23.12.23

Portas vermelhas

 


Portas vermelhas Arte Nova - para o Pai Natal entrar (ou sair...).

Daqui.
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Bom Natal para todos nós

 


Daqui.
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Natal em Belém

 


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2023, o ano do fim de um ciclo

 



«Quem olhar para Portugal, apenas no plano da política orçamental e financeira do Estado, até fica com a impressão de que 2023 foi um ano que correu bem. As contas públicas fecham com um excedente orçamental de 0,8%, estando previsto que será de 0,2% em 2024. Depois do choque de uma crise inflacionária, a inflação baixou para 1,6% em Novembro, prevendo-se que seja, em média, de 2,9% para o ano. A dívida pública baixou para 103% do PIB este ano, devendo ficar em 98,9% do PIB em 2024. Isto quando o desemprego se mantém na casa dos 6% e o emprego cresceu a níveis inéditos. Isto, friso, depois de uma crise inflacionária nascida com a pandemia de covid-19 e muitíssimo agravada com a guerra provocada pela invasão da Ucrânia pela Rússia.

Mas, de repente, tudo parece estar diferente na política portuguesa. O ano político, que começou assente na estabilidade de uma maioria absoluta, termina com a certeza de que haverá eleições legislativas antecipadas a 10 de Março, assim como de que, mesmo que o PS venha a ganhar nas urnas, o seu líder é agora Pedro Nuno Santos e não António Costa, após o primeiro-ministro em gestão se ter demitido, em 7 de Novembro, depois de ter sido divulgado, em comunicado do gabinete da Procuradoria-Geral da República, que estava a ser investigado no âmbito da Operação Influencer.

É certo que a demissão de António Costa não aconteceu apenas por causa do comunicado da Procuradoria-Geral da República. A investigação tem como arguido o seu ex-chefe de gabinete Vítor Escária e foram feitas buscas, na residência oficial, à sala do chefe de gabinete, cargo que está no centro do poder governamental do primeiro-ministro. Para já nem falar dos 78 mil euros em notas que foram apreendidas pelo Ministério Público na sala do chefe de gabinete, em envelopes dentro de livros e caixas de vinho.

Foi um final de mandato de primeiro-ministro inédito, depois de António Costa estar já no seu terceiro Governo e ao fim de oito anos. Mas se olharmos para o filme do ano político, salta aos olhos o clima de instabilidade governativa que caracterizou o ano, preenchido com demissões de membros do Governo e eivado de polémicas. Para se ser exacto, aliás, os terramotos governativos começaram a 10 de Novembro de 2022, com a demissão do secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves, acusado de crime de prevaricação, enquanto presidente da Câmara de Caminha.

A 24 de Dezembro, o Correio da Manhã noticia que a então secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, recebera uma indemnização de meio milhão de euros, quando deixou de ser administradora da TAP, o que levou a que o ministro das Finanças, Fernando Medina, a demitisse a 27 de Dezembro. A polémica que este caso provocou foi desgastando o Governo e provocou que, a 29 de Dezembro, o ministro das Infra-Estruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, se demitesse, assumindo a responsabilidade política, mas reconhecendo, cerca de três semanas depois, em comunicado, que autorizou, por Whatsapp, o pagamento da indemnização. Já a 5 de Janeiro a secretária de Estado da Agricultura, Carla Alves, demite-se, depois de o Correio da Manhã noticiar que tinhas as contas bancárias arrestadas, no âmbito de um processo judicial contra o seu marido, Américo Pereira, antigo presidente da Câmara de Vinhais.

A turbulência não acabou por aqui. Viveu-se uma guerra entre Presidente da República e o primeiro-ministro que tiveram um confronto violento em torno do caso João Galamba. Na sequência do caso da indemnização a Alexandra Reis e no âmbito das inquirições parlamentares sobre a gestão da TAP, no final de Abril, o ministro das Infra-Estruturas, João Galamba, demite um adjunto, Frederico Pinheiro. Uma demissão que envolveu agressões no ministério e os serviços secretos a irem a casa deste recuperar um computador. Perante o inusitado da situação, o Presidente da República pede a demissão de João Galamba, mas o primeiro-ministro não o demite, afrontando a vontade de Marcelo Rebelo de Sousa.

Em planos como o da gestão orçamental, António Costa foi um bom primeiro-ministro. Veja-se o elogio que lhe fez o Presidente da República, na quinta-feira, na cerimónia de cumprimentos de Natal, em Belém. Aguentou o país e apostou no Estado social e na protecção das empresas dos trabalhadores e dos cidadãos mais vulneráveis, durante a pandemia de covid-19 e desde o início da guerra na Ucrânia. Assim como teve um papel activo na União Europeia, tendo estado no centro da construção de políticas comuns.

