5.8.23

Vasos

 


Vaso de vidro iridescente Lötz, cerca de 1898.
Johann Lötz Witwe.


Daqui.
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Os idiotas

 

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Designadamente uma charada

 


«Esteja quem lê estas linhas em júbilo pela vinda do Papa Francisco ou a fugir do pandemónio criado por um festival desta dimensão, ou até nas duas condições em simultâneo, não lhe passará despercebido quanto os governantes adoram estes momentos. Eles suspendem o tempo, passam uma esponja sobre todas as questiúnculas e pecados, concitam o frenesim jornalístico até à exaustão, colonizam a atenção pública como se fosse o final do campeonato a durar gloriosos cinco dias. Que governo pode pedir melhor?

Acresce que havia um imbróglio na semana passada e que, assim, o seu apagamento é um dos efeitos desta anestesia geral. Nada daqueles casos de dinheiros, pagamentos a amigos ou comissões fantasma, uma coisa desta vez preocupante: o Presidente devolveu um decreto do governo sobre a carreira dos professores, que recusava aceitar as reivindicações que motivaram das maiores manifestações e greves a que o ensino assistiu nos últimos anos. A justificação de Belém era poderosa: além de “várias outras justas reclamações dos professores - como as parcialmente satisfeitas em anterior decreto-lei-, uma havia e há que era e é central no reconhecimento do seu papel cimeiro na sociedade portuguesa - a da recuperação do tempo de serviço suspenso, sacrificado pelas crises económicas vividas ao logo de muitos anos e muitos Governos”. Acrescentava ainda Marcelo que é inaceitável que professores do continente e das ilhas tenham regimes diferentes e, questão a não menosprezar, que a proposta do governo criará novas desigualdades. Há aqui um potencial de inconstitucionalidade e uma acusação de gestão danosa para a escola, tudo enroupado numa linguagem muito sintonizada com a voz dos professores. O chumbo retiniu e vieram a lume detalhes saborosos das conversas entre Marcelo e Costa no meio das suas viagens de avião, algum deles quis alimentar o suspense.

A questão em si vale uma reflexão. Qual a razão para este encarniçamento do governo contra os professores, prosseguindo aliás o que a anterior maioria absoluta do PS já desenvolvera? Qual a razão para este envergonhante mastigar de contas para impressionar o povo e o levantar contra os malvados professores, que uma vez custam 1200 milhões e outra se ficam pelos 300 milhões? Qual a razão para que o PS faça do esforço de destruição dos sindicatos de professores o alfa e o ómega da sua política para o trabalho, exibindo uma vontade de disciplinarização da função pública e do remanescente do sindicalismo nacional que pede meças a um cavaquismo atiçado? A isso o Presidente disse basta.

Disse, mas aí está o mistério, disse só durante umas horas. O governo, com a frieza florentina que o ilustra, respondeu acrescentando uma só palavra – mágica palavra – ao decreto. Onde se dizia que as suas medidas não prejudicam novas negociações, remetidas para futuras legislaturas, passou a dizer-se que tal poderia acontecer “designadamente em futuras legislaturas ”. O Presidente festejou isto como um sucesso, é “a imaginação que é preciso para dizer ao governo que há que dar lugar à esperança”. A explicação, já a compreendeu, é que se pode haver negociações – mas nada obriga a que haja, muito menos a que se chegue a uma conclusão – designadamente no futuro, é por poder haver também agora, mesmo que, mais uma vez, possa ou não assim acontecer. Há portanto uma probabilidade de haver uma negociação com uma probabilidade de se chegar a algum lado, tudo ao exclusivo sabor do governo que disse que está tudo arrumado.

O Presidente aceitou e a pergunta que então se pode fazer é esta: se foi gozado pelo governo, qual o motivo para ter recuado ou, até, se queria um compromisso destes, qual o motivo para ter chumbado inicialmente o decreto e passar por este vexame? Pois, como é cristalino, nem haverá negociação nem haverá igualização das condições dos professores do continente e ilhas. Assim, se a política é tantas vezes simulação e dissimulação, aqui tem um exemplo nítido.»

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4.8.23

Mais vasos

 


Vaso Arte Nova, cerca de 1900.
Georges de Feure.


