23.3.24

Candelabros

 


Candelabro em ouro e cobre, 1897.
Arquitecto, pintor e «designer»: Richard Riemerschmid.

Daqui.
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Democracia para o lixo

 

«E o país segue, indiferente à forma indecorosa como, mais uma vez, os emigrantes foram tratados, dois anos depois das trapalhadas pós-eleitorais que resultaram em impugnações, clamor coletivo e zero consequências.

PS e PSD são os maiores responsáveis. Não é admissível que não tenha sido encontrada uma forma de os emigrantes poderem votar umas semanas antes do dia formal da eleição, não atrasando, com isso, a formação do novo Parlamento. E não é sobretudo entendível que, mais uma vez, milhares e milhares de boletins desses portugueses que querem continuar a exercer a sua cidadania ativa longe do seu país tenham pura e simplesmente ido parar ao lixo. »

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'Left in the wilderness'

 


«Ao contrário do que por aí se diz, nem sempre o descontentamento desagua em formas de protesto, seja em voto ou manifestações de rua. Na verdade, o descontentamento só se transforma em protesto se alguém o politizar. É sempre necessário que alguém avance e seja capaz de o descrever, de identificar causas e culpados, propor soluções e mudanças, liderar a forma como o protesto irrompe. Por isso, e porque a politização não é toda igual, a questão central da política é sempre quem é que politiza o sentimento de mal-estar que se pressente na sociedade.

A meio da década passada era possível desenhar uma geografia do protesto social que tinha diferenças importantes na Europa. As reações populares às diferentes receitas e doses de austeridade impostas após a grande crise financeira de 2008 exibiam sinais políticos contrários. No norte e centro europeus, crescia o populismo de direita, tingido de racismo e xenofobia. Da Finlândia à Holanda, passando pela Alemanha e o seu reforço em França, assistimos ao crescimento eleitoral dos partidos de extrema-direita. No sul da Europa, pelo contrário, era no campo político da esquerda que o protesto nascia. Em Espanha, logo em 2011, assistimos à explosão do movimento de rua do 15M, protagonizado por jovens e que veio a desaguar na formação do Podemos. Na Grécia, o Syriza tomava dianteira na esquerda depois do colapso do centro-esquerda do PASOK e ganhava as eleições em 2015. E também em Portugal, em 2016, a esquerda transformou em votos a onda de protestos que agitaram os anos do governo da troika e, na sua sequência, a “esquerda à esquerda” dos socialistas participou pela primeira vez no suporte a um governo em quase 50 anos de democracia constitucional.

A interpretação do cisma do protesto na Europa era que a Sul ainda se guardava a memória dos regimes autoritários que aqui vigoraram até ao último quartel do século XX e prevalecia uma tradição de mobilização ancorada à esquerda, que foi quem os combateu. A esquerda parecia ainda deter as organizações sociais e as sociabilidades capazes de politizar e organizar o protesto social. Essa rede de pertenças e organizações vinha de trás – da tradição dos sindicatos, das organizações culturais, das vivências partilhadas nos locais de trabalho e nos bairros residenciais. A esquerda entranhava-se numa cultura popular. Ela era parte dessa mesma cultura popular no quotidiano que vinha de um tempo com menos canais de televisão, menos ofertas culturais no “mercado”, e em que não havia nem internet, nem redes sociais.

Em 2018, quando os coletes amarelos irromperam nas ruas de França, o mais surpreendente era o sinal percetível de uma imensa raiva popular, mas que desta vez não se ancorava nas organizações sociais de esquerda. Quem acompanhou essa explosão notava a novidade de um protesto de rua algo disperso, incoerente na sua agenda política, mas pela sua significativa violência no espaço público parecia bastante permeável à infiltração da extrema-direita. Subitamente, e contra a tradição europeia do pós-guerra, parecia ser a direita a ser capaz não apenas de politizar o mal-estar popular, mas de assumir explicitamente a radicalização dos protestos nas ruas.

Por cá, ainda houve quem tentasse uma mobilização semelhante. Foi um absoluto flop. Apesar de alguns milhares de “likes” nas redes sociais e das câmaras de televisão fazerem “diretos” da manifestação, apenas umas dezenas de pessoas se concentraram nesse dia no Marquês de Pombal em Lisboa. Mais recentemente, o Chega tentou lançar também protestos na rua, mas agora em versão de ameaça e intimidação ao pluralismo democrático, ao tentar cercar a sede de uma força partidária, o PS. Falhou estrondosamente.

