8.2.25

E um Trump português, Portugal aguenta?

 


Luísa Semedo

Não resta pedra sobre pedra

 


O ar tóxico que excita o populismo

 


«Esta semana foi exemplar quanto à toxicidade do ambiente político, em que pessoas individuais, grupos, partidos e instituições, como o Ministério Público, todos actuaram contra a democracia, todos ajudaram a corroer os fundamentos da vida em liberdade, em representatividade, e no primado da lei e dos bons costumes sociais e políticos. Não é que tudo o que se passou seja da mesma natureza e gravidade, mas tudo conflui no mesmo resultado de acentuar a crise da democracia, o bem político mais precioso nos nossos dias.

Os casos do Chega, o homem da mala e o Pró-Toiros que frequentava sexualmente meninos menores, são graves, mas são conjunturais. O único aspecto estrutural tem a ver com a falta de escrutínio dos candidatos e, depois, com a indiferença perante as suas idiossincrasias e comportamentos, que é impossível serem desconhecidos de quem os propõe e os escolhe. Isto não é específico do Chega, só que o dano destes casos é sempre maior, pela retórica moralista. Nesse sentido, o caso do Bloco de Esquerda tem os mesmos efeitos. Bloco de Esquerda e Chega sofrem do mesmo modo.

O caso Tutti-Frutti é bastante diferente, não é conjuntural, mas estrutural em dois aspectos muito perigosos para a democracia: a degradação interior dos partidos de poder e o papel do Ministério Público. Nenhum me surpreende particularmente, porque conheço bem como os partidos funcionam por dentro, e se vou dar exemplos do PSD, isso não significa que no PS não seja exactamente na mesma. Insisto, exactamente na mesma, como se verifica no homem que sendo técnico de um município fazia marquises para o concelho do lado, e o mesmo homem cujo CV na Assembleia da República é o único que não existe no original mas em fotocópia e o único rasurado. Fora o resto.

No caso do Tutti-Frutti nada me surpreende, visto que na minha experiência política mais falhada, a de presidente da Distrital de Lisboa do PSD, foi também aquela em que mais aprendi sobre como funcionava a “coisa”. Desde casos caricatos de uma vez abrir a porta de uma sala onde decorria uma reunião da distrital e cair um “jota” na sala visto que estava a ouvir colado à porta, até casos mais graves, como falsificações de delegações de voto para uma assembleia. Uma militante que trabalhava com a distrital resolveu um dia confirmar as delegações de voto e receber como resposta de uma mãe “mas o meu filho já está há mais de um ano na Austrália”… Ou a um autarca que era empreiteiro num concelho e que, após uma proposta que fiz e foi aprovada com dificuldade, de que não podiam fazer parte das listas pessoas com interesses profissionais na construção, urbanismo ou imobiliário, deixou de pagar quotas, de um valor superior ao habitual. Ou uma reunião com os financiadores da distrital, que resolvi fazer numa sala de hotel que tinha fama de ser universalmente escutada, desde serviços estrangeiros à PJ, e perceber que a sua principal preocupação, a que correspondia abrirem a bolsa (na altura isso era legal) era afastar alguns autarcas, mais do que financiar outros.

Na verdade, quando se colocaram regras dizendo que o financiamento devia ser para todos os candidatos, com o objectivo de apoiar os de concelhos com menos recursos, disseram que não e na semana seguinte estavam a encontrar-se com candidato a candidato para canalizarem os financiamentos para os concelhos que lhes interessavam, Sintra, Amadora, etc. Ou os que criticavam severamente o “desperdício” de dinheiro quando, pela primeira vez na história partidária, a distrital decidiu apresentar contas revistas por um revisor oficial de contas.

E há muitos mais casos com dois aspectos em comum: o de todos eles, apesar de serem públicas as suas malfeitorias, terem continuado a ter carreira no PSD, a ascenderem nas estruturas até aos dias de hoje; e o de que a comunicação social preferia os incidentes e era indiferente às tentativas de moralização.

Por fim, há o papel miserável, esta é a melhor palavra, do Ministério Público que demorou nove anos a decidir quem ia a tribunal e quem era inocentado das próprias suspeitas dos procuradores, com a agravante de fazerem uma pura vingança nos seus textos sobre Fernando Medina, sabendo que o atingido não tem nenhum meio para se defender das calúnias do Ministério Público. Se isto não é abuso de poder, como retaliação por um mau perder, sou venusiano, especialista em atmosferas tóxicas.»


7.2.25

Reis e palhaços

 


07.02.1927 – Juliette Gréco

 


Juliette Gréco chegaria hoje aos 98, mas morreu em 2020. Viveu até aos 6 anos em Bordéus com os avós maternos e partiu então para Paris com a mãe e a irmã mais velha.