Daqui.
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04.08.1578 – Lá se foi Alcácer-Quibir

 


Se alguém quisesse desenterrar a ideia peregrina de celebrar o «Dia da Raça», devia escolher a data de hoje. Sebastiânicos nascemos, sebastiânicos continuamos a ser – ficou no nosso ADN.

Mais a sério. Foi num 4 de Agosto, em 1578, que Portugal sofreu uma derrota em Alcácer-Quibir quando decidiu aliar-se a um sultão, Mulay Mohammed, e acabou por ser vencido por um outro, Mulei Moluco. Derrota pesada acima de tudo sobretudo porque nela se perdeu um rei sem descendentes, D. Sebastião.

Foi tal o desespero que o povo não quis acreditar na sua morte, ou ficou na expectativa que ressuscitasse, numa atitude heróica e trágica que o marcou para todo o sempre. Hoje continua, talvez inconsciente mas serenamente, à espera que regresse o tal salvador que o livrará de todos males.

Mas com música de S. Godinho, Adriano e Vitorino.






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Uma sala de espera à beira-mar plantada

 


João Fazenda

«Nove anos depois, soubemos finalmente que o caso BES vai a julgamento. Já só falta saber quando é que o julgamento começará, quando será proferida a sentença, quando será interposto o primeiro recurso e quando é que a sentença final transitará em julgado. Portugal não é bem um país, é uma sala de espera. Se eu mandasse, os quiosques só podiam vender revistas antigas. Não tem sentido estarmos numa sala de espera a ler revistas novas. Faz parte do encanto da sala de espera recordar em 2023 que, em 2009, Joaquim contratou Alice como tratadora de cavalos no 265º episódio de “Feitiço de Amor”. O facto de haver revistas novas em circulação distrai-nos do facto de estarmos numa sala de espera de 89 mil quilómetros quadrados, sem contar com as regiões autónomas. É uma excelente sala de espera, espaçosa, arejada, com uma linda vista para o mar — mas é importante não esquecer que se trata de uma sala de espera.

O funcionamento da sala de espera é ligeiramente diferente do habitual: Portugal não tem um sistema de senhas, mas talvez seja possível dizer que tem um sistema de sanhas. As pessoas começam por se irritar com a demora, mas a partir de certa altura a irritação vai diminuindo, até porque ninguém consegue aguentar uma sanha durante décadas, sobretudo por razões cardiovasculares, e depois acaba por passar. Já não sei o que fiz à sanha do processo BES, nem à do processo Marquês, nem à do processo da decisão da localização do novo aeroporto de Lisboa. Tenho uma vaga ideia de em tempos ter estado assanhado com todos esses processos, mas entretanto esqueci-me. Pode ser uma estratégia a adoptar pelas salas de espera dos consultórios médicos: um paciente entra com uma dor, aguarda na sala de espera até que a dor passe, e no fim volta para casa. É mais ou menos o que se passa, uma vez que também estamos à espera da resolução do problema dos tempos de espera. É uma mise en abyme de esperas que confere ao fenómeno o estatuto de obra artística. A UNESCO devia olhar para isto e atribuir-lhe a denominação de Património Imaterial da Humanidade. Até pela complexidade da situação: em Portugal há tempos de espera intermináveis e ao mesmo tempo é tudo feito à pressa. Não é fácil conciliar ambas as características — e, no entanto, nós conseguimos.

Entretanto, Ricardo Salgado, que tinha 70 anos quando o BES faliu, vai fazer 80 em Junho do ano que vem. Parece evidente que, de acordo com a lei natural das coisas, que é das poucas leis que ele não conseguirá deixar de cumprir, Salgado não estará cá para assistir ao final do seu julgamento. Talvez isso possa contar como uma pena, uma vez que não lhe será aplicada nenhuma outra. É uma espécie de pirraça legal: o réu morre mas o processo que o envolve segue, viçoso, cheio de vida, a fazer-lhe inveja. Vamos esperar para ver. Até porque não nos resta fazer outra coisa.»