A mudança eleitoral de 10 março, contudo, coloca-nos hoje duas questões. Primeiro, não sabemos bem o que seria agora uma convocatória deste tipo, de tão inebriados nos parecem os apoiantes da extrema-direita pelos resultados nas urnas. Segundo, a questão não é se a esquerda deixou de apontar as causas, os culpados, as soluções em relação aos problemas sociais das camadas populares, ou até de ter organizações capazes de polarizar o protesto. O que parece ter perdido é o ingrediente central da construção de um bloco social – o enraizamento na cultura popular e a presença nos espaços do quotidiano em que se faz socialização, se criam pertenças e se opera a politização. A esquerda bem pode dizer que o mal viver tem a sua origem na contenção salarial que prevalece quase uma década e meia depois da aterragem da troika; ou que os serviços públicos sofrem por falta de investimento. A narrativa da extrema-direita tornou-se mais forte para contar a história do presente e aponta outros culpados: as transformações sociais, as mudanças nas identidades; os novos fluxos migratórios; as “raças” e os pobres que merecem castigo.

Sabemos que as redes sociais e a comunicação social têm uma enorme importância na formação de opiniões. Sabemos que a presença da extrema-direita nas redes é financiada por interesses poderosos e empresários endinheirados. Sabemos do fascínio da comunicação social pelo culto do insulto e do disparate da extrema-direita. E sabemos que todos estes espaços são governados pela lei de que quem paga, manda. O que implica que nesses espaços a esquerda está sempre em desvantagem. Para contrapor a esses poderes fáticos, a esquerda tem de reinventar a sua presença na vida dos segmentos populares e entrar pelo seu quotidiano adentro. Já o fez em condições bem duras – contra a censura, a polícia política, as prisões e a violência do Estado Novo. Está na hora de se reinventar e organizar para essa politização. Se não fizer, estará perdida.

(PS: o título da crónica foi indecorosamente “roubado” a um excelente livro do Noel Thompson)»

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22.3.24

Um belo vaso

 


Vaso Val Saint Lambert, Bélgica, cerca de 1927.

Daqui.
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C’est la vie

 

«No nosso caso, o ontem foi há 50 anos e a célebre pergunta de Baptista-Bastos: “Onde é que estava no 25 de Abril?” arrisca-se a ser brevemente trasladada da TV para os cemitérios, equiparando-se, mais e mais, à hipotética pergunta: “Onde é que estava no 5 de Outubro”. C’est la vie.»

«No nosso caso, o ontem foi há 50 anos e a célebre pergunta de Baptista-Bastos: “Onde é que estava no 25 de Abril?” arrisca-se a ser brevemente trasladada da TV para os cemitérios, equiparando-se, mais e mais, à hipotética pergunta: “Onde é que estava no 5 de Outubro”. C’est la vie.»

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Alfredo Cunha, 25 de Abril (12)

 


«Amigos

A partir de agora, recomeço a publicar, na medida do possível, fotografias relativas ao livro "25 de Abril de 1974, Quinta feira". Espero que gostem tanto como eu gostei de o fazer.»

Alfredo Cunha no Facebook.
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O elefante na loja da estabilidade

 

@João Fazenda 

«O Presidente da República adora estabilidade. Sempre que dissolve o Parlamento, é em nome da estabilidade. Quando envia um recado pela imprensa, sem dizer que é ele mas de modo a que toda a gente perceba que é, fá-lo em nome na estabilidade. A estabilidade está sempre acima de tudo. Por exemplo, a única maneira de obter estabilidade era convocar eleições. Mas a ânsia por estabilidade é tal que o Presidente começou a reunir com os partidos ainda antes de serem conhecidos os resultados das eleições. É o equivalente a dizer: não há nada para comer, e por isso tenho de ir ao supermercado, mas vocês comecem a jantar antes de eu chegar com as compras. Isto depois de ter dissolvido o frigorífico, que estava cheio. E de ter dito ao Expresso que o supermercado devia ter as prateleiras organizadas de outra maneira. Pugnar pela estabilidade dissolvendo parlamentos e enviando recados pelo jornal é como proteger o sono das pessoas andando pela cidade entre a meia-noite e as oito da manhã a gritar: “Tudo calado, por favor! Que ninguém pense em fazer ruído! Há gente a dormir! Pouco barulho! O silêncio é muito importante!”

