22.10.22

Gramofones

 


Um novo gramofone.
O vinil não está na moda?


Daqui.
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22.10.1921 – Georges Brassens

 


Georges-Charles Brassens nasceu há 101 anos, em Saint-Gély-du-Fesc, um porto de pesca francês banhado pelo Mediterrâneo. Aos 18 foi para Paris, regressou às origens quando a capital francesa foi bombardeada em 1940, mas para lá voltou poucos meses depois para mergulhar na leitura de grandes clássicos: Baudelaire, Verlaine, Victor Hugo...

Ainda durante a guerra, foi forçado a trabalhar numa fábrica na Alemanha, mas acabou por fugir e manteve-se escondido em Paris até ao fim do conflito. No início dos anos 50 fez umas incursões sem grande sucesso em cafés parisienses, mas foi avançando e, em 1972, viu editados 11 álbuns, acompanhados de um livro com todos os seus textos e poemas.

Com várias doenças pelo meio, acabou por morrer de cancro poucos dias depois de fazer 60 anos.

Entretanto, vai resistindo através de muitas gerações de fãs incondicionais e nunca é dispensável recordá-lo.








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China: o vídeo do dia

 



Só ainda ninguém terá explicado o motivo pelo qual o ex-presidente chinês Hu Jintao foi retirado de seu lugar ao lado de Xi Jinping, durante a cerimónia de encerramento do 20.º Congresso do Partido Comunista. Mas quis-se que o mundo soubesse e visse.
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Habituemo-nos àquilo a que nunca nos deveríamos habituar

 


«A guerra da Ucrânia vai-se agravar em termos militares, em termos de destruição, em termos de mortes civis. A guerra da Ucrânia não tem solução negociada. A guerra da Ucrânia vai-se alastrar em termos geográficos e nacionais. A guerra da Ucrânia vai chegar ao limiar de um conflito nuclear, não penso que o ultrapasse. Para já.

Quem não compreende isto não se prepara como deve. Nenhuma previsão realista pode deixar de ter em conta estas circunstâncias: estamos em guerra com todas as consequências económicas, sociais, militares e políticas. Não é uma questão de a desejarmos, é um facto. As acusações de belicosidade só podem ter um destinatário, Putin, e, quando não têm e misturam tudo, são pura hipocrisia.

Acho, apesar de tudo, que vários governos democráticos, incluindo o português, já o perceberam. Podem não ter tirado ainda todas as consequências, mas sabem que vamos conhecer anos, senão décadas, marcados pela guerra da Ucrânia, seja “a quente” seja “a frio”. Deixo de parte os aliados objectivos de Putin, quer na direita, quer na esquerda que, mesmo com um palavreado sobre a “paz”, a última coisa que desejam é que a Rússia perca a guerra que provocou.

Voltemos atrás às afirmações iniciais. Algumas são evidentes pelo que não vale a pena perder muito tempo com elas, a não ser para sublinhar o seu aspecto trágico. Vai haver muitos mais mortos civis, directamente por causa dos combates, mas acima de tudo porque a Rússia prossegue uma política de destruição de infra-estruturas civis e de intimidação das populações pela violência. Não é uma política única, são duas, ambas crimes de guerra, embora com uma longa história das mesmas práticas em vários conflitos na Europa, no Próximo Oriente, em África, na Ásia. Há pouca gente com as mãos limpas, os EUA, Israel, a Síria, nos Balcãs, no Cáucaso, nas Coreias. Seja como for uma coisa não justifica a outra.

A diferença no caso da Ucrânia está na dimensão de um conflito que se estende por um vasto país, com grandes cidades e concentrações populacionais. A Rússia vai incrementar esta política de destruição e ataques a civis, em relação directa com os seus fracassos no terreno militar.

A afirmação de que esta guerra não tem solução negociada é talvez a mais controversa e a que precisa de explicação. Em bom rigor, penso que nunca a teve, mas agora é mais evidente que não tem, desde que a Rússia anexou os territórios ucranianos na federação. Este é um ponto sem retorno, porque a partir da anexação não é possível haver uma paz que não seja a rendição da Ucrânia com perda do seu território nacional. Por outro lado, Putin nunca pode recuar nessa incorporação imperial, sem admitir que perdeu a guerra e que as reivindicações territoriais russas na Ucrânia, incluindo a Crimeia, na Geórgia, na Moldova, são ocupações por uma potência estrangeira. Se a paz já era difícil, depois das anexações é impossível. Quem continua a falar de “paz”, assobiando para o lado depois dos referendos fantoches e da formalização da anexação pela Federação Russa num simulacro de legalidade, de novo quer apenas a rendição da Ucrânia.