Mas António Costa é o último primeiro-ministro e líder político português de uma estirpe, de uma tradição política que vêm da fundação da democracia portuguesa. Foi formado numa forma de fazer política que já não existe. Cresceu numa época em que não havia — nem na lei, nem na opinião pública — a exigência de transparência e o escrutínio de hoje – no bom e no mau sentido.

António Costa pertence à geração de 80, quer dizer, das pessoas que estavam na casa dos 20 anos, nessa década. Dos que já eram adolescentes em 25 de Abril de 1974. Os actuais líderes dos partidos parlamentares são das gerações de 90 e de 2000. Rui Rocha tem 53 anos, Rui Tavares tem 51 anos, Luís Montenegro tem 50 anos, Paulo Raimundo tem 47 anos, Pedro Nuno Santos tem 46 anos, Isabel de Sousa Real tem 43 anos, André Ventura tem 40 anos e Mariana Mortágua tem 37 anos. Pertencem, cresceram e amadureceram já num mundo novo. Têm outra mundividência e outra formação cultural.

Em 2023, consumou-se uma etapa da política portuguesa. O novo ciclo, que se iniciará em 10 de Março, é mais do que uma mudança de governo e de primeiro-ministro. Até porque estas novas gerações que vão liderar a política do país, cresceram, formaram-se e amadureceram num mundo em que a política é feita de forma mais epidérmica, mais de reacção, menos de reflexão, mais de negação e de rejeição, menos de diálogo e aproximação de propostas políticas para o país solidamente negociadas. Um mundo político e comunicacional dominado pela força das redes sociais, onde campeia a mentira, a histeria, o insulto, onde dominam a superficialidade, os radicalismos, os sectarismos, a agressividade, a demagogia e os populismos.

É certo que a transição geracional não põe em causa a existência de valores éticos, nem a existência de filiações ideológicas. E é também verdade que muito de negativo, do que existia na forma de fazer política tradicional, permanece hoje em dia. Incluindo os jogos de aparelhos partidários – veja-se o que a IL fez com Carla Castro. Os partidos têm os mesmos vícios ou piores. Do mesmo modo, é seguro que neste novo ciclo não haverá mais democracia. Mas muito vai ter de mudar para que a política reganhe a confiança das pessoas. É, de facto, preciso uma nova forma de fazer política, com outra exigência, outra transparência, outro rigor ético – o que não significa justicialismo, nem moralismo, bem pelo contrário. Cabe à nova geração de dirigentes políticos começar essa tarefa.»

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22.12.23

Prédios

 


Prédio Arte Nova, Rua Cândido dos Reis, Porto, cerca de 1908.

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Cálculos eleitorais

 

«A coligação pode gerar uma situação curiosa. Suponha que a coligação PSD/CDS consegue ter mais três deputados do que o PS e que o CDS fica com quatro lugares para si. Isso quer dizer que a maior bancada do Parlamento é a do Partido Socialista, ficando o Partido Social-Democrata em segundo. (…)

Numa situação dessas, quem deve o Presidente da República convidar para formar Governo? (…) Muitos dirão que o que interessa é a soma dos deputados da coligação, mas a Lei Eleitoral é explícita a dizer que as coligações são desfeitas logo que se conheçam os resultados eleitorais. Portanto, para todos os efeitos, as bancadas parlamentares são distintas. Não é nada óbvio quem é que deverá ser convidado em primeiro lugar para formar Governo, se o líder do PS ou o do PSD. E não há jurisprudência, porque esta situação nunca aconteceu.»

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Alegrem-se!

 

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O país dos brandos radicalismos

 


«Assim dá gosto. Um cidadão lê os jornais e verifica que os dirigentes dos principais partidos se comportam com um sentido de responsabilidade irrepreensível. No congresso do PSD, Luís Montenegro disse “agora o PS é radicalismo”. E acrescentou, referindo-se a Pedro Nuno Santos: “Deus nos livre de ter um radical à frente do Governo.” Mas Pedro Nuno Santos, mais ou menos na mesma altura, disse que, caso o PSD vença as eleições, “liderará um Governo mais radical do que o de Pedro Passos Coelho, porque estará dependente de um projecto bem radical” da Iniciativa Liberal. Quem costuma aborrecer-se com o chamado centrão fica a saber que ambos os partidos do centro são, afinal, radicais, e talvez se anime. Mas não é esse o motivo da minha satisfação.