Creio que as diligências de Marcelo vão acabar por resultar. Em primeiro lugar, se o plano é fazer com que os portugueses partilhem o seu amor pela estabilidade, o objectivo foi conseguido. Julgo que, por causa de Marcelo, todos damos muito mais valor à estabilidade. Em segundo lugar, o país está, de facto, cada vez mais estável. A nossa democracia parece, aliás, caminhar para um estado de estabilidade sem precedentes, como aqueles pacientes que, após alguns percalços médicos, ficam finalmente estáveis. E é altura de os levar para a morgue.

Tenho pensado muito naquela velha anedota judaica. Um judeu está na sinagoga a rezar: “Senhor, por sermos o Teu povo escolhido já sofremos perseguições, pogroms, o Holocausto... Importas-Te de escolher outro povo, agora?” Creio que, tendo testemunhado todo o esforço que Marcelo tem feito em nome da estabilidade, é possível que os portugueses gostassem que, nos próximos tempos, o Presidente descansasse um pouco. Adorámos a estabilidade, sr. Presidente. Vamos agora experimentar um bocadinho de caos, só para percebermos a diferença.»

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21.3.24

Templos

 


Templo de Hator (1500-2250 a.c.), também conhecido como Tentyris, Complexo do Templo de Dendera, Kina, Egito.
A estrutura actual remonta ao período ptolemaico (30-305 a.c.) e foi concluída pelo imperador romano Tibério (14-37 d.c.), mas acredita-se que as suas fundações remontam pelo menos ao reinado do faraó Keops (que morreu em 2566 a.c.).

Daqui.
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Um pouco mais de azul (5)

 



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Montenegro: de “marca branca” a “kinder surpresa”

 


«Se o PS tivesse conseguido mais um ponto percentual teria vencido as eleições e toda a nossa grelha de análise seria muito diferente. E se é inevitável que ela seja diferente para falar do futuro, não faz grande sentido, pela pouca diferença entre a AD e o PS, que mude a forma como falamos sobre o que nos trouxe até aqui.

Temos debatido a perda de meio milhão de votos do PS depois de oito anos de poder, uma crise inflacionista que derrotou a generalidade dos governos europeus e a queda de um governo de uma maioria absoluta decepcionante por causa de umestranho caso judicial. Tirando o crescimento económico e o excedente orçamental (que tenderá a beneficiar o próximo governo, e essa é ironia de ver o PS bom aluno a ser castigado), tudo levava a esta derrota, até de forma mais expressiva. Extraordinário é que, apesar deste contexto político, PSD e CDS consigam, juntos, o pior resultado em percentagem da sua história e mais curta vitória de uma candidatura face a outra. O voto passou por cima das suas cabeças para o Chega e o responsável por esta proeza quase é tratado como um génio político.

Na realidade, há coisas surpreendentes de Luís Montenegro. E quando as coisas são surpreendentes tendemos a atribui-las a talentos misteriosos dos protagonistas. As pessoas do meio político e mediático sabem quem ele é: um político apagado vindo do aparelho partidário. Venceu no vácuo porque se julgavam que ele ia ser substituído primeiro e porque, quando era tarde demais para isso acontecer, decidiram mantê-lo no vácuo. Não teve qualquer mérito na queda antecipada do governo, que o salvou quando preparavam a sua execução política.

O confronto entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro foi o confronto entre um dos ministros mais escrutinados da nossa democracia e o primeiro-ministro eleito de que os portugueses algumas vezes menos souberam no momento de tomar posse. Reconheça-se a humildade de Luís Montenegro: ele próprio percebeu que o ideal era não existir, para vencer. Tirando o tático “não é não” (em que sempre teve pouca convicção de princípio), que apesar de ser óbvio depois de Rui Rio demorou a sair da sua boca, sua campanha não foi mais do que uma gestão de silêncios. Falar pouco, propor quase nada e fazer figas.

Se foi assim na política, foi assim na exibição da personalidade. Montenegro não existe. É uma espécie de marca branca da política, como eu disse durante a campanha eleitoral. Um bom exemplo é a curta entrevista “pessoal” que deu para um vídeo de campanha. Todas as respostas foram medidas ao milímetro para que ninguém acreditasse que o Luís pudesse ter vida própria. O prato preferido era o prato nacional, o cozido, mas do que mais gosta é das couves, para não chatear ninguém. Apesar de ter sido do Conselho Superior do FCP, o seu clube é o de todos nós, "Portugal, Portugal". O livro e o filme preferidos são “A Insustentável Leveza do Ser” e “O Silêncio dos Inocentes”, não fosse ler ou ver alguma coisa que alguém nunca ouviu falar. Na série e na música opta pelo revivalismo de má qualidade, juntando "Os três Duques" e "Viva lá Vida". A banda é a que enche estádios – os Coldplay. A viagem foi a casa do seu pai com os filhos, não fosse alguém achar que o dono do casarão em Espinho tem gostos caros. O objetivo de toda a campanha, das propostas ao perfil de inventou para si, era não ter rejeição eleitoral de ninguém. Não existir. E vai tomar posse sem, de facto, ter uma existência comprovada.