Numas férias passadas na Dordogne, a mãe foi presa pelos nazis por actividade na resistência, o mesmo acontecendo a Juliette, então com 16 anos, e à irmã mais velha. Saiu em liberdade um mês mais tarde e foi viver para Paris em casa de uma antiga professora que morava perto de Saint-Germain-des-Prés. Facto decisivo na sua vida! Viveu o entusiasmo do pós guerra, integrou-se rapidamente em grupos de intelectuais e artistas e acabou por contactar, como é sabido, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Boris Vian, Jean Cocteau ou Miles Davis.

Algumas das suas interpretações clássicas:










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João Bénard da Costa, 90

 


Chegaria hoje a essa bela idade. Continua na memória de muitos de nós.

Ensinadas para matar

 


«Parece cada vez mais claro que a inteligência artificial (IA) não terá o bem como primeira prioridade. O uso de máquinas para decidir quem vive e quem morre corre o risco de se tornar banal debaixo do argumento da segurança dos países.

O contexto internacional, dominado pelo ódio e pela ganância, está a empurrar a tecnologia para o pior que nos pode dar. Drones letais, operações de desinformação e ciberataques sofisticados já não constituem nenhuma surpresa. A novidade é que as grandes empresas tecnológicas estão apostadas em acelerar desenvolvimentos para fins militares, ao serviço de líderes governamentais conflituosos, nem que para isso seja preciso fazer "delete" a questões éticas e empurrar alguma humanidade para a reciclagem. É a má política a impor as suas prioridades tecnológicas.

As linhas vermelhas são cada vez menos importantes. Esta semana, a Google abandonou o seu compromisso em não conceber ou implementar ferramentas de IA para uso em armas ou tecnologia de vigilância. A norma em não aplicar IA para fins que "possam causar danos gerais" ou que violem os direitos humanos existia desde 2018. Estava publicada na lista dos princípios da Google no item "aplicações de IA que não desenvolveremos". A sua remoção foi explicada pelos executivos da empresa tendo em conta a "competição global em curso pela liderança em IA dentro de um cenário geopolítico cada vez mais complexo". Argumentam que empresas, governos e organizações "devem trabalhar juntos para criar IA que proteja as pessoas, promova o crescimento global e apoie a segurança nacional".

A decisão não será só uma resposta ao rápido desenvolvimento da IA chinesa. Enquadra-se na aproximação das tecnológicas a Donald Trump, o que só prova a necessidade de uma vigilância internacional constante à IA.»


6.2.25

Copos

 


Copo Arte Nova, esmaltado com libélula e flora. Cerca de 1900. Émile Gallé 


06.02.1932 – François Truffaut

 


François Truffaut nasceu em Paris e faria hoje 93 anos, morreu muito cedo (com 52), mas deixou-nos 26 filmes que o mantêm connosco. Com uma infância atribulada, que acaba por retratar parcialmente em «Les quatre cents coups», Truffaut fundou um cineclube aos 15 anos e foi rapidamente descoberto por André Bazin que viria a ter uma influência decisiva na sua carreira, introduzindo-o junto dos grandes nomes da época e nos celebérrimos «Cahiers du Cinéma». Tornou-se um dos principais representantes da «Nouvelle Vague» francesa e, nesses tempos áureos do cinema francês, era sempre com ansiedade que se aguardava a estreia de um novo título.

Alguns entre muitos inesquecíveis: «Baisers Volés» (1968), «Les quatre cents coups» (1959), Fahrenheit 451 (1966) e o último dos seus filmes, estreado um ano antes de morrer: «Vivement dimanche!» (1983).







Chega soma e segue

 




Videovigilância: manter fechada uma porta sem parede à volta

 


«Há uns tempos, num debate no “Eixo do Mal”, quando foi referida a necessidade de videovigilância na Rua do Benformoso, acabei por assentir, sem debate, recordando que também existe no Bairro Alto. Devo dizer que o disse sem pensar, esquecendo os anos em que me opus a este Big Brother. Este texto não serve para desdizer o que disse. Serve para refletir o que mudou para dizer o que disse. A insegurança é maior nas ruas do que era na altura? Não, como já expliquei aqui. É menor.

Temia que se entregasse ao Estado um poder que, caso viesse a ser autoritário, fosse usado para perseguir cidadãos por muitas razões que ultrapassam a segurança. Há razões para temer menos esse risco? Pelo contrário, nunca esse perigo foi tão real, nos últimos 50 anos. As forças antidemocráticas cresceram em Portugal e na Europa e o seu discurso fortemente securitário ganha terreno na sociedade e na política.