A outra afirmação inicial que pode justificar mais explicações é a do alastramento da guerra. Embora a Bielorrússia esteja na guerra desde o início, os passos dados recentemente com a criação de contingentes comuns com a Rússia e as ameaças nas regiões fronteiriças são um passo para o retorno às formas iniciais do conflito, ameaçando Kiev e a Polónia. A Geórgia, que tem parte do seu território ocupado num esquema semelhante ao que os russos desenvolveram no Donbass, e a Moldova, que tem uma “república” cisionista do outro lado do Dniestre, criada pela presença de um exército russo quando da fragmentação da URSS, podem também assistir a anexações formais, embora já o sejam de facto.

Os países bálticos também sentem o risco, em particular a Lituânia, com o enclave da antiga Prússia Oriental, agora com capital em Kaliningrado, parte da Federação Russa sem contacto geográfico e por isso dependente de acordos de circulação. A Polónia também está na linha da frente, por todas razões logísticas, militares e políticas. Cá longe, do outro lado da Europa, podemos pensar que a guerra é distante, mas para estes países está à porta e muitas vezes já com um pé na porta.

A razão por que Putin acena com um conflito nuclear vem de ele e os militares russos saberem que uma entrada da NATO no conflito, mesmo que apenas com meios convencionais, infligiria uma pesada derrota aos russos, num período de tempo muito curto. Tradicionalmente a grande vantagem que a URSS tinha no plano militar sobre a NATO era a sua enorme capacidade numa guerra terrestre de colocar vagas sobre vagas de tanques a chegarem aos portos do Atlântico em poucos dias, cortando a possibilidade de chegada a tempo ao teatro europeu dos reforços americanos. Foi esta desvantagem que justificou a colocação de mísseis nucleares tácticos na Europa, para além de muitas outras medidas de pré-posicionamento de meios. Isto, simplificando.

Ora o que aconteceu na Ucrânia foi a verificação de que o rolo compressor dos blindados russos não funcionou e mostrou enormes debilidades, o que explica a dependência russa dos mísseis e dos drones à distância e da superioridade aérea. Mas, mesmo isso, pode estar a acabar com o novo armamento que a Ucrânia está a receber.

Por isso, as ameaças de Putin ainda são um bluff, mesmo que ele diga que não são. Também penso que há racionalidade em Putin e nos seus aliados que não os impeça de perceber o que aconteceria numa guerra nuclear. Mas a trivialização da ameaça é em si mesmo muito perigosa.

Por último, há quem diga que tem mais medo da derrota de Putin do que de uma vitória ou meia vitória russa. Estão enganados: a derrota é certamente perigosa, mas não haverá paz nem fim da guerra sem essa derrota.»

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21.10.22

Piscinas

 


Piscina pública Müllersche, Munique, 1901.
Edifício Arte Nova onde se encontra a primeira piscina interior da cidade.
Arquitecto: Carl Hocheder.

Daqui.
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Algures na Ucrânia

 


Via Isabel Sousa Lobo no Facebook.
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François Truffaut morreu num 21 de Outubro

 


François Truffaut nasceu em Paris em 1932. Morreu muito cedo, em 21 de Outubro de 1984, mas deixou-nos 26 filmes que o mantêm connosco. Com uma infância atribulada, que acaba por retratar parcialmente em Les quatre cents coups, Truffaut fundou um cineclube aos 15 anos e foi rapidamente descoberto por André Bazin que viria a ter uma influência decisiva na sua carreira, introduzindo-o junto dos grandes nomes da época e nos celebérrimos «Cahiers du Cinéma». Tornou-se um dos principais representantes da «Nouvelle Vague» francesa e, nesses tempos áureos do cinema francês, era sempre com ansiedade que se aguardava a estreia de um novo título.

Foi um dos meus cineastas de referência. Quando Paris era a nossa praia de liberdade, vi Baisers Volés três vezes seguidas, sem sair da sala.

Entre muitos inesquecíveis: Baisers Volés (1968) e Les quatre cents coups (1959):





Last but not the least, esta canção inesquecível de Jules et Jim:


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O problema está no que não diz em voz baixa

 


Expresso, 21.10.2022
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“Normalmente janto pão”

 


«“Já não sei qual é o sabor da carne. Normalmente janto pão ou, com sorte, bolachas” (Isaura, 71 anos). “Tenho um tempo inteiro e dois part-times. Só vejo os meus filhos aos domingos” (Mauro, 18 anos). “Se não fosse a menina do café que às vezes cá vem, já teria morrido de silêncio” (António, 87 anos). “Para os miúdos comerem de manhã, vamos nós trabalhar com o estômago vazio” (Maria, 35 anos). “Se não fosse pelos meus filhos, já tinha desistido há muito tempo” (Jorge, 36 anos).