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3.8.23

JMJ é tsto

 

«uma palavrinha muito pessoal sobre a JMJ e o (pouco) que acompanhei: compreendo as polémicas, tenho as minhas opiniões sobre elas, não interessam para o momento. O que me choca - perdoar-me-ão o cinismo - não é saber se houve milhões gastos assim ou assado, justos ou injustos ajustes diretos (sim, é uma cacafonia propositada) ou se a Jornada é essencialmente boa ou má. A minha aversão mais profunda é à idolatria irracional, à adulação mística, à taumaturgia, ver o papa, ver o papa, o papa sorriu, o papa acenou. Adular o papa e comentar cada frase do papa, como se as suas palavras (mais banais, repetidas e mornas ou mais interessantes) contivessem o segredo da juventude eterna, um mistério revelado, a chave da felicidade. Jornalistas submissos, rendidos, acríticos, babam, papagueiam elogios sonsos, não questionam, não reportam nada. Hoje o papa beijou um bebé e as televisões explodiram em êxtase com o "bebé abençoado pelo papa". Levar os filhos bebés para o papa abençoar, achando que, tocados pelo papa, abençoados pelo papa, viverão livres de perigo, não é fé, é idolatria pagã. Perdeu-se a noção do ridículo. Bergoglio é um homem, não é um deus, e impressiona-me a forma como o transformaram num bezerro de ouro.»

Paulo Pinto no Facebook.
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03.08.1968 – Com Papa ou sem ele, Pardon my French…

 

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Portugal é um país de idosos, mas não é para idosos

 


«A minha sogra, de 83 anos, não quer usar bengala, para não expor a velhice. O meu pai, de 78, com uma artrose no fémur causada pela idade avançada, também prefere cambalear. Mesmo com a pele encarquilhada, o cabelo branco ralo e pés que se arrastam, os velhos não querem parecer velhos. Tentam afastar com fingimentos e medicamentos as forças da Natureza. Para eles, a madeira de mogno com que é feita a bengala pode ser a mesma do caixão.

A velhice não começa sempre na mesma idade. Para uns é quando se reformam, para outros é quando a lei determina, para a maioria é quando sucumbem à debilidade do corpo. Também pode ser quando a curiosidade acaba. Mas invariavelmente a velhice é vista como um mal necessário. Muitas sociedades, incluindo a portuguesa, têm dificuldades em lidar com marés-cheias de gente velha. E como atravessamos uma silenciosa crise demográfica, porventura a mãe de todas as crises, o nosso problema com os velhos só tem tendência a agudizar-se.

Segundo o Eurostat, Portugal é o país que envelhece a um ritmo mais acelerado no conjunto dos 27 Estados-membros da União Europeia. Atualmente, a percentagem de população idosa (+65) representa 24%, enquanto a de jovens até aos 19 anos é de apenas 18%. Em 1960 apenas 8% dos portugueses eram idosos.

Em países de matriz confucionista, o aniversário de 60 anos, correspondendo ao fim do primeiro ciclo do zodíaco e à entrada na velhice, é motivo de celebração (hwangap, na Coreia do Sul, kanreki, no Japão, huajia, na China). A partir daí, se possível, os filhos acolhem em sua casa os pais idosos, sendo dever de um filho adulto – e um dever honroso – cuidar dos seus pais. Para não haver dúvidas, em 1996 a China estabeleceu esta obrigação em lei. No extremo oposto, em algumas comunidades nómadas ou tribais, como os Chukchis, da Sibéria, ou os índios Apsáalooke, nos EUA, os velhos eram mortos ou o seu suicídio era incentivado, para facilitar a mobilidade e otimizar a distribuição de recursos.

Na Europa e na América do Norte, vincula-se o valor de um indivíduo à sua capacidade de trabalhar. Para evitarem a segregação social, no norte da Europa os velhos recebem cuidados ao domicílio, vendem as suas casas para financiarem o final da vida em lares comunitários e cresce o cohousing (pequenas “aldeias” com habitações individuais).

Em Portugal falta o afeto dos asiáticos e a indústria de cuidados de saúde sénior do resto da Europa. Avançamos com a adoção em 2022 do Estatuto do Cuidador Informal, mas há uma escassez crónica de lares legais e abundam os clandestinos. Os cuidados em casa não são acessíveis ao bolso da maioria. Falta uma política pública para a velhice.