Na política é igual. Tudo o que sabemos sobre o que quer fazer no futuro é, para além de um choque fiscal baseado num cenário macroeconómico fantasioso, para os próximos meses: aproveitar a folga orçamental que lhe foi deixada para distribuir dinheiro, preparando-se para uma crise política que o possa levar rapidamente a votos. É esta e não mais do que esta a sua visão para o País. Para quem se queixava de António Costa, não se pode dizer que se tenha ficado a ganhar com a troca. Montenegro não tem um programa para os próximos meses, tem uma promoção para as próximas eleições.

Já se percebeu que enquanto PS e Chega são pressionados para garantir a estabilidade, ele vai ser, de novo, dispensado da pressão. O que está disposto a fazer para conquistar essa estabilidade? Ninguém lhe pergunta. E, no entanto, é ele que tem de ter arte para a conseguir, já que disse, vezes sem conta, que o governo anterior podia cair que ele estava pronto para governar. Foi o único a não antecipar este impasse?

Não sei se, nestes meses, a comunicação social vai fazer o que era suposto ter feito antes das eleições. Incluindo o esclarecimento de alguns casos mais complicados, como a estreita relação económica que manteve com a Câmara de Espinho. Sei que, ao ter deixado Luís Montenegro livre – quase sabemos mais sobre a avó de Mariana Mortágua do que sobre o novo primeiro-ministro –, não cumpriu o seu papel, e teremos um kinder surpresa à frente do governo.»

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Discriminação Racial

 


Hoje é também Dia Mundial da Poesia, Dia da Árvore ou da Floresta e Dia da Síndrome de Down. Já não há calendário para tantos dias de…
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20.3.24

Sandálias

 


As sandálias de ouro do rei Psusenés I (1040-992 a.c.), o terceiro rei da XXI Dinastia, que governou a partir da antiga cidade de San al-Hajar, Tanis. Salão de Antiguidades de Tanis, Museu Egípcio em Tahrir.

Daqui.
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Alfredo Cunha, 25 de Abril (11)

 


«Amigos

A partir de agora, recomeço a publicar, na medida do possível, fotografias relativas ao livro "25 de Abril de 1974, Quinta feira". Espero que gostem tanto como eu gostei de o fazer.»

Alfredo Cunha no Facebook.
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Barganha

 


«Esta viragem à direita é tudo menos inédita. Lembremo-nos do que foram os anos 1980, a cultura furibundamente antirrevolucionária, anticomunista e antidescolonizadora (que defendia a continuidade da dominação colonial e racial), numa reação contra a herança do 25 de Abril, que, também então, deu vitórias eleitorais à AD (1979-83) e a Cavaco na sua fase hegemónica (1987-95). Os 54,7% que toda a direita juntou agora em Portugal (sem contar com a emigração) é inferior aos somatórios de 1987 (55,6%) e 1991 (57,3%), e superam por pouco os 52,5% de 2011, com Passos Coelho. Todas aquelas direitas foram um dia derrotadas. E estas sê-lo-ão também. Demorará tempo, custará, como sempre, muito trabalho e muita luta, mas essa é a tarefa de quem, nas esquerdas, nos sindicatos e nos movimentos sociais, saiba juntar politicamente os milhões de nós que queremos defender democracia, direito ao trabalho, à saúde e à educação pública e gratuitas, à habitação, e liberdade. Ou julgarão eles que o 25 de Abril caiu do céu?!»

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Ela aí está

 



Zangados, demasiado zangados

 


«Andamos zangados. Zangados com os políticos, com as organizações, com o trabalho, com os vizinhos do lado e com os imigrantes – que, entretanto, já são vizinhos do lado. Até com os factos nos zangamos, porque não confirmam as nossas ideias feitas. Daí fugirmos para as redes sociais para sobretudo dizer mal de tudo – onde aqueles que cada vez mais reinam nos seguem os passos e indicam o caminho que querem que sigamos. E ali, no seu interior tudo é emoção: likes, ira, gargalhadas ou “adoro”.