Estas frases são apenas algumas de uma série de testemunhos que, pela mão de Miguel Januário, a Rede Europeia Anti Pobreza-Portugal transformou em cartazes. É um mosaico possível da realidade multifacetada da pobreza, que está por estes dias nos muros de várias cidades.

Se há pessoas e redes antipobreza, também há muitos inimigos do combate à pobreza. Um deles é o fatalismo, que encara como “natural” a existência de pobres e inevitáveis as desigualdades. Outro é o individualismo, que reduz o fenómeno a um azar subjetivo ou ao resultado da incompetência das vítimas da pobreza. Estes dois obstáculos à compreensão do problema ofuscam um facto fundamental: a pobreza é, acima de tudo, um produto de escolhas económicas, da estrutura de distribuição primária do rendimento e um efeito das políticas públicas em várias áreas, da saúde à habitação, da educação à energia. Há trajetórias individuais de exclusão? Claro. Mas é na política económica, na regulação do trabalho e na provisão dos bens essenciais que se joga o combate a esta violação dos direitos humanos.

Os dados divulgados esta semana mostram o poderoso efeito das escolhas políticas. Entre 2014 e 2019, houve uma redução da pobreza. Para isso contribuíram também, a partir de 2015, compromissos dos acordos à esquerda para o crescimento do emprego e para uma política de recuperação de rendimentos (particularmente no salário mínimo, pensões e algumas prestações sociais para velhice e infância), que permitiram reduzir a taxa de risco de pobreza. A partir de 2019, essas políticas estagnaram. A pandemia e a inflação, às quais o Governo respondeu de forma tíbia, pioraram tudo e foram um grande revelador da nossa precariedade estrutural, que não foi enfrentada.

De 2019 para 2020, o número de pessoas em risco de pobreza aumentou 12,5% (Portugal passou do 13.º para o 8.º lugar no ranking da população com mais pobres na UE a 27) e aumentou também a desigualdade na distribuição do rendimento. O segundo governo de António Costa (2019-2022) foi, no contexto europeu, dos que menos gastou com medidas de proteção na pandemia.

A paralisação do turismo conviveu com o atraso e a escassez dos apoios extraordinários para desempregados e trabalhadores precários e informais, que ficaram sem fonte de rendimento. Ao mesmo tempo, na habitação, os preços não pararam de aumentar (80% entre 2010 e 2022!), o que constitui uma verdadeira tragédia para milhares de pessoas. Não é de admirar que Portugal apareça como o segundo país da Europa com mais cidadãos a viver em alojamentos com más condições (25%).

De entre os grupos mais afetados pela pobreza, destacam-se os desempregados. Continuamos com regras nas prestações de desemprego que fazem com que cerca metade dos desempregados não tenha acesso ao subsídio - seja o regular, seja o social. Várias vezes a esquerda tentou mudar isto, pondo em cima da mesa uma transformação necessária na proteção social. Mas o PS nunca quis fazê-la e só chegou a admiti-la por conveniência retórica quando estava em minoria. E há também as famílias com filhos, designadamente as monoparentais. Entre os idosos, a pobreza reduzia-se consistentemente há alguns anos, mas essa tendência mudou e a política de pensões, a confirmar-se, poderá acentuá-la, mesmo com o Complemento Solidário para Idosos.

Em 2022, contraiu-se o rendimento real disponível para os trabalhadores e pensionistas e as desigualdades já se agravaram. Este foi um ano de perda para quase todos - embora a banca, a grande distribuição e as empresas de combustíveis nunca tenham lucrado tanto. Só com a inflação, desapareceu o valor de um salário ou de uma pensão mensal. Para o ano, com aumentos abaixo da inflação, a situação vai ser pior. É certo que o Indexante de Apoios Sociais será atualizado pela lei, ao contrário do que o Governo anunciou sobre as pensões. Mas não chega.

Em geral, a política económica, social e salarial do governo vai produzir mais pobres e mais super-ricos. Ou seja, mais desigualdade. Nenhuma medida setorial, por si só, consegue inverter esta orientação global. Crescerá assim provavelmente, também, a injustiça, o desalento, o sofrimento social e individual - todas essas dimensões de que dão conta os testemunhos com que comecei este texto.