Os velhos portugueses que agora morrem, nascidos nos anos 30 e 40, são a última geração armazenista da nossa diversidade cultural. Como um pião, são pessoas que viveram intensamente num limitadíssimo espaço físico, criando e protegendo fazeres, comeres e dizeres locais. A geração seguinte já é estandardizada. Um transmontano de 60 anos não é significativamente diferente de um beirão. A morte dos nossos velhos, um a um, representa a morte da nossa riqueza identitária

Os velhos portugueses são um património que precisa de ser classificado com os graus interesse nacional e interesse público. Com tecnologia e internet já não são um somatório de conhecimento técnico, mas ainda são um repositório de experiência ao serviço dos seus herdeiros. A história é tão linear quanto cíclica. E são eles que sentiram o tique-taque de duas guerras mundiais, uma Guerra Fria com ameaças nucleares e o inverno do fascismo. É interessante que, nas últimas legislativas, o partido de extrema-direita português foi desproporcionalmente mais votado pelos mais jovens, aqueles que não têm a memória de viver em ditadura. A maioria dos velhos votou em partidos que apoiam a democracia. São também os velhos que estão disponíveis para costurar a estabilidade familiar, cuidando dos netos e bisnetos, viabilizando a liberdade profissional e social de pais e mães. Estudos indicam que a interação entre velhos e novos é psicologicamente benéfica para ambos. Os mais velhos são pessoas mais racionais, emocionalmente estáveis e amáveis.

Muitos filhos cuidam dos pais idosos apenas para afugentarem os remorsos punitivos que sentiriam se os abandonassem. Criados, muitas vezes, com excesso de cânone e escassez de afetos, há filhos que não se sentem confortáveis em partilhar as suas casas com os seus pais. Doerá se as “lembranças encobridoras” de Freud forem acordadas. Mas a tendência é para que, no futuro, os idosos sejam mais participativos na vida das suas famílias. Nem que seja pela força da biotecnologia.

A medicina deixará de ter como objetivo curar doenças, mas preservar a saúde de seres humanos. A geração do meu filho viverá vidas de 150 anos devido aos avanços em impressão de órgãos em 3D, diagnósticos e medicamentos personalizados, edição genética (CRISPR), reprogramação epigenética, uso de senolíticos, cirurgia robótica assistida, ou medicina regenerativa. Iremos conseguir reprogramar os mecanismos genéticos, moleculares e celulares que tornam a idade o fator de risco dominante para certas doenças e condições degenerativas.

O mês passado, o meu pai ofereceu-me um pequeno dicionário do dialeto típico da aldeia beirã onde ele nasceu. Ao folheá-lo, desconhecia a maioria das palavras, mas ouvi nitidamente a voz dos meus avós, já sepultados. Para retribuir, vou-lhe enviar um artigo científico publicado também o mês passado por uma equipa de investigadores da Harvard Medical School e do Massachusetts Institute of Technology, com um novo instrumento para reverter com sucesso (não apenas desacelerar) o envelhecimento em ratos. As células nos músculos, tecidos e órgãos simplesmente rejuvenesceram. Talvez ele já não se beneficie com a descoberta, mas é a minha forma de dizer-lhe que a idade avançada pode ser uma sentença de vida. Com ou sem bengala.»

Rodrigo Tavares  
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2.8.23

Interiores

 


Interiores Arte Nova da Basílica de S. Francisco, Cracóvia, Polónia, 1895.
Stanislaw Wyspianski.

Daqui.
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Zeca Afonso

 


Mais importante que do muito que por aí se grita, chegaria hoje aos 94.
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A agonia do Estado laico

 


«O envolvimento do Estado (Governo e autarquias) no financiamento e organização da Jornada Mundial da Juventude da Igreja católica é, provavelmente, a mais grave violação do princípio constitucional da separação do Estado e das Igrejas desde que foi institucionalizada a democracia. Por três ordens de questões.

A primeira é de moralidade social. Apesar de ninguém querer fornecer dados globais da despesa pública com este evento da Igreja católica, os números conhecidos apontam para bem mais de 80 milhões de euros. O Governo e as autarquias de Lisboa e Loures forneceram terrenos, prepararam infraestruturas, fizeram pontes, construíram palcos megalómanos, asseguraram telecomunicações, mobilizaram forças de segurança à escala nacional, arranjaram transportes, cortaram trânsitos e acessos para que a Igreja católica pudesse levar a cabo a sua majestática mobilização religiosa. De tal forma que soa estranha ao discurso desclericalizante e de justiça social do Papa Francisco.