Eu estou contente porque, em 2015, antes das eleições legislativas, António Costa anunciou que o PS era o único partido que podia pôr fim ao radicalismo da coligação PàF, composta por dois partidos “disfarçados de avozinha” mas que eram, na verdade, “dois lobos maus”. Mas, ao mesmo tempo, Passos Coelho acusava Costa de ser menos prudente do que os “socialistas europeus mais radicais”, Paulo Portas via “muitos eleitores socialistas (…) perplexos e incomodados com tanto radicalismo e com tanto esquerdismo” do PS, e José Pedro Aguiar Branco dizia de António Costa que “a aparente simpatia” tinha dado “lugar a um inaceitável radicalismo”, e concluía que “ao pé dele, Jerónimo Sousa parece um moderado”. Ou seja, passaram oito anos e decorre ainda o renhido campeonato de moderação que consiste em detectar e denunciar indícios de radicalismo no adversário. Quem tenha tido um acidente em 2015 e só acorde agora fica com a sensação de que não perdeu nada, o que é óptimo. Não é preciso estar a explicar à pessoa que, tal como o país, perdeu oito anos de vida mas continua na mesma.

É excelente para todos. Estamos como em 2015. Sentimo-nos jovens e a viver num país cujo problema central é descobrir se os partidos que disputam o eleitorado de centro são radicais. Proponho que, tendo em conta que a campanha eleitoral é a mesma, o material de propaganda também seja. Os mesmos estribilhos, os mesmos cartazes, os mesmos tempos de antena. Heráclito disse que ninguém poderia banhar-se duas vezes no mesmo rio porque o Tejo, o Mondego e o Douro não passam em Éfeso. Se Heráclito tivesse vindo a Portugal saberia que é possível uma pessoa banhar-se exactamente na mesma água ao longo de oito anos seguidos. E é fácil perceber que é exactamente a mesma água porque é sempre turva.»

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21.12.23

Outro vaso

 


Vaso esmaltado, cerca de 1890.
Émile Gallé.


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Natal 2023

 

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Carlos do Carmo

 


Seriam 84, hoje.


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A extrema-direita à conquista da Europa

 


«O centrista Emmanuel Macron deu as mãos à extrema-direita e aprovou uma legislação para a imigração que está a causar revolta no seu partido e fissuras no seu Governo. Com a nova legislação, os imigrantes vão perder apoios sociais e os seus filhos terão mais dificuldades de obter a nacionalidade francesa. A nova lei, que suscita dúvidas constitucionais, é “um escudo” de que a França precisa para não perder “o controlo”, garante Macron. Marine Le Pen diz que a aprovação do diploma é uma “vitória ideológica” da sua União Nacional e tem razão.

Aos poucos, por toda a Europa, os sinais são de cedência à agenda anti-imigração. Nos Países Baixos, a vitória nas legislativas foi para Geert Wilders. Na Alemanha, o extremista AfD é o segundo partido mais popular e pode vir a ganhar três eleições regionais no próximo ano. Na Áustria, o Partido da Liberdade (FPÖ), que ainda há quatro anos se viu envolvido em vários escândalos de subornos, já tem 30% das intenções de voto. Em Itália, governa Giorgia Meloni com uma agenda marcada pela imigração e no Reino Unido um Partido Conservador que se vai consumindo nas medidas que tenta tomar para impedir os imigrantes de atravessarem o Canal da Mancha.

As eleições europeias, marcadas para Junho de 2024, poderão mostrar uma Europa com uma profunda inclinação para a extrema-direita, com consequências geopolíticas avassaladoras, e não será a legislação, aprovada agora pelo Parlamento Europeu, que virá a tempo de conter o que muitos acham que é mais uma crise de percepção do que realmente uma crise de imigração.

A imigração tem vindo a subir, mas entram hoje na Europa muito menos refugiados do que no pico de 2015 e 2016 e há países como a Itália (ou Portugal) onde o Inverno demográfico faz com que a mão-de-obra imigrante seja uma necessidade imperiosa. Há questões de integração e problemas com as longas esperas para obter a legalização, mas são acima de tudo políticos e alguma imprensa que conseguem dar ao problema uma dimensão bem maior do que ele tem, tarefa facilitada sempre que a economia apresenta problemas. Uma situação que se poderá agravar no próximo ano e ainda abrir mais terreno para os senhores das respostas simples.