Continuamos a entregar cada vez mais instrumentos de vigilância a um Estado cada vez mais próximo do risco de deriva autoritária. Uma câmara em cada esquina seria o sonho da Stasi. Se antes dizia que não podíamos pensar que viveríamos sempre em democracia, agora, que tenho poucas dúvidas que a democracia com as garantias que lhe conhecemos está condenada, a minha posição devia ser ainda mais firme, não menos.

Outro dia, ao discutir este tema com um amigo, acabei por assumir o que mudou: já interiorizei a derrota. Ao ponto de me parecer insensato o que antes era óbvio, apesar das razões para pôr câmaras nas ruas terem diminuído e os temores de as colocar terem aumentado.

Dizia o meu amigo que, ainda assim, estávamos a abrir a porta a enormes perigos. Foi na resposta sincera que lhe dei que percebi porque é que a minha posição, apesar de aparentemente ilógica, fazia todo o sentido: ele está a querer manter fechada uma porta onde já nem sequer há parede. O telemóvel que tem no bolso é um localizador, o micro desse telemóvel um espião, as redes sociais o Big Brother global em que nem Orwell poderia sonhar, os programas IA onde despejamos informação guardarão tudo sobre nós e os drones farão de forma muito mais intrusiva o que as câmaras agora fazem.

Basta ver que tudo o que os Estados europeus se preparam para aceitar na utilização da inteligência artificial para a segurança, investigado por Paulo Pena e a equipa do Investigate Europe, para perceber que a luta contra a videovigilância não seria mais do que uma trincheira do século XX em pleno século XXI.

Não tenho dúvidas que, se se fizesse uma sondagem à videovigilância, o apoio seria esmagador. A privacidade, que nunca foi um valor estimado (“quem não deve não teme”, diz o povo que durante séculos teve de entregar o seu corpo e a sua vida ao patrão enquanto partilhava casas minúsculas com a família), não é importante para a esmagadora maioria das pessoas. E, no entanto, não deveria ser um valor que, no que é essencial, dependesse da vontade maioritária. É por isso que as lutas se têm de fazer quando se abrem as primeiras portas com discursos virtuosos.

As lutas do século XXI são outras, mais recuadas ou avançadas, conforme o ponto de vista: a regulação da Inteligência Artificial ou da utilização de dados pelas plataformas, por exemplo. Às antigas voltaremos no dia em que esta vigilância totalitária e privada a que nos entregámos der tão mau resultado que quereremos rever tudo o que autorizámos. Se esse dia chegar.

Mudei de posição? Não. Mais do que há umas décadas, sei o Estado virá a usar estas câmaras para me vigiar. Que deva o que dever, tenho tudo para temer. O problema é saber que a oligarquia do “capitalismo da vigilância” já me vigia muitíssimo para lá do que uma câmara pode captar. Quero reconstruir a parede. Sem ela, é indiferente se a porta está aberta ou fechada.»


As malas (ainda), a AR e os CTT

 


5.2.25

Mais um frasco

 


Frasco (talvez destinado a perfume?). Vidro Steuben com revestimento de prata. Cerca de 1900.
Alvin.

Daqui.

A cegueira proteccionista de Trump

 

«Trump está de volta ao seu jogo favorito: erguer muros. Só que agora, em vez de betão e arame farpado, aposta em tarifas e barreiras alfandegárias para isolar os Estados Unidos do mundo. A sua nova investida proteccionista, com a imposição de tarifas de 25% sobre importações do Canadá e do México (entretanto suspensas por um mês) e de 10% à China, é um absurdo económico, uma afronta aos aliados históricos de Washington e uma ameaça à estabilidade do comércio global. O nacionalismo económico que Trump proclama como receita milagrosa não passa de uma perigosa ilusão que levará à erosão da competitividade americana e ao empobrecimento global.»


Arruda é o maior!

 


Ainda dizem que os portugueses não são bons empreendedores.

Sem Medina, não teria havido o estardalhaço em que o MP é viciado

 


«Oito anos do processo Tutti Fruti, que sempre me pareceu ser pouco mais do que uma soma de casinhos sob um chapéu que o fizesse parecer mais do que era, e as coisas acabam de forma interessante: os principais alvos políticos ficaram fora da acusação. Sobram ilustres desconhecidos. Isto é importante? Não seria se os nomes sonantes não tivessem aparecido para servir a prioridade de alguns setores do Ministério Público: o máximo de estardalhaço mediático. Quem teria ligado a um processo com vereadores anónimos, presidentes de junta e assessores?