Num país com um dos mais altos índices de desigualdade e dos mais baixos salários da União Europeia e com gravíssimos problemas de acesso à habitação ou de sustentação de serviços públicos essenciais, investir somas do erário público deste montante como privilégio cerimonial de uma crença religiosa é social e politicamente imoral. Poupem-nos às justificações deliquescentes dos idílicos jardins floridos que vão ficar, ou às mais cínicas piscando o olho às expectantes negociatas do turismo e do alojamento local. Precisamente o que se reclamaria de gasto público tamanho é que fosse aplicado no interesse geral, ou seja, que ajudasse a resolver algumas das mais urgentes prioridades que enfrenta o país. Por isso, obrigado, Bordalo II.

A segunda é uma questão de princípio e de legalidade. Ao apadrinhar financeira e politicamente a mobilização religiosa da Igreja católica, ao atribuir-lhe um tratamento que configura um enorme privilégio sustentado pelos dinheiros públicos, o Governo e as autarquias que se lhe associaram violam abertamente a natureza laica do Estado, constitucionalmente estabelecida. E com isso atentam contra o princípio democrático e também constitucional da liberdade religiosa e de crença, pois a primeira condição para ela existir é a neutralidade religiosa do Estado. Neste melancólico entardecer das democracias, parece que em Portugal se vai regressando, sem protesto de quase ninguém, aos tempos do neorregalismo funcional em matéria de relações do Estado com a Igreja católica que caracterizaram a ditadura estado-novista.

A terceira é a questão da atitude simbólica de quem nos representa. Quando o Presidente da República faz questão de misturar sistematicamente no exercício das suas funções o seu papel de chefe do Estado com o de exuberante coadjutor da hierarquia católica; quando o primeiro-ministro socialista entende, enquanto chefe do Governo e sem vislumbre de estados de alma, participar nas missas papais; quando o presidente da Câmara de Lisboa, fingindo trazer a cruz da procissão às costas, se desdobra em exteriorizações patéticas de uma devoção toda ela bafejada pelo espírito mais prosaico de caça ao voto; quando os partidos parlamentares (com as honrosas exceções do Bloco e do Livre) se acotovelam para ficarem na fila da frente das cerimónias eclesiais; perante um tão beatífico cenário de unção religiosa por parte dos que deviam ser os primeiros a respeitar e a fazer respeitar a neutralidade religiosa das instituições públicas, eu pergunto se é possível deixar de pensar que estamos, despreocupadamente, a assistir à agonia do Estado laico enquanto pilar fundamental do regime democrático.

No que me toca, sou um cidadão republicano, ateu e socialista, e consequentemente convicto defensor da liberdade de crenças e descrenças. Por isso mesmo, não concebo que os impostos pagos por todos sirvam para financiar as espaventosas cerimónias religiosas só de alguns. Mesmo que estes se considerem religião maioritária. E precisamente por isso mesmo.»

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1.8.23

Jarros

 


Jarro de vidro esmaltado e lata, com decoração íris, 1895.
Daum Nancy.


Daqui.
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O tão velho Portugal desta jornada

 

«Dois séculos após a revolução liberal que deu o pontapé de saída na laicização da sociedade portuguesa, a amálgama entre identidade nacional e católica continua a ser descarada e reverencialmente promovida por um Estado que nunca operou a vital separação face à religião "oficial".»

Continuar a ler o texto de Fernanda Câncio AQUI.
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Sempre nesta data

 


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SNS – Finalmente ideias?

 


«Após semanas a discutir o sexo dos anjos da TAP e o espectáculo do Ministério Público, não havia propostas concretas da oposição de direita. Até que o presidente do PSD, Luís Montenegro, explicou a sua proposta para a Saúde. Fê-lo, aliás, em tom leve e ao ar livre. Vale a pena examiná-la. Voltou à proposta de o Serviço Nacional de Saúde (SNS) comprar serviços aos privados, para resolver o problema das listas de espera. Mas culminou propondo que seria interessante que todos os portugueses tivessem ADSE. Não se pode imaginar nada de menos rigoroso ou menos sério.