Há quase um ano, foi apresentada uma estratégia nacional para o combate e a erradicação da pobreza. Agora, o Governo nomeou uma pessoa para coordená-la. Sandra Araújo irá diretamente da direção executiva da Rede Europeia Anti-Pobreza para a coordenação da estratégia nacional. Desejo-lhe toda a sorte e inspiração para a difícil missão. Estará corajosamente ao leme de um barco a puxar para um lado, mas num mar de escolhas políticas e económicas que puxam para o outro.»

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20.10.22

Restaurantes

 


Confeitaria Colombo, Rio de Janeiro.
Arte Nova, fundada em 1894 pelos imigrantes portugueses Joaquim Borges de Meireles e Manuel José Lebrão. Interior renovado entre 1912 e 1918 e espaço ampliado em 1922 com um segundo andar.

Daqui.
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Habitação para estudantes

 


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10 Downing Street

 


Boa oportunidade: Liz Truss já anunciou a saída.
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Este Orçamento do Estado cuida da democracia?

 


«Os termos da proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2023 estão razoavelmente definidos e têm povoado o debate. Entre eles contam-se os referenciais do cenário macroeconómico: crescimento, embora fraco, inflação de 4% em 2023 e de 2% nos anos seguintes, abrandamento das exportações e, principalmente, do consumo, uma certa dinâmica do investimento, manutenção de baixo desemprego. Assim como se contam o acordo assinado com as confederações patronais em matéria de evoluções salariais e de apoios às empresas.

Há duas decisões críticas que antecedem todas estas deliberações: a de “aplanar” o ano perturbador de 2022, não atendendo à inflação em curso, como se o mundo começasse em 1 de janeiro de 2023, e a de assumir aquelas estimativas de inflação sem se saber o que acontecerá se a realidade for diversa. Nisto assentaram os consensos em matéria de evolução salarial. A partir daqui, no exercício de equilíbrios que se compreende que qualquer OE tem de ser, há alguns dados fundamentais. É notório que, corretamente, se pretende proteger melhor os baixos rendimentos e as famílias mais vulneráveis. Isso faz-se através de medidas fiscais, de prestações sociais e dos salários para a função pública. Mas também é igualmente notório, especialmente neste último caso, que se descuidam estratos populacionais inapropriadamente designados “classes médias” e que, na verdade, são assalariados que só o baixo nível da remuneração média permite que se diferenciem positivamente.

As medidas fiscais de apoio, incluindo a diferenciação do IRC, assim como outros instrumentos de intervenção na economia (os da energia, justificados), tornam este OE assaz protetor das empresas. Estamos em plena intervenção do Estado na economia (que dirão os cultores do mercado?). Mas, ao mesmo tempo, os salários só formalmente são alvo de atenções. Eles ficam, de facto, num plano inclinado, escorregadio e incerto. Uma vez esquecido 2022 e estabelecidas as previsões bondosas de inflação, fazendo contas, a evolução salarial acordada levaria, é certo, a um aumento real dos salários em 2026. Tal objetivo ficaria, aliás, praticamente realizado com as projeções de acréscimo da produtividade. Mas, se levarmos em consideração a subida do nível de preços assumido pelo Governo para o ano em curso (7,1%), tal objetivo esfuma-se.

É por isto que convém pensar no seguinte: estamos, toda a gente o diz, num contexto de escassez de mão de obra e é muito razoável considerar-se que o ambiente inflacionário será sempre convulso. Assim sendo, em que se transformará o acordo sobre rendimentos, se, em vista disto e tudo somado, os aumentos salariais na economia tenderem afinal para mais de 5%? Transforma-se num acordo de limitação dos salários! Os patrões agradecerão, os trabalhadores não. Lembre-se que, sem qualquer concertação, a remuneração bruta média no fim do primeiro semestre deste ano já tinha aumentado 3,1%, em termos homólogos, segundo o INE. Porque não há no acordo uma cláusula de indexação à inflação efetiva, em vez de só à estimada?

É isto que justifica uma reflexão final. Há uma relação profunda entre estas deliberações e a democracia, a começar pela democracia económica. Estamos a cuidar bem dela? Quando para um lado fica o incerto e escorregadio e, para o outro, ficam as garantias, há um problema sério, que cedo ou tarde se revelará. Deixar de fora muita gente trará consequências. Depois da degradação da democracia económica, vem a degradação da democracia política. Quando, noutras eras, se chamou democráticos a certos capitalismos europeus foi porque se salvaguardavam estes equilíbrios. Tratava-se com igual cuidado o que se permitia ao capital, e que se julgava útil para o funcionamento saudável da economia, e o que se assegurava ao trabalho, integrando-o com pleno direito e com um lugar digno na lógica que se queria estabelecer. Cuidar destes equilíbrios agora, em vez de os deixar lá para 2025 ou 2026, quando for tarde e algo já tenha caído em cima das nossas cabeças, pode ser um enorme risco. E é seguramente um erro.»