Olhando para os nomes dos acusados, percebe-se que, para alem de serem quase todos do PSD, incluindo o líder da Concelhia e da Federação Distrital de Lisboa, estão quase todos ao nível das Juntas de Freguesia. O crescimento das juntas, imposto pela reforma administrativa, levou ao que há muito acontece na maioria das câmaras: orçamentos generosos sem escrutínio mediático e político rapidamente degenerarem em situações menos claras.

A investigação não seria um flop se o MP não a tivessem transformado, através de fugas cirúrgicas de informação e buscas com grande aparato, quase sempre agarradas ao calendário eleitoral, num processo político. Como começa a ser hábito, fazem-se vítimas pelo caminho mas, no final, é a justiça que fica mal. Até porque, numa postura defensiva que denuncia má-fé, o MP arranjou forma de passar a ideia que quem não acusa devia ser acusado. Também não é a primeira vez que o faz.

O Ministério Público fala de comportamentos que se “desviam e atropelam as normas do exercício das funções públicas”, sendo, por isso, “ilícitos”. Ao pôr isto no despacho em que Medina foi ilibado, o MP quis ter a última palavra sem que o antigo presidente da Câmara se pudesse defender. Se houve actos “ilícitos” e não apresentam prova sustentada os procuradores reconhecem a sua incompetência.

Não é por moralismo que o MP se dedica a isto. É para justificar os oito anos em que, sobretudo em vésperas de eleições, pôs Medina em lume brando sem que ele fosse sequer arguido (foi no fim do processo). E é por isso que dizem ter extraído mais certidões para o continuar a investigar. Não tendo ponta por onde se pegue, sobrou a insinuação de que se não cometeu um crime, pecou. E a confissão da enorme vontade de o acusar.»


Pós-verdade

 


4.2.25

𝐄ram três, as Marias

 


Deixou-nos agora a última, a Teresa Horta. 
Ficamos com uma herança que tanto marcou muitos de nós e que não se apagará.

04.02.1961 - O início da Guerra Colonial



4 de Fevereiro de 1961 marca o início da luta armada em Angola, concretizado numa revolta em Luanda, com ataques à Casa de Reclusão, ao quartel da PSP e à Emissora Nacional.

Os acontecimentos agravam-se com importantes ataques no Norte de Angola, na noite de 14 para 15 de Março, mas só em 8 de Abril é que Salazar se refere pela primeira vez, em público, aos acontecimentos.

A partir daí, tudo se precipita: cinco dias depois falha um golpe de Estado dirigido por Botelho Moniz, ministro da Defesa, Américo Tomás reitera a sua confiança no Presidente do Conselho e este anuncia uma remodelação ministerial que o faz assumir também a dita pasta da Defesa, entregando a do Ultramar a Adriano Moreira.

Em 13 de Abril, lança uma frase que ficará célebre: «Andar, rapidamente e em força!»

Depois, foi o que se sabe. Durante mais treze anos.




04.02.1913 – Rosa Parks



Rosa Parks nasceu em 4 de Fevereiro de 1913 e morreu em 2005. Ficará para sempre como um dos símbolos do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, juntamente com Martin Luther King.

Era costureira, vivia em Montgomery e apanhava todos os dias o mesmo autocarro. A história é conhecida: no dia 1 de Dezembro de 1955, a parte da frente do mesmo, reservada a passageiros brancos, já não tinha nenhum lugar vago e o condutor ordenou que Rosa se levantasse e cedesse o seu. Recusou e foi então presa mas, em poucos dias, os negros de Montgomery organizaram um boicote à discriminação nos autocarros, que durou um ano, e ganharam a batalha. Até aí, eram obrigados a ocupar os lugares traseiros e a cedê-los aos brancos se o autocarro enchia.

Mas não se tratou de um impulso isolado: há muito que Rosa se recusava a entrar nos autocarros pela porta traseira e que era activista em outras causas, nomeadamente na luta pelo direito ao voto. Ficou ligada, para sempre, juntamente com Luther King e tantos outros, à luta pela emancipação dos negros, sendo muitas vezes qualificada como «the first lady of civil rights» ou «the mother of the freedom movement».


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Temos de ter uma conversa (5)

 




Violência doméstica: as câmaras de tortura que Marcelo tem de levar ao Conselho de Estado

 


«O grande flagelo da violência contra pessoas não está nas ruas, está dentro de casa, de norte a sul de Portugal, pelo que é um perfeito absurdo o caminho que Marcelo deu ao desafio populista do Chega para discutir a segurança interna no Conselho de Estado. Primeiro, o Presidente pediu aos seus conselheiros que lhe dissessem se devia ou não fazer a vontade ao conselheiro Ventura; depois, invocou divisões no debate político para admitir, quando forem conhecidos os números do Relatório Anual de Segurança Interna, levar o assunto ao Conselho. Puro sadismo político de quem não se importa de ver os números serem torturados para que digam o que cada um quer que eles digam.