Óscar Gaspar, presidente da Associação dos Hospitais Privados, publicou a 5 de Julho um artigo de opinião no jornal PÚBLICO, bem articulado, onde comemora a lei Beveridge de 1948 de Inglaterra (National Health Service, baseado no Orçamento Geral do Estado), e explicou a grande diferença face ao sistema bismarquiano, na base do seguro obrigatório, concluindo pela necessidade de uma terceira via. Não concordo, mas dá para conversar. Ora são estes dois sistemas que Luís Montenegro calma e sorridentemente mistura. Estão a faltar-lhe assessores. Se a proposta é pagar aos privados através do Orçamento da Saúde (O.S.), baseia-se nas Leis de Bases da Saúde, tanto a de 1993 como a de 2019, recorrendo aos privados de forma complementar ou suplementar. Se todos passássemos a ter ADSE, esta deixava de ser para os funcionários do Estado, determinava-se a sua extinção com uma mudança radical da lei e o estabelecimento de um seguro obrigatório público, descontado nos salários, que é a base bismarquiana. Proposta mais confusa é impossível.

Também recentemente, o professor Fragata, numa entrevista de vida ao PÚBLICO, tal como outras personalidades, vieram de novo falar das questões “ideológicas” e do facto de o novo ministro não estar a resolver os problemas. Ora o novo ministro dispôs-se a dar a cara, mas está manietado por dois lados: a existência de um CEO no SNS e de uma estrutura paralisada por um novo estatuto, e um ministro das Finanças que, tal como os anteriores, autoriza ou não cada contrato. Na discussão com os sindicatos, o ministro é apenas um intermediário. Conseguiu abrir cerca de 300 vagas para médicos de Medicina Geral e Familiar, felizmente, mas cada ano haverá novo desafio. Não depende dele.

Para começo de análise, deveremos falar exactamente sobre o financiamento da Saúde. Os números que se conhecem são dos mais baixos em relação ao PIB, comparando com o resto da União Europeia. Mas não são executados. Uma parte do orçamento fica na gaveta. As dívidas acumulam-se e é difícil discutir com os fornecedores os preços de adjudicação. Os números são públicos, mas não é discutido o motivo desta ocultação.

Por outro lado, já é praticada largamente a compra de serviços a privados: análises, endoscopias, radiologia, hemodiálises, fisioterapia, que somam anualmente muitas centenas de milhares de euros. São suplementares, por não haver resposta no SNS. A linha vermelha que nunca se transpôs foi a compra pelo SNS de consultas e de internamentos às grandes instituições privadas. Nesse caso, é a ADSE que os sustenta e em muito menor parte os seguros privados. Houvesse dinheiro desbloqueado no O.S. e bem serviria para repor as 3350 camas hospitalares públicas que foram reduzidas desde 2001, à espera de melhores dias para a construção dos hospitais prometidos. Temos 3,5 camas/mil habitantes e, por exemplo, a Alemanha tem o dobro. Serviria também para reter com salários decentes os jovens médicos que, em 2019, já eram 13.000 com menos de 65 anos fora do SNS.

Para além destas nossas ineficiências ou paralisações, temos um problema a encarar de frente. Com o aumento da esperança de vida, somos o quarto país da Europa, em 38, a ter mais população com idade superior a 65 anos (22,4%). É a partir dessa idade que há mais doenças crónicas e situações agudas. É a nossa população, temos de cuidar dela.

É certo que as consequências do neoliberalismo percorrem a Europa, o que tem sido bem documentado: a Suécia bateu o recorde de mortes por covid; o ministro da Saúde da Alemanha, Karl Lanterbach, fala em “gafanhotos” para designar os novos consultórios privados de luxo que estão a abrir; na França aumentou a mortalidade infantil, sobretudo neonatal.

Resta-nos a “ideologia”. Os que dela falam referem-se evidentemente a ideologia de esquerda. Mas confundem ideologia com doutrina. As doutrinas, sobretudo religiosas, têm dogmas e a eles têm de obedecer. Quanto à ideologia de esquerda, ela caracteriza-se exactamente por olhar para a realidade, ser dinâmica e não ser essencialista. Senhores ideólogos de direita, que ao menos arranjem um conjunto de ideias, com coerência e demonstração. Para podermos conversar.»

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31.7.23

Mais um candeeiro

 


Candeeiro Libélula, de vidro, sobreposto e gravado com ácido, com suporte em latão. Cameo, Primeiro 1/4 do século XX.
Émile Gallé.

Daqui.
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Tomara

 

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31.07.2017 – O dia em que Jeanne Moreau deixou o «tourbillon de la vie»

 


Com uma carreira longuíssima de actriz, realizadora e cantora, iniciada em 1950, e uma filmografia impressionante com cerca de 130 nomes listados, trabalhou com um rol notável de realizadores, entre os quais Luis Buñuel, Wim Wenders, Michelangelo Antonioni, Orson Welles, François Truffaut, Louis Malle, etc., etc.