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19.10.22

Casas

 


Casa sobre rodas de inspiração vitoriana. (mundo Steampunk)

Daqui.
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Mariana Mortágua

 



Hoje na AR.
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Dez anos sem Manuel António Pina

 


Pensar de pernas para o ar
é uma grande maneira de pensar
com toda a gente a pensar como toda a gente
ninguém pensava nada diferente
Que bom é pensar em outras coisas
e olhar para as coisas noutra posição
as coisas sérias que cómicas que são
com o céu para baixo e para cima o chão

Manuel António Pina, in «O país das pessoas de pernas para o ar»
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Estão a matar meninas iranianas

 


«1. Sarina, Nika e Asra tinham em comum a idade: 16 anos. E o facto de participarem nos protestos que varrem o Irão desde a morte de Mahsa Amini (por causa de um hijabe mal colocado e demasiado cabelo à vista). E todas pagaram com a vida a ousadia de sonhar com alguma liberdade. Sarina gostava de publicar vídeos em que aparecia a cantar, a dançar, a cozinhar, a maquilhar-se, a falar de amor. Saiu de casa para protestar e foi morta. Nika também saiu para desafiar os aiatolas. Circula pelas redes o vídeo em que queimou o seu hijabe em público. Pagou com a vida. Asra estava na escola quando esta foi invadida pelos carniceiros do regime. Tentaram forçá-la a entoar uma canção de louvor ao líder supremo, Ali Khamenei. Recusou, foi espancada, morreu.

2. Elnaz, 33 anos, provocou, há dias, um pequeno sobressalto, ao subir uma parede de escalada, em Seul, na Coreia do Sul. Não por ter caído. Nem por ser mulher. Ou iraniana. Mas porque competiu sem o hijabe, de cabelo negro apanhado num rabo de cavalo à vista de todos, desafiando a misoginia homicida dos fundamentalistas. Como se escreveu no jornal "El País", escalou em direção ao desconhecido. Pouco mais se soube desta mulher destemida. Apenas que regressou ao Irão, que lhe confiscaram o telemóvel e o passaporte e que está incontactável. É fácil perceber que corre perigo de vida.

3. Não chega a emoção e a solidariedade momentâneas para com as iranianas que gritam nas ruas "Mulher. Vida. Liberdade". Exige-se mais. Perante a violência do fascismo islâmico contra as suas mulheres, as suas meninas, há um direito e um dever de ingerência internacional. Há castigos diplomáticos e legais, há sanções económicas e financeiras para aplicar aos líderes e à sua máquina de violência. Se António Costa e os restantes 26 líderes europeus nada fizerem (e já lá vão muitas semanas de protestos e de mortes e ainda nada fizeram), serão cúmplices destes crimes. Para que querem o poder e a razão da democracia, se não são capazes de os usar? Ainda não perceberam que no Irão estão a matar meninas?»

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18.10.22

Malas

 


Mala de couro feita à mão.
Happy Margaret.


Daqui.
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«Soyez réalistes, demandez l'impossible»

 

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Ucrânia: a arte de comunicar

 






Ministério da Defesa da Ucrânia no Twitter.
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Repercussões internacionais das eleições brasileiras

 


«As eleições gerais brasileiras deste ano, que culminarão no próximo dia 30 com o segundo turno da disputa presidencial, opondo Bolsonaro a Lula, não dizem apenas respeito ao país, mas, em graus diferentes, a todo o mundo. Maior nação da América Latina, maior país de língua portuguesa, segundo país do mundo com população de origem negro-africana, com potencial para ser das maiores economias do mundo (durante a primeira presidência de Lula, chegou a ser a sexta) e, last but not the least, abrigando a maior parte da maior floresta do mundo, a Amazónia - todas essas condições e circunstâncias tornam inegável e indiscutível a importância do resultado das atuais eleições brasileiras para o resto do mundo.

A análise acrescenta igualmente outra circunstância: o Brasil é, neste momento, um dos cenários onde a extrema direita mundial mostra, às escâncaras e sem qualquer pudor, a sua cara e a sua força. Diga-se, entretanto, que isso não aconteceu de repente, a partir da eleição de Bolsonaro quatro anos atrás, tendo existido desde sempre na sociedade brasileira, fundado na persistente mentalidade da Casa Grande e Senzala herdada da escravidão, agravada e "refinada" pelas ondas de imigrantes europeus, muitos deles de mentalidade nazista, que chegaram ao país no século 20, tendo-se instalado sobretudo no sul.