Marcelo Rebelo de Sousa deve ter-se inspirado em Carlos Moedas e nos outros autarcas que apostam no voto do medo como forma de travar o Chega, não percebendo que o alimentam. País nenhum do mundo, nem as ditaduras, vive com zero criminalidade nas ruas, mas querer fazer vencer a tese de que Portugal vive um momento de grande insegurança não pode ser apenas uma flagrante falta de memória. É mesmo a demagogia e o populismo a fazerem caminho e a criar na cabeça das pessoas a percepção de que a segurança pública está a ser posta em causa. Sem recuar muito, basta comparar com a década de 2000 e o aumento de crimes violentos, como carjacking, assaltos a bancos e roubos em transportes de valores, para percebermos que estamos longe, muito longe dessa realidade. Graças à sociedade como um todo e às diferentes forças policiais em particular. Devemos estar satisfeitos e baixar a guarda? É claro que não, mas convém ter as prioridades muito bem definidas.

Câmaras de tortura

São espaços físicos projetados ou utilizados para infligir dor física ou psicológica a uma pessoa, geralmente como forma de punição, intimidação ou coerção. Esta é a definição de câmaras de tortura, usadas ao longo do tempo, por regimes autoritários ou organizações criminosas, com o objectivo de causar sofrimento extremo e atingir o objetivo de submeter as vítimas. A expressão "câmara de tortura" para descrever o ambiente de uma casa onde ocorre violência doméstica, especialmente quando o espaço é transformado num lugar de constante dor, sofrimento e controle, tanto físico quanto psicológico, não é uma analogia meramente figurativa; em muitos casos, a violência doméstica apresenta características que lembram práticas de tortura, como isolamento, humilhação, privação e sofrimento prolongado.

Em nome, sobretudo, de milhares de mulheres e milhares de crianças que vivem em câmaras de tortura anos a fio, deixe que esta imagem o incomode. Visualize o sofrimento de crianças que crescem neste ambiente familiar; se todos o fizermos, estaremos mais capazes para exigir que a polícia, a justiça e a segurança social façam do combate à violência doméstica a sua absoluta prioridade. O Presidente da República faria bem em convocar o Conselho de Estado, e dessa forma todo o país, para inverter o ritmo galopante com que a violência doméstica e a violência de género matam em Portugal. Começamos o ano com uma mulher assassinada a cada semana que passou.

Não seja como os três macacos sábios (boca, ouvidos e olhos tapados) julgando que se não falar do mal, não ouvir nem vir o mal, o mal não existirá. Faço minha a pergunta da ministra da Justiça na abertura do ano judicial: “uma mulher de 46 anos foi morta pelo marido, em sua casa, no Barreiro, à frente dos seus filhos menores, de 6 e 14 anos. Foi degolada e ferida na barriga a golpes de faca e de tesoura. Chamava-se Alcinda Cruz. Enquanto isso, alguns dos presentes preparavam a mais importante cerimónia do ano judicial. Aqui estamos. O que temos a dizer aos filhos de Alcinda Cruz?"

Crime em família

A pergunta de Rita Alarcão Júdice é uma granada lançada na direcção de todos nós, não apenas da Justiça, mas a verdade é que Alcina Cruz tinha apresentado queixa em 2022 e a queixa tinha sido arquivada no ano seguinte. A ponta do icebergue mostra que a cada semana são reportados às autoridades mais de 500 situações de violência doméstica - as mulheres são as principais vítimas - e só 13% resultam em condenações.

A violência doméstica ou violência familiar é o crime contra as pessoas mais reportado e, na criminalidade geral, só os furtos são mais comuns. Na população prisional, a violência doméstica e os seus agressores representam um em cada dez reclusos, mas nem uma outra atitude da justiça tem sido suficiente para travar esta calamidade pública. Por certo, não ajuda rigorosamente nada que o primeiro-ministro desvalorize o aumento do número de queixas, alegando que isso não deve representar um aumento do número de crimes, ao mesmo tempo que valoriza e alimenta a percepção de que o crime está a crescer nas ruas, coisa que os números conhecidos não confirmam.

De acordo com os dados e estudos disponíveis, muitos dos casos de pedofilia e abuso sexual de menores ocorrem predominantemente em contextos familiares ou em ambientes próximos da criança, em câmaras de tortura em que a proximidade facilita o acesso à vítima e dificulta a denúncia, já que frequentemente há medo, vergonha ou dependência emocional. É nesta altura que lhe sugiro a leitura da newsletter A Beleza das Pequenas Coisas de Bernardo Mendonça, onde se mostra que tudo pode ser diferente. Mas é preciso querer.»