Já agora, de sublinhar a sua participação em Gebo et l’Ombre, de Manoel de Oliveira (2012), onde faz o papel de Candidinha.



Momentos inesquecíveis? Entre outros, evidentemente, Le Tourbillon, em Jules et Jim de François Truffaut:



Aqui, num belíssimo duo com Maria Betânia:



Com Vanessa Parados, no Festival de Cannes de 1995:



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A fé é de cada um, o escrutínio é de todos

 


«O ano, 2019. O local, Panamá. Decorria a Jornada Mundial da Juventude. Marcelo Rebelo de Sousa, esfusiante, não cabia em si de alegre: “Conseguimos! Conseguimos, Portugal, Lisboa. Esperávamos, desejávamos, conseguimos. Vitória.” Descontando o natural exagero na reação do católico Marcelo, a visita do Papa Francisco a Portugal na próxima semana para, entre quarta-feira e domingo, participar na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, é um daqueles eventos cujo impacto e significado ultrapassam em muito os domínios reservados da fé, que a cada um dizem respeito. No final do ano, quando olharmos para 2023, este terá sido seguramente um dos acontecimentos, se não o acontecimento, mais importante no nosso país.

Portugal é ainda o quinto país da União Europeia com maior percentagem de população cristã, o que naturalmente inclui católicos, ortodoxos e protestantes, embora os primeiros sejam largamente maioritários no nosso país. Dessa forma, não só não choca como é perfeitamente natural que, sem prejuízo do respeito integral pela separação entre Estado e confissões religiosas, aliás consagrada constitucionalmente, a vinda do Papa Francisco a Portugal na próxima semana para participar na Jornada Mundial da Juventude tenha a maior relevância e mereça a maior das atenções e interesse.

Para mais, a vinda do líder católico ao nosso país surge num momento de enorme desconforto, entre crentes e não crentes, com a atuação da Igreja. Depois do enorme abalo que significou a denúncia e investigação dos abusos sexuais continuados, e escondidos, no seio da instituição ao longo de anos a fio, esta visita a Portugal do Papa e as palavras e ações que possa ter neste caso merecem um olhar muito atento — como na altura se disse, o destapar do horror dos abusos e encobrimentos exige ao mesmo tempo uma atuação firme e determinada para que nada fique como dantes na instituição.

Dito isto, uma coisa é o reconhecimento da importância de um evento que reúne no nosso país mais de um milhão de pessoas durante um conjunto de dias, vindos dos mais diversos pontos do globo, para um encontro religioso, festivo e celebrativo, outra é considerarmos que as entidades públicas, do Estado central à menor das autarquias devem nesta altura criar uma espécie de ‘bolha’ em que as regras que vigoram para o resto do tempo nesta altura não contam para nada. Em particular, as regras que dizem respeito à boa utilização dos recursos, escassos, públicos de que dispomos.

Sem radicalismos, jacobinismos ou confessionalismos, sem posições barricadas, com bom senso e moderação, mas sempre com determinação, a realização de visitas ou de grandes eventos populares não eliminam a necessidade de escrutínio jornalístico sobre o que se passa.

É por isso da maior relevância que um jornal como o Expresso, que procura informar o melhor possível e dentro da maior independência os seus leitores, olhe nesta última edição do semanário antes da chegada do Papa a Portugal na quarta-feira para os dinheiros públicos que estão a ser gastos, e de que forma, na preparação do evento (e ainda há faturas das quais desconhecemos o valor final, olhe-se por exemplo para as polémicas à volta dos palcos nos últimos meses).

Todos, a começar por Francisco e a terminar no peregrino que se deslocou do mais longínquo ponto do planeta até Lisboa, são muito bem vindos. Mas isto não retira o direito de questionar o porquê da multiplicação como cogumelos dos processos de contratação direta pelo Estado, para os mais variados serviços relacionados com a Jornada, sem o recurso a um concurso público. Ou seja, a regra de contratação pública em Portugal é o concurso público. Mas quando as coisas se tornam sérias, fechamos os olhos e a regra já não vale. O que se passou no Estado central e nas principais autarquias envolvidas na Jornada, em particular nos últimos meses, é mesmo um autêntico despautério. Multiplicam-se os contratos sem concurso, três quartos do total foram já em 2023 e metade só no último mês.