O processo de americanização cultural da sociedade brasileira, tornado irreversível a partir da 2.ª Guerra Mundial, teve igualmente e continua a ter a sua influência nesse sentido, do acirramento e cristalização do individualismo dito "liberal" (transformado, assim, em mero egoísmo doentio) ao neoconservadorismo religioso atual, passando pela violência policial, o culto das armas e crenças como o supremacismo branco.

Assim, e por todas as razões atrás apontadas, o Brasil é, hoje, um grande laboratório das ideias e estratégias da extrema direita mundial, cujo centro são os Estados Unidos, mas cujas ramificações se estendem a vários países do mundo e em todos os continentes. A guinada institucional do Brasil para a extrema direita ficou patente, nas atuais eleições, nos resultados para o Congresso, em especial o Senado. Uma das explicações que a maioria dos analistas se apressou a dar para isso foi a influência dos evangélicos (explicação que, embora mais simples, não é certamente a mais acurada, pois nem todos os evangélicos são de extrema direita). Poucos mencionaram quer o substrato cultural do "Brasil profundo", nomeadamente o elitismo das suas classes dominantes e o racismo estrutural do país, quer a influência das conexões internacionais de Bolsonaro e os seus aliados com a extrema direita norte-americana e mundial.

Uma das raras exceções foi o pastor evangélico negro e progressista Ronilson Pacheco, que publicou a 7 de outubro deste ano um artigo no site da Intercept Brasil, com o título "Conversar com os evangélicos não surtirá efeito agora" e cuja leitura recomendo a todos. A síntese do seu artigo está resumida logo na primeira frase: "Não adiante mais discutir evangélicos nessa eleição. Não é mais sobre eles que devemos nos debruçar - é sobre a consolidação do nacionalismo cristão reacionário, que emergiu como ideologia política da extrema direita global, descolada do fascismo tradicional. É nesse movimento que o Brasil está".

Para Pacheco, a questão é, por exemplo, "como Eduardo Bolsonaro [filho do ainda presidente] costurou relações com a extrema direita dos EUA (...). Também é sobre como recuperaram o Israel reacionário, idealizado como "nação escolhida", servindo de referência para uma ideologia que justificasse o Brasil autoritário e moralista, "abençoado por Deus". É como o governo Bolsonaro se juntou ao círculo de Viktor Orban, primeiro ministro da Hungria".

Essa deriva pode começar a ser contida no próximo dia 30 de outubro, se Lula confirmar o seu favoritismo e derrotar Bolsonaro no segundo turno. Embora dividida, grande parte da sociedade brasileira parece ter entendido isso, a avaliar pelo grande arco de forças e políticos democráticos, da esquerda ao centro-direita, que apoiam Lula. Estou certo que o mundo também respirará um pouco mais aliviado, pois a luta para travar o avanço mundial da extrema direita diz respeito a todos.»

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17.10.22

Centros de mesa

 


Centro de mesa em vidro e metal dourado, cerca de 1900.
Johann Loetz Witwe.


Daqui.
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Num mundo de gente tonta

 



«É um remake que está em fase de pré-produção e confirma-se que a Disney, reagindo a críticas, tenciona substituir os "sete anões" por um grupo de "criaturas mágicas" e evitar a reprodução de estereótipos (sobre os anões) patentes na história original.»
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17.10.1968 - Jogos Olímpicos do México

 



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Enquanto discutem se a sua mulher parece séria, César mente-vos

 


«O que começa com uma meia-verdade dificilmente não acaba numa grande mentira. A atualização das pensões em 2023 começou com um truque de António Costa e acabou com uma fraude política e técnica de Ana Mendes Godinho. Quando foram apresentados os aumentos de reformas, o primeiro-ministro quis passar a ideia de que, com o adiantamento dado agora e a atualização de 4,5% (em vez dos 7% ou 8% que a lei impunha, em 2023), tudo ficaria na mesma, porque uma coisa somada à outra dava o mesmo total. Enganava as pessoas, não lhes explicando que o adiantamento não era aumento, por isso não contaria para a base a partir da qual se viriam a fazer as atualizações subsequentes. Menos cerca de 250 euros no conjunto do ano de 2024 e em cada ano seguinte, em média.