Presidenciais

 


Por causa de confusões que já andam por aí.

Este texto da CNE não refere votos nulos, mas o efeito é o mesmo: nenhum. Pode-se ficar em casa no sofá.

3.2.25

Um vaso diferente

 


Vaso de crisálida em vidro fosco e transparente. Cerca de 1945.
René Lalique.

Daqui.

03.02.1953 – O massacre de Batepá

 


Estive em S. Tomé em 2019, passei por Batepá, e sobretudo por Fernão Dias, onde se recorda um dos momentos mais trágicos da História desse magnífico país. 

Nesta fotografia figuram os nomes de uma parte das vítimas, cujo número nunca foi possível apurar exactamente, mas que S. Tomé quantifica oficialmente em 1.032. 

 Fotografia de um novo memorial inaugurado em Fernão Dias em 2015, um texto importante sobre os acontecimentos e um vídeo AQUI.

Marques Mendes

 


Volksvargas no Facebook.

Presidenciais: a conversa já não acaba quando os partidos falam

 


«O Expresso fez duas sondagens que nos dão algumas pistas quanto ao estado da arte da política nacional. Sobre as legislativas, que ainda virão muito longe, há menos a dizer, a não ser que pouco ou nada mudou. O que até nem é pouco. Depois da chuva de dinheiro, de que não discuto a justiça, para professores, forças de segurança, IRS jovem e menos jovem, reformas e Scuts, tudo dificilmente repetível, o PSD não descola. E, como se sabe, é indiferente quem aprovou. O beneficiado é sempre quem governa.

A economia estava bem e melhorou e houve descida das taxas de juro. Mesmo assim, 41% dos inquiridos fazem uma avaliação positiva do governo, 45% negativa. Isto não deve ser comparado com o primeiro ano de outros governos, mas com o primeiro ano de outros ciclos. Com 2016, quando a “geringonça” era francamente mais popular.

Devemos ter alguns cuidados. Tudo isto foi antes dos casos das malas e das mães despedidas, que não sabemos quanto afetou o Chega e o Bloco. Foi antes da entrevista de Pedro Nuno Santos, que não sabemos se teve efeitos positivos, negativos ou muito provavelmente neutros. Antes da primeira demissão neste governo, que a comunicação social tratou com simpatia. Mas a verdade será mais ou menos esta: está tudo na mesma.

ALMIRANTE E VENTURA: SABEMOS POUCO, SABEMOS DEMAIS

Já a sondagem das presidenciais diz mais. E é relevante, não por nos anunciar quem pode ganhar, mas por condicionar a apresentação de candidatos. Há que dizer, no entanto, que os candidatos não estão todos nas mesmas circunstâncias. Três são óbvios e praticamente anunciados. O do PS é ainda é uma incerteza. A meio do trabalho de campo até Mário Centeno ainda era uma possibilidade. É preciso fazer este desconto.

Duas coisas saltam imediatamente à vista: Gouveia e Melo entra no eleitorado do PS e do PSD (é um candidato transversal) e André Ventura segura de forma assinalável os eleitores do Chega (ao contrário de outros candidatos do seu partido, como seu viu nas europeias). Ainda assim, a taxa de rejeição de Ventura é tão alta que não me parece que haja qualquer risco de vir a vencer. Na realidade, seria o oponente ideal para Gouveia e Melo, numa segunda volta.

Mesmo assim, há, neste momento, um risco de termos uma segunda volta entre um candidato que desconhecemos em quase tudo o que é importante para o cargo – comportamento e pensamento políticos perante quase todos os temas que passam por Belém – e outro que conhecemos demasiado bem.

Apesar do susto que Ventura provoque, não devemos negligenciar os riscos do desconhecido, sobretudo quando 59% dos inquiridos esperam um Presidente mais interventivo. Escolher, num momento de enorme instabilidade interna e externa, um Chefe de Estado sem qualquer experiência política ou cívica (a sua popularidade resulta do sucesso de uma operação logística, irrelevante para um cargo que exige grande conhecimento dos intervenientes institucionais e partidários), seria de uma enorme temeridade. Só que as sociedades ocidentais parecem dominadas pela atração pelo abismo.

Se não há qualquer risco de André Ventura vir a ser Presidente da República e 2026, o risco de ir à segunda volta também é, apesar desta sondagem, baixo. Sem que o PS tenha candidato escolhido, e estando as duas pessoas de que se fala fora do espaço público quotidiano há bastantes anos, ficam a pouca distância de Ventura, que aparece próximo do seu máximo potencial. Não será complicado ultrapassá-lo. Como Ana Gomes fez, sem sequer ter apoio do PS.