Macron, como já o fizeram outros partidos centristas ou de direita, tenta mostrar-se forte com a imigração, numa tentativa de estancar o crescimento das forças de extrema-direita [adoptando a sua política]. Foi o que também tentou fazer, no ano passado, o partido de Mark Rutte nos Países Baixos. O seu governo caiu e o partido que liderava desceu para o terceiro lugar. A história tem tudo para se poder repetir.»

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20.12.23

Pátios

 


Pátio de Kossuth Lajos , Budapeste, 1894.
Arquitecto: János Wagner.


Daqui.
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Há meio século – «… más alto que Carrero Blanco!»

 


«Arriba Franco, más alto que Carrero Blanco!» – gritava-se em Espanha em 20.12 1973.

Vídeos explicativos AQUI.
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Não é fácil

 


Talvez criando um partido para concorrer às Legislativas…
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A aparição de Passos e o horror ao vazio

 


«Pedro Passos Coelho reapareceu, como testemunha num julgamento, decretando aos jornalistas que António Costa era o único primeiro-ministro que se tinha sentido “na necessidade de apresentar a demissão por indecente e má figura”. Como todos sabemos, Costa demitiu-se por causa de um processo judicial. Má figura, para não dizer indecente, é transformar os efeitos imediatos dessa investigação numa sentença política. Passos pode fazer um balanço negativo do governo que cumpriu a estratégia orçamental (e eu lamento-o) que ele disse que nunca resultaria e que se resultasse ele teria de defender o voto no PS, BE e PCP. Não pode dizer que foi por isso que Costa se demitiu, porque é falso.

A relevância da aparição de Passos é o efeito que tem na direita. André Ventura veio imediatamente colar-se ao seu criador (Passos escolheu-o para candidato do PSD à Câmara de Loures, tendo reafirmado o apoio quando houve sinais evidentes de discurso racista, que não o incomodaram na altura e parecem continuar a não incomodar hoje). Fê-lo porque percebe que continua a existir um vazio político no PSD, que ele aproveita. Não é a única razão para o reforço da extrema-direita, mas ajuda a explicar a rapidez do crescimento.

É também esse vazio que explica o retorno constante de fantasmas do passado, sejam desejados, como Cavaco Silva, sejam indesejados, como Passos. Fantasmas que ofuscam um líder que todos se preparavam para defenestrar depois das Europeias. Nem faltará quem já ache que Rui Rio seria melhor opção.

Pedro Nuno Santos polariza opiniões e muita gente que não gostará dele. Mas provoca sentimentos. Já com Luís Montenegro, mesmo tentando, com a ajuda de alguma imprensa, fabricar ondas de entusiasmo depois de congressos, continua a ser difícil imaginá-lo primeiro-ministro. Oito anos depois dos socialistas chegarem ao governo, ele aparecia a perder, nas sondagens, tanto contra Pedro Nuno Santos como contra José Luís Carneiro. E não lhe falta a ajuda mediática que faltou a Rui Rio.

A cada tema que o pode comprometer, Montenegro foge. Preso aos interesses privados da ANA, foge do tema do aeroporto, criando um grupo de estudo (composto por políticos, grande parte deles com responsabilidades na negociação do contrato de concessão que bloqueia as escolhas aeroportuárias do país nas próximas quatro décadas) para estudar o estudo do grupo de estudo que tinha exigido para poder tomar uma decisão que adia para depois das eleições. Faz o mesmo com o TGV ou a regionalização. Mesmo as promessas feitas sobre pensões no tão elogiado discurso que fez no congresso-comício do PSD, sobrou quase nada, ao fim de uma semana.

Os fantasmas do passado regressam porque a política tem horror ao vazio e é isso mesmo que Montenegro parece ser: o vazio. Pode-se gostar mais ou menos da nova geração de dirigentes socialistas a que um dia alguém comparou aos “jovens turcos”. Mas a verdade é que o PSD foi incapaz de criar, enquanto esses turcos envelheciam, uma única nova figura capaz de os enfrentar. Não há um nome marcante que não seja do passado. Uns vindos do passado distante de que os jovens eleitores já nem se lembram, outros de um passado que espreita o momento para regressar, carregado de ressentimento.

José Sócrates respondeu a Passos Coelho. É o interlocutor indicado para este confronto entre fantasmas que não nos lembram nada de bom. O drama do PSD não é ter figuras referenciais que muita gente de esquerda naturalmente não gosta. Isso é natural. É só ter isso. Pelo menos os ódios da direita dirigem-se aos líderes socialistas do presente. É mais saudável.»