Para sobreviverem, os meios de comunicação social acabam, por vezes, a fazer o mesmo: a entreter-nos, com interpretações exaustivas de informação que, essa sim e não as interpretações, é contabilizada ao segundo – e recordo-me, para o efeito, dos debates políticos. Chegamos ao dia da reflexão que precede o voto e raciocinamos com parangonas, sem justificação sólida, liquidificando as nossas conclusões. O que de mais importante há para a nossa vida não é sequer merecedor de tempo na economia devoradora da atenção. Bastam-nos os títulos dos jornais. O resto, dizemos, é “mais do mesmo”.

No meio de tudo isto, com informação compreensivelmente empobrecida e toda a liberdade para desinformadamente destilar veneno, “publicamos” a toda a hora. Falta-nos um virtuoso meio-termo na gestão do que temos à mão, capaz de evitar o radicalismo. Alimentamos assim um novo cenário. Existimos nós e do outro lado o “sistema”. Que é corrupto e nós impolutos. Tornámo-nos insolitamente santos morais.

Queremos tudo porque supostamente nada temos. Queremos um novo 25 de Abril. Queremos equivaler o 25 de Novembro ao 25 de Abril. Queremos fazer dos períodos de terror que se seguiram às revoluções – e penso não apenas em Portugal, mas até nos excessos pós-Revolução Francesa –, um terror maior do que aquele que lhes preexistia. Queremos revisitar permanentemente a História, como se aqueles que no momento a registaram tivessem em mente mentir aos que se seguem. E os negacionistas são os outros.

Falamos de desobediência civil como se ela não fosse uma figura-limite na contestação. Como se ela não tivesse consequências a médio prazo, até para a própria democracia, que pode resvalar para uma anarquia. Queremos novos heróis, mas, por favor, seja um qualquer outro que não eu o mártir – e nem nos apercebemos que um colectivo pode ser tanto ou mais esmagador porque inviabiliza o dia-a-dia de todos.

Quem luta, lembrando que “a luta continua”, porque de facto “quem adormece em democracia, acorda em ditadura”, é imediatamente rotulado como já parte do dito “sistema”. Dividimo-nos em movimentos esparsos e depois reclamamos dos outros, que sempre foram unidade, essa unidade que sempre foram. O individualismo reina, e por isso dividimo-nos, dizendo que é o poder e somente ele quem “divide para reinar”. Nem nos apercebemos que, não obstante a nossa boa vontade para resolver problemas, não nos integramos desinteressadamente. Confiando, simplesmente. Porque, pensamos, os que já cá andam nada sabem e nada fazem. Somos nós os donos da verdade. E santos morais, uma vez mais.

Emergem, entretanto, os vampiros da zanga. Que a alimentam e se riem à distância para depois a sugarem, criando exércitos que nos imporão uma obediência brutal – e aí sim, retornarão as figuras-limite da luta, como a de Salgueiro Maia que nos lembrou que “às vezes – e permito-me sublinhar este ‘às vezes’ – é preciso desobedecer”.

Parece, pois, que nada acontece por acaso. Estamos muito provavelmente a perder a razão. E se a perdemos é porque já a tivemos. Precisamos de aprender a viver com parte do que já temos, porque nem tudo está mal. Precisamos de nos zangar menos e aceitar mais, lutando contra factos de injustiça e não por preconceitos que a distorcem. Precisamos de lembrar aqueles que hoje escolhem o radicalismo que amanhã estarão eles na guerra – e já se fala novamente no serviço militar obrigatório. Não, não estamos no final da História, como Fukuyama julgou depois da suposta unificação do mundo com a queda do Muro de Berlim. Pelo contrário. Estamos a falhar como civilização.»

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19.3.24

Como se normaliza a direita radical?

 


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19.03.1968 – Mário Soares detido e deportado

 


Mário Soares foi deportado para S. Tomé, pouco depois de ter estado preso e incomunicável, durante três meses, pretensamente por ter fornecido a um jornalista do Sunday Telegraph informações relativas a um escândalo sexual que envolveu suspeitas de actos pedófilos por parte de várias figuras públicas – o chamado caso dos «Ballet Rose». No fim de Fevereiro de 1968, conseguiu sair em liberdade na sequência de um pedido de habeas corpus.