PRESSÃO SOBRE O CENTRÃO

Ainda assim, a relevância desta sondagem é a pressão que põe sobre o PSD e o PS. Há uma possibilidade, mesmo que improvável, de ninguém do espaço democrático previsível ir à segunda volta. Como temos aprendido nos últimos anos, este tipo de sustos, celebrados pelos que ainda se dão ao luxo da ingenuidade, abanam a democracia sem nunca a melhorar. Não é porque os agentes políticos sejam burros e não entendam o que se passa que o efeito não é terapêutico. É porque o contexto não é favorável à democracia e estes momentos apenas servem para dar força aos seus inimigos.

O primeiro aviso seria para o PSD, mas já não vai a tempo. Luís Marques Mendes, uma construção mediática artificial (ao contrário do talento natural de Marcelo), não podia ter pior arranque. Está há doze anos, todas as semanas, no horário nobre da SIC generalista. Mesmo assim, aparece atrás de Ventura e de qualquer um dos dois candidatos do PS, que os inquiridos nem sequer sabiam se o seriam e que estão desaparecidos do espaço público há anos. As condições de exposição de Marques Mendes não irão melhorar. Não há nada em que ainda nos possa surpreender. As de qualquer dos candidatos do PS só podem vir a ser melhores. E, sem existirem, já partem à frente dele.

O segundo aviso é para o PS, que tomará a sua decisão no próximo fim-de-semana – ou definirá um perfil que, provavelmente, deixará clara a escolha. Como disse o próprio António José Seguro, tudo parece apontar para António Vitorino.

Apesar de poder animar Seguro, a diferença de um ponto percentual entre ele e Vitorino é estatisticamente irrelevante. Certo é que se ele decidisse avançar, quando o PS já tem um candidato na calha, poderia entrar de novo em desgraça no partido, depois da “oposição” incompetente que fez a Passos Coelho. Apesar da candidatura ser cidadã, não me parece que o PS se possa dar ao luxo de ter dois militantes seus na corrida. Dificilmente o partido perceberia esta opção. Está em causa quem vai à segunda volta com Gouveia e Melo: o candidato da esquerda, da direita ou da extrema-direita.

Devo dizer que, fechadas as candidaturas de Gouveia e Melo, Ventura e Marques Mendes, preferia que a candidatura de esquerda não viesse da militância partidária, para confrontar o almirante numa segunda volta. Nada contra os partidos, muito pelo contrário. Mas acho que deveria haver uma resposta à evidente vontade que se sente de os eleitores terem um Presidente da República fora da órbitra partidária. Pedro Nuno Santos prendeu-se à ideia de ter um candidato do partido.

A IL avança com Mariana Leitão, o PCP pode vir a escolher Paulo Raimundo ou outro quadro do partido e é provável que surjam candidatos independentes à esquerda. Se há coisa que Gouveia e Melo mostra é que os partidos já não condicionam o que condicionavam. E isso também vale para democratas que recusam Ventura, mas não têm vontade de ter, num tempo tão complexo, um militar imprevisível como Presidente da República. O cenário é tão pouco entusiasmante e tão fragmentado, que tudo ainda está em aberto para muitas surpresas.

Para o mal ou para o bem, a conversa já não acaba quando os partidos falam. Pode não ser por culpa das suas lideranças, que trabalham com o material que têm. Mas precisavam de escolhas muito mais fortes para não correrem o risco de tudo lhes sair tudo furado.»


2.2.25

Frascos

 


Frasco “D'Igny A”, Manufacture Nationale de Sèvres, 1907.
Designer: George Vogt.
Montagem em bronze: Joseph Joindy.

Daqui.

Ventura nas bocas do mundo





02.02.1954 –Quando nevou em Lisboa

 




Hernâni Dias e as empresas como paradigma da cultura neoliberal

 


«A primeira demissão no Governo liderado por Luís Montenegro ocorreu na terça-feira. Hernâni Dias renunciou ao lugar de secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, depois de um ensurdecedor silêncio do Governo, que passou cinco dias sem reagir, comentar ou explicar o caso e as suspeitas de conflito de interesses, em que Hernâni Dias foi implicado pela investigação feita pelos jornalistas da Prova dos Factos, da RTP.