A não ser que venha a deflação, esta perda será definitiva. É indiferente se a inflação é passageira – todas são, a questão é por quanto tempo – ou atípica, a base a partir da qual se farão os aumentos futuros será definitivamente mais baixa. Nas reformas, Costa corta nos custos previsíveis quase o dobro dos 600 milhões que Passos Coelho propunha e que foi uma das principais armas do PS contra o PSD, nas eleições que levaram a “geringonça” ao poder.

O Estado Social depende de um contrato de confiança. Essa confiança foi traída quando Costa fez o oposto do que disse. Em fins de julho, já em plena crise inflacionista, afirmou que não havia a mínima dúvida que iria cumprir a fórmula prevista na lei porque “as leis existem para ser cumpridas”. Isso significava, disse, “que para o ano nós vamos ter um aumento histórico das pensões (...) por termos um aumento muito significativo da inflação”.

Quando, para além de não cumprir o contrato, o governo agita, por conveniências políticas e propagandísticas de curto-prazo, o fantasma da sua insustentabilidade alimenta a insustentabilidade política do sistema. Há debates a fazer sobre o futuro do sistema de reformas. Do meu ponto de vista, sobre as fontes de financiamento, não sobre cortes das prestações ou a entrega de parte do sistema aos voláteis e insustentáveis mercados de capitais. Mas não há confiança sem mínimos de previsibilidade. E muito menos, com a mentiras descaradas.

Há três semanas a ministra do Trabalho e Segurança Social deu a conhecer um documento em que explicava que a se a lei criada por Vieira da Silva fosse cumprida o sistema de reformas perderia treze anos de vida. Os saldos negativos começariam ainda antes de 2030 e o Fundo Estabilização da Segurança Social, que serve para lidar com este tipo de variações, extinguir-se-ia em 2040.

PS e comentadores de direita, que o atacam nos escândalos simbólicos (e alguns totalmente absurdos), mas apoiam-no em decisões económicas fundamentais do governo, agarraram-se à fraude com unhas e dentes. c

Chegado o relatório do Orçamento de Estado de 2023, feito pelos serviços dos ministérios, ficamos a perceber que, para além deste nada despiciendo pormenor, o Fundo Estabilização da Segurança Social não só não se extingue em 2040 como terá, em 2060, mais dinheiro do que agora: 34 mil milhões de euros, mais oito mil milhões do que os 26 mil milhões previstos para 2023.

Estamos a falar de cálculos a longo prazo que servem apenas para perceber o impacto das medidas presentes. Mas as diferenças entre o cenário apresentado pela ministra e os atuais são de tal forma abissais (aqui e aqui) que só podemos usar um termo para descrever o seu comportamento político e técnico: fraude. Nunca esteve em causa sustentabilidade da segurança social. Como nos salários dos funcionários públicos, o governo tenta usar a inflação para conseguir reduções dos salários e pensões reais (com a ilusão de aumentos nominais), transferindo para eles parte da redução rápida da divida pública em plena crise social.

A ministra, que para além de mentir premeditadamente aos pensionistas pôs em causa, de forma consciente, a credibilidade da segurança social, não deve apenas um pedido de desculpas. Ou apresenta (inventa?) outro argumento para não cumprir a lei, ou terá de a cumprir, incorporando a atualização num aumento definitivo. Sabe que esta atualização se baseia numa mentira consciente, mas que só se vai sentir nos bolsos dos reformados em 2024. Suficiente para deixar as culpas do empobrecimento destas pessoas para quem venha depois.

Normalmente, diria que se tinha de demitir depois desta fraude política. Mas está tudo demasiado entretido com a aparência simbólica da seriedade da “mulher de Cesar” para olhar para o que Cesar faz à vida concreta das pessoas e para a seriedade com que elas são tratadas.

Tem sorte a ministra. Primeiro, porque às oposições de direita dá jeito entreterem-se com o que é acessório e deixarem passar as mentiras que permitem que seja feito o que elas próprias bem sabem que fariam. Se a ministra, por mera conveniência pontual, ajudar a vender a tese da insustentabilidade de um sistema público de reformas que elas querem privatizar, só podem agradecer. É excelente que, por mero oportunismo, prepare o ambiente político para o que a direita quer fazer por convicção.

E a ministra tem sorte pela desconcertante inconsequência e inconsistência do escrutínio feito pela comunicação social (com exceções, como o trabalho exemplar de Elisabete Miranda, aqui no Expresso), sempre excitada com a espuma dos dias e indiferente à vida de milhões de pessoas. César pode fazer o que quiser, que os olhos estão postos na aparência de virtude da sua mulher.»