O que se seguiu, aqui resumido por Maria João Avillez (Soares. Ditadura e Revolução, 1996, Círculo de Leitores, p. 197):


Detido pela PIDE nesse 19 de Março, foi-lhe comunicado que partiria para S. Tomé no dia seguinte, por volta das onze horas da noite. Rapidamente espalhada a notícia (sem internet, sem telemóveis...), centenas de pessoas, de todos os quadrantes da oposição, dirigiram-se para o velho aeroporto da Portela, na tentativa de chegarem a uma varanda de onde então se podia assistir a descolagens e aterragens de aviões. Em vão, porque a polícia correu tudo à bastonada. Recordo bem algumas cabeças partidas e correrias atabalhoadas por corredores e escadarias. Alguns escaparam: Maria Belo, por exemplo, porque era loira, foi tomada por estrangeira e saiu calmamente, sem pressas e sem que os bastões lhe tocassem. Eu não era loira, mas só um me tocou – e de raspão.

In illo tempore, havia um consenso sagrado: contra a PIDE, sempre, quaisquer que fossem as afinidades ou as divergências. E, se existiam algumas (poucas) excepções, não faziam mais do que confirmar a regra. 
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O “não é não” é um embuste

 

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Governar assim, queima

 


«Na noite eleitoral, ainda os resultados de PS e AD caminhavam perigosamente para um empate, senão mesmo para uma vitória do PS, já Pedro Nuno assumia a derrota e deixava o Altis aliviado e satisfeito. As imagens mostravam um homem sorridente e sereno depois de uma derrota.

Tendo em conta que Montenegro tinha dito que só governaria se tivesse mais votos, Pedro Nuno esteve a sete décimas de lhe sair a fava do 10 de março. Mas os caminhos da democracia e as escolhas dos eleitores são insondáveis e, a esta altura, embora seja pouco provável, ainda é possível o PS ter mais votos e mais mandatos. O número recorde de votantes nos círculos da Europa e Fora da Europa ainda podem virar o jogo.

O que nos levaria a uma situação bizarra, o homem que espera ser indigitado acabava por perder as eleições e o que se dispôs a ir para a oposição seria chamado a governar.

Mas, quem quer governar este país com a composição parlamentar que resultou da vontade dos portugueses? Se Marcelo esperava eleições clarificadoras, os eleitores não lhe fizeram a vontade.

Ninguém se quer casar com o Chega e, portanto, temos de perceber como se vão comportar todos os outros partidos diante do fenómeno do milhão de votos e quase 50 deputados. Fazer de conta que eles não existem não me parece que seja a melhor opção.

Pedro Nuno não quer governar, Montenegro quer, o PS não vai ser muleta do PSD, o Chega também não, e no intrincado xadrez parlamentar é preciso uma cuidadosa negociação para que o Governo não fique manietado. Ou bloqueado pela direita queixinhas e pela esquerda ressabiada.

Enquanto Mortágua quer reuniões à esquerda para convergências, PSD e Chega, aparentemente, não têm canais de diálogo. Porque “não é não”.

Enquanto isso, este é o tempo do Presidente, que o vai esticar o mais possível. Depois de semanas calado, porque era o tempo dos partidos, Marcelo tem agora de decidir o que fazer e com que garantias, e de quem.

Governar assim, queima.»

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Isto não se inventa

 


«O meu comentário é este: eu não comento.»
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18.3.24

Pássaros

 


Kiwi com pernas e bico feitos de ouro, corpo de ágata fumada e os olhos são rubis. São Petersburgo, 1899-1903.
Joalheiro: Michael Perkhin para Casa Fabergé.

Daqui.
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Cinco notas sobre as eleições legislativas

 

«É, sem dúvida, uma dolorosa e paradoxal coincidência estarmos a celebrar os cinquenta anos do 25 de Abril numa conjuntura marcada pelas mais sérias ameaças à democracia social e política desde a queda do regime fascista. Esta é uma situação que exige às esquerdas portuguesas concertação e diálogo para agir em conjunto, para defender o essencial, para abrir caminhos novos. A primeira ocasião que se oferece para tal são as manifestações do cinquentenário de Abril. Possam elas ser uma grande e massiva demonstração da vontade do povo português em não permitir qualquer recuo no que tanto custou a conquistar.»

Fernando Rosas

Texto na íntegra AQUI
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José Medeiros Ferreira (1942-2014)

 


Dez anos é pouco tempo, dez anos é muito tempo.

Alguma informação AQUI.
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Não há estabilidade se quem governa não a deseja

 


«Carlos Moedas veio, na sexta-feira, avisar que quem criar instabilidade pagará o preço. Ele é a pessoa ideal para dar a tática a Montenegro. Vivendo quase exclusivamente da obra que herdou, apresenta, todos os anos, orçamentos sem disponibilidade para negociar uma linha que seja. Os partidos da oposição conhecem-no 24 horas antes. E a única vez que travaram a sua aprovação, porque as constas estavam erradas e tinham de ser corrigidas, foi a correr para as televisões – onde nunca lida com qualquer tipo de contraditório – para se vitimizar.