Para ser precisa, na sexta-feira, este programa de reportagem de investigação apenas trouxe à luz do dia mais um caso em que Hernâni Dias era exposto em situação de claro conflito de interesses. Mas a divulgação pela Prova dos Factos de suspeitas em casos que envolvem este secretário de Estado remontam ao início de Novembro, e durante longos quase três meses o Governo não se preocupou em esclarecer a situação e manteve-se passivo perante a exigência de explicações que logo a primeira reportagem tornou urgente.

Os três casos em que Hernâni Dias está envolvido são diferentes. O primeiro, noticiado pela RTP, no início de Novembro, diz respeito ao seu exercício do mandato de presidente da Câmara de Bragança. A gestão deste município terá pago e tem comprovativos de facturas de cerca de 800 mil euros de obras que não terão sido feitas, no âmbito do aumento da zona industrial de Bragança.

Já a 17 de Janeiro, a Prova dos Factos divulgava que Hernâni Dias estava a ser investigado pela Procuradoria de Justiça Europeia, pela suspeita de que terá recebido contrapartidas da mesma empresa. Mais concretamente, entre 2016 e 2022, o filho de Hernâni Dias terá vivido num apartamento, no Porto, que era propriedade de um filho de um sócio da construtora que fez as obras de ampliação da zona industrial de Bragança. Neste caso, Hernâni Dias garantiu à Lusa que tinha pago renda por transferência bancária e tinha contrato de arrendamento.

E na sexta-feira dia 24 de Janeiro, foi a vez de a Prova dos Factos divulgar novas suspeitas de teor diverso e que apontam para uma situação de conflito de interesses clara. Já como secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, Hernâni Dias constituiu duas empresas na área do imobiliário, uma com a sua mulher e outra em que a primeira empresa era sócia. Isto quando o próprio Hernâni Dias, na qualidade de governante e na tutela do ministro adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, estava ligado à elaboração da lei dos solos, uma legislação de que as duas empresas podem vir a beneficiar.

Com a pressão do escrutínio jornalístico, surgiu o escrutínio da oposição. BE, PCP, Chega e PS pediram explicações. Ao ruído das suspeitas, quer o ministro Manuel Castro Almeida, quer o primeiro-ministro, Luís Montenegro, mantiveram-se mudos. Na mesma terça-feira em que Hernâni Dias se demitiu, Luís Montenegro fugiu às perguntas dos jornalistas sobre o secretário de Estado, escudando-se com a desculpa de que estava a participar numa cimeira com o primeiro-ministro de Cabo Verde.

No mesmo dia, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também não quis comentar, mas atirou o assunto para cima do primeiro-ministro, afirmando que qualquer avaliação sobre a situação era da esfera de competência de Luís Montenegro. A verdade é que o silêncio do primeiro-ministro sobre este caso se mantém, até hoje, mesmo depois da demissão.

Esta situação tem várias esferas de análise e uma delas, que não é menor, é a das consequências e a porta aberta à especulação imobiliária pelas alteração introduzidas pela lei dos solos, pelo facto de permitir que as assembleias camarárias votem alterações ao Plano Director Municipal e transformem terrenos rústicos em urbano, para neles ser construída habitação. Uma questão que foi levantada em artigos de opinião no PÚBLICO quer por Helena Roseta, quer por Manuel Carvalho.

Mas o conflito de interesses, que está patente no facto de um membro do Governo constituir empresas que podem vir a beneficiar de alterações à lei em que ele mesmo está a trabalhar, é gritante. E diz muito sobre a nova cultura que foi criada pelo domínio do neoliberalismo nas últimas décadas. Uma cultura em que a felicidade passa pelo sucesso, o sucesso passa pelo enriquecimento e o enriquecimento se conquista através de empresas. E parece fazer escola em Portugal. Isto quando manda a ética e a seriedade que um membro de um governo não deve constituir empresas, nem que seja para vender croquetes, rissóis e pastéis de bacalhau.

O padrão de comportamento que leva um governante a considerar normal constituir empresas para negociar em terrenos e construção é o mesmo que enquadra a situação que levou à demissão de António Gandra d’Almeida do cargo de director executivo do Serviço Nacional de Saúde, em 17 de Janeiro. Recordemos. Em causa esteve o facto de, enquanto director da delegação regional do Norte do Instituto Nacional de Emergência Médica, ter desempenhado funções como médico tarefeiro em hospitais públicos. Uma actividade que exerceu através de empresas de prestação de serviços médicos que constituiu com a sua mulher.

É a mesma cultura de permissividade e relativismo ético que tem crescido e dominado, nas últimas décadas. As empresas são sinónimo de sucessos e, para ter sucesso, para enriquecer, temos de ter empresas, mesmo que procedam de forma ilícita, mesmo que em situação de conflito de interesses. É o novo paradigma de sucesso da cultura neoliberal.»