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16.10.22

Bancos

 


Interior Arte Nova do banco «Société Générale», Paris, 1906-1912.
Arquitecto (da reconstrução do interior): Jacques Hermant.

Daqui e daqui.
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16.10.1982 - 40 anos sem Adriano

 


Adriano Correia de Oliveira tinha apenas 40 anos quando morreu. Estudante de Direito em Coimbra, aderiu ao PCP na década de 60, foi activista na crise académica de 1962 e participou num elevado número de actividades culturais, sobretudo naquela cidade universitária.

«Trova do vento que passa», com poema de Manuel Alegre, gravado em 1963 no seu primeiro EP, viria a tornar-se uma espécie de hino da resistência dos estudantes à ditadura.

Alguns vídeos numa publicação de 2021 AQUI.
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Woody Allen

 

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Da crise de Marcelo saiu um coelho: Passos, Passos Coelho

 


«É fácil o trocadilho, mas depois da sua semana horribilis, o Presidente da República tinha que tirar qualquer coisa da cartola. Saiu o “coelho” que uma parte da direita idolatra, que em certos sectores do PSD é olhado de forma sebastiânica e que se afastou totalmente da política.

O centenário de Agustina Bessa-Luís foi o cenário escolhido, com o antigo chefe de Governo sentado na primeira fila. Além de se referir a Passos Coelho como “senhor primeiro-ministro”, Marcelo – logo ali – quis “lembrar quanto Portugal lhe deve no passado e quanto Portugal está seguro de lhe vir a dever, muito mais, no futuro”. Podemos escrever nos nossos diários que Marcelo Rebelo de Sousa deu o primeiro e mais importante empurrão para a candidatura de Passos Coelho a Belém em 2026.

Mas o Presidente não se ficou por esta frase singela. Cá fora, aos jornalistas, disse mais, num elogio muito eloquente ao homem que um dia o descreveu a ele, Marcelo, como “um cata-vento”. Vale a pena repetir estas palavrinhas todas porque vão servir para a pequena história da política portuguesa.

Frase 1: “Sendo tão novo, o país pode esperar, deve esperar muito ainda do seu contributo no futuro, não tenho dúvidas”; frase 2: “O país deve, num período muito difícil de crise na troika, ao primeiro-ministro Passos Coelho, uma resistência que ainda há dois dias pude ouvir ser elogiada pela boca da então chanceler Angela Merkel. Portanto, é reconhecida cá dentro e reconhecida lá fora, é um facto”.

O lançamento da candidatura presidencial de Passos Coelho – é de notar que quando foi interrogado pelos jornalistas aqui há uns tempos o ex-primeiro-ministro recusou falar do assunto, mas não terminantemente a intenção – foi assim o “facto político” com que Marcelo quis encerrar a pior semana da sua vida como Presidente da República.

Isto acontece porquê? Primeiro, Marcelo percebeu o descontentamento que existe no espaço político institucional da direita a seu respeito: Luís Montenegro não o defendeu e Miguel Pinto Luz atacou-o mesmo, depois da frase terrível sobre os 400 casos de abuso sexual de menores na Igreja. Depois, porque Marcelo percebeu muito bem o “presente envenenado” que constituíram as declarações de António Costa em sua defesa. Ficar agradecido ao primeiro-ministro depois de tanta fraternidade condenada pela direita é o pior que podia acontecer ao Presidente.

Daí as declarações ao Expresso, que, de tão inusitadas, só podem ser lidas à luz de um Presidente que sabe estar acossado e que não quer ficar devedor político da homenagem que Costa lhe prestou.

A péssima relação entre Marcelo e Passos Coelho vem de 1996 quando Passos, apoiante da primeira hora de Marcelo para a liderança do PSD, acabou por, no Congresso de Santa Maria da Feira que elegeu o novo presidente social-democrata, recusar-se a aceitar qualquer cargo na direcção.

Vinte anos depois, em 2016, Passos não queria que o PSD tivesse como candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa e fez tudo para o evitar, incluindo escrever em moções que o PSD nunca apoiaria ninguém com o perfil de Marcelo.

O nome de Marcelo não constava do papel, mas a frase da moção ao congresso de 2014 é uma delícia: o PSD não deveria apoiar um candidato “protagonista catalisador de qualquer conjunto de contrapoderes ou um cata-vento de opiniões erráticas em função da mera mediatização gerada em torno do fenómeno político”. Depois de muito pressionado, Passos acabou a aceitar apoiar a candidatura de Marcelo.

Resta saber se o lançamento da candidatura presidencial de Passos é uma opinião errática “em função da mera mediatização gerada em torno do fenómeno político”. Pode não ser.»

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