Através da chantagem da instabilidade, Moedas governa com a mesma arrogância autossuficiente que lhe poderia ser dada por uma maioria absoluta. Isto, porque o PS de Lisboa, temendo as consequências de uma crise política, se enfiou num colete de forças de que nunca mais conseguirá sair. Há, no entanto, duas diferenças em relação ao cenário nacional: a paralisia da oposição é menos visível para a opinião pública e não existe um Chega forte para tomar o seu lugar na liderança da oposição.

No País, a AD já escreveu o guião: não ceder a ninguém, governar como se não tivesse apenas 29% e mais 0,8 pontos percentuais e dois deputados (os mesmos, se contarmos apenas com o PSD) do que o segundo maior partido (pelo menos até conhecermos os resultados da emigração), distribuir dinheiro para ganhar as eleições. O objetivo não é a estabilidade, é uma queda do governo que permita reforçar rapidamente a sua posição.

Numa entrevista ao Público e à Rádio Renascença, Miguel Pinto Luz já deixou claro que pretende aprovar as medidas do programa da AD sem diálogo, vendo quem tem coragem para as chumbar. Desde a reforma fiscal à da saúde, com fortíssimo pendor ideológico. Quer responsabilizar quem também quiser ser fiel ao seu programa pela instabilidade: “No Parlamento vamos apresentar as nossas medidas e o Chega, a IL, o PS, o Livre, o PAN dirão se estão a favor ou estão contra. Vamos ver o que esses partidos ditos maduros, ditos interessados nos portugueses vão fazer perante esta agenda reformista do PSD.”

Montenegro e Melo, que tiveram pior resultado do que Rio e Rodrigues dos Santos, não pretendem falar com ninguém para garantir a estabilidade porque acham que a estabilidade não lhes interessa. Que líder kamikaze suportaria um governo que tem esta estratégia? Como pode o PS aceitar o papel de ratificador do programa que teve praticamente o mesmo apoio político que o seu? Que distorção da democracia seria esta? Que força isto daria ao Chega, que ficaria a ver de fora, em nome de um falso cordão sanitário, já que o PSD pretende tratar Pedro Nuno Santos e André Ventura da mesma forma: alvos de chantagem para serem, mais tarde ou mais cedo, responsabilizados pela queda do governo.

Não há estabilidade se quem governa não a deseja. Se quem governa tem como modelo um governo que durou pouco mais de um ano – como escrevi na sexta, o sonho do PSD não é que o Chega seja o PRD, é que o PS tenha esse destino. Se quem governa assume que a chantagem da instabilidade é a forma de lidar com os partidos da oposição; se quem governa prepara um conjunto de medidas populares para vencer eleições que espera serem o mais depressa possível, ninguém, no seu perfeito juízo, aceita enfiar-se numa armadilha tão explicita.

O PSD já deixou claro que trabalha para ir a eleições o mais depressa possível. O debate não é de quem ele depende, pois já se percebeu que não pretende depender de ninguém. É quem responsabiliza pela sua estratégia de vitimização.

Não me espanta que Miguel Pinto Luz, que defendeu entendimentos com o Chega (mostrando desrespeito pela nossa inteligência, agora diz que a sua posição mudou porque, entretanto, o Chega se radicalizou), esteja na primeira linha desta estratégia. Ela é, na realidade, a mesma que tinha antes: tratar todos por igual, para exercer o poder sem qualquer baia política ou ética. A função da extrema-direita para a direita é esta, em quase toda a Europa. Como se vê nos Açores (guardaram o que todos sabíamos para depois das eleições), já não há qualquer cordão sanitário. O "não é não" é instrumental.

Se o PSD não pretende negociar com ninguém, se o programa de governo será o programa de um partido com 29% que venceu com uma vantagem inferior a um ponto percentual; se um partido que tem os mesmos deputados que o maior partido da oposição pretende governar como se tivesse a maioria absoluta, de que estamos a falar quando falamos do risco de dependência do PSD em relação ao Chega? Não vai depender de ninguém para responsabilizar todos.

Se o PSD será o mais beneficiado pela instabilidade política deveria ser o mais pressionado para dar garantias de estabilidade. Mas, na comunicação social, o único partido a quem ninguém exige garantias de estabilidade é ao que vai liderar o governo.»

