum, no Norte, é um paraíso para os arqueólogos, tantos são os rastos de civilizações antiquíssimas já descobertos e os muitos que há ainda por explorar. Conta a lenda que um filho de Noé, pai de todos os povos de pele castanha, era avô de Etiopos que foi enterrado em Axum e deu o nome a todos os habitantes do país. Seja como for, sabe-se hoje que as origens da civilização etíope remontam o século X a.c. Os etíopes reivindicam ter em Axum a «verdadeira» Arca da Aliança e «veneram» a rainha de Saba que, segundo as crónicas, teria regressado de uma viagem a Jerusalém grávida de um filho do rei Salomão, criança que viria a ser o célebre rei Menelik, fundador da dinastia Salomónica que perduraria na Etiópia até ao século XX e a ter, como último representante, o imperador Haile Selassie (tio avô de um dos elementos da troika que por aqui andou…).

Há também a Cidade Imperial de Gondar, um conjunto de seis castelos construídos seguindo técnicas introduzidas pelos portugueses no século XVI, implantados numa grande cerca que chegou a ter doze portas. E, acima de tudo, as igrejas de Lalibela, a «Nova Jerusalém» da Etiópia, cravada numa região árida e agreste. Não há palavras que possam dar uma ideia, mesmo que aproximada, do que são esses doze templos, escavados na rocha e em muitos casos ligadas por túneis, distribuídos por dois conjuntos separados por um rio, estando fisicamente afastado o décimo primeiro: último a ser construído e o mais espectacular, com a sua forma em cruz, enterrado, e com quinze metros de altura. As escavações começaram em pleno século XII e todo o conjunto foi construído em apenas vinte e quatro anos, o que é quase inacreditável! Terão estado implicados nas obras, usando instrumentos mais do que rudimentares, 40.000 homens e conta a lenda que trabalhavam enquanto havia Sol e que os anjos faziam o turno da noite… As igrejas de Lalibela, Património da Humanidade segundo a UNESCO, são um dos grandes motivos de orgulho dos etíopes – e com toda a razão.


Não falei de Addis Abeba? Nada de especial a assinalar, a não ser dois museus e um gigantesco e caótico mercado que tem nada menos do que 103 hectares e onde se vende tudo o que imaginar se possa.

Gostava de voltar à Etiópia? Talvez, mas é pouco provável. Até porque repetir viagens não é a minha praia: temo que não haja amor como o primeiro. 
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