Alguém entende isto?»

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30.7.23

Jarras

 


Colecção de jarras de vidro vitrificado. Cerca de 1910.
Daum Frees.


Daqui.
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Por favor!

 



Preciso de comunicar com um milhão de seres que vagueiam agora nesse tal de Portugal!
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A plebe tem que ser mais pobre, os bancos merecem os lucros

 


«Dois deputados europeus do PS, Margarida Marques e Pedro Marques, fizeram uma excursão a Frankfurt para sensibilizar o Banco Central Europeu para travar a subida de juros. Não conseguiram nada nem era esperado que tivessem qualquer sucesso: a independência do Banco Central Europeu que nos governa está nos tratados. O BCE decide exclusivamente o que quer e não responde perante ninguém. Foi assim que os países europeus acharam que devia ser – a Alemanha só aceitaria o euro se estivesse desenhado à imagem e semelhança do marco alemão e o BCE fosse o Bundesbank.

Na imprensa internacional, lê-se que os chamados “falcões” que ali aprenderam tudo têm hoje mais influência em Frankfurt do que tinham quando Mario Draghi conseguiu a salvação do euro – quando pronunciou a famosa frase de que faria tudo para que a zona euro não implodisse, “whatever it takes”.

Christine Lagarde, a presidente, e o conselho de governadores – incluindo o “nosso” Mário Centeno – insistem que a inflação só baixa se os salários das pessoas baixarem (não os deles, evidentemente) e conseguirem comprar cada vez menos coisas.

António Costa não concorda com esta política do BCE e diz que o diagnóstico do banco sobre as medidas para conter a inflação está errado. O Presidente da República também critica Christine Lagarde. Os partidos da oposição da esquerda à direita protestam, mas as coisas são como são. O BCE manda, a economia alemã está em recessão, mas a vida continua.

Enquanto o BCE põe em prática uma política com o objectivo de diminuir os salários – e já tinha alertado para que os subsídios do Governo à população deveriam parar, o que não foi aceite em Portugal –, uma janela de oportunidade abriu-se aos bancos portugueses com esta política, que pagam mal os depósitos e afogam os contribuintes em taxas e taxinhas.

Os grandes bancos portugueses (Caixa Geral de Depósitos, Millenium BCP, Santander Portugal, Novo Banco e BPI) tiveram um lucro com os juros de quase 1800 milhões de euros no primeiro semestre. Como escreve Pedro Ferreira Esteves, “embora os resultados líquidos tenham sido influenciados por diversos factores em cada banco (venda de activos, redução adicional de imparidades, actividade internacional), a explicar a amplitude destes lucros está, de forma inequívoca e admitida por todos os responsáveis dos bancos, esta conjugação especial de escaladas das taxas de juros de referência e de uma almofada alargada de facilidades disponibilizada pela autoridade monetária”.

Em português popular, isto traduz-se por “quem se lixa é o mexilhão”. A margem dos governos nacionais para contrariarem esta política (e todas as outras da União Europeia) é limitada, para não dizer nula. É verdade que António Costa não acabou com os apoios sociais como desejava Lagarde e Fernando Medina anunciou algumas medidas “protectoras” recentemente, e também o badalado “fim das cativações”, que pode não ser exactamente um milagre de Fátima.

Já se escreveram milhões de caracteres sobre como muitas políticas europeias estão a ter como resultado o crescimento da extrema-direita. A recente queda do Vox em Espanha, que viu diminuir para metade a sua bancada de deputados, não deveria ser um factor de um enorme entusiasmo à escala europeia. O ovo da serpente está bastante espalhado pelo continente para o resultado da extrema-direita espanhola servir para grandes animações e transposições.

Christine Lagarde deixou no ar que esta subida de juros recorde do BCE poderia ser a última. A frase foi “talvez”. Ora, o “talvez” implica o sim e o não ao mesmo tempo. A paragem na subida dos juros não está excluída, mas também não está incluída.

Já estivemos à beira da implosão da zona euro e, na época, o BCE percebeu o risco que corria. Que não entenda agora que uma população empobrecida e com baixos salários (em sociedades profundamente desiguais como a portuguesa) vai engrossar o descontentamento que um dia irá rebentar com tudo, é uma tragédia.»

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