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17.3.24

Chá

 


Chaleira Arte Nova com aquecedor (rechaud), cerca de 1910.

Daqui.
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Se comprou hoje o Público, ou se é assinante, não deixe de ler este texto de João Taborda da Gama no P2. É imperdível!
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Elis Regina – Seriam 79

 


Elis Regina nasceu em 17 de Março de 1945 e morreu com apenas 36 anos.

Viveu os «anos de chumbo» da ditadura brasileira e não lhes passou ao lado ao participar em vários movimentos culturais e políticos. Uma das suas canções – «O bêbado e o equilibrista» – funcionou como uma espécie de hino pela amnistia de exilados brasileiros. Notável também, nessa mesma linha, «Aos nossos filhos». E como esquecer o seu ícone «Águas de Março»?

Vídeos AQUI.
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Legislatura-os tu

 


«Que nostalgia. Saudades da semana passada. Uma altura em que o povo português ainda não tinha dado 18,6% à extrema-direita. Lembram-se dessa altura? Bons tempos. A crise na habitação está tão mal que a própria casa da democracia vai dar agora lugar a um espaço comercial, a taberna da democracia.

A realidade é que os astros estavam todos alinhados: um cenário de inflação, crise na habitação, a queda de um governo por suspeitas de corrupção e uma figura presidencial em queda de popularidade. Estavam tão alinhados que podemos dizer: “Só 48 deputados?! Que incompetência!” É que esta foi uma das grandes chances de André Ventura e ele sabe. Caso contrário, não tinha apostado tudo na campanha eleitoral. Insultar os tipos com que querem formar governo, inventar umas tais de forças vivas que iriam dar o pontapé ao líder da AD, pedinchar uma oportunidadezinha, fazer vídeos engraçadotes para as redes. É que parece que não mas aquilo cansa. Só quem não tentou editar um TikTtok é que acha que aquilo não dá trabalho. O partido investiu tanto nesta estratégia que as ideias do programa do Chega pouco ou nenhum destaque tiveram. E é pena porque, para além daquelas medidas que levariam o país à bancarrota, valia a pena conhecer-se melhor outras, como a que propõe acabar com as limitações ao alojamento local, ou a que quer obrigar os imigrantes a descontar, pelo menos cinco anos, até poderem ter qualquer resposta social, ou aquela giríssima de acabar com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e criar uma secretaria de Estado da família, ou ainda a ideia espetacular de aumentar a abrangência do que se pode referendar e os resultados do referendo serem imediatamente vinculativos. Não se via um programa tão mau desde que a TVI, em 2019, se lembrou de fazer o “Quem quer casar com o meu filho”.

Desde que me lembro, que as legislaturas arrancavam com um hemiciclo recheado de pessoas mais ou menos conhecidas no campo da gestão, da saúde ou da justiça, para agora termos deputados conhecidos porque têm um canal de YouTube. Como cidadã, acho que é uma péssima notícia, mas como profissional vai ser impagável sintonizar na ARTV e assistir a “Sr. presidente, senhoras e senhores deputados, se gostaram desta proposta de alteração à lei, já sabem, façam like, partilhem e ativem as notificações no sininho”.

Desde que saíram os resultados - e ainda faltam os do estrangeiro - os espaços de informação dividem-se entre vários cenários de governabilidade. Se for o PSD com a IL e o PAN. Não, tira o PAN. Então e se for com a IL e ir aprovando medida a medida com o Chega? Não vai dar. Então e se for o PS com o Livre, o Bloco, a CDU, o PAN e um quilo de sardinhas? E várias teses para os resultados do Chega. A culpa é do PS. A culpa é do PSD. A culpa é da Comunicação Social. A culpa é do Algarve. A culpa é do Marcelo. Não, a culpa é de quem partilhou memes da página Pérolas das Urgências. Em todos os canais só dá um misto de aula de matemática com contas a números de deputados com sessões de terapia em que especialistas falam de sensações que pensam justificar este imbróglio. E, de vez em quando, têm lá alguém do Chega a tentar convencer os outros, os mesmos que insultaram e humilharam que o partido é uma mais-valia. Se bem nos lembramos, o André Ventura lançou-se na política afirmando que iria dizer em voz alta aquilo que as pessoas dizem nos cafés. Mas acho que agora não é preciso. Com os resultados do partido podemos dizer que, graças ao Chega, as pessoas já começam a sair dos balcões para a bancada parlamentar. Só resta saber se vão entrar com um prato de tremoços e de míni na mão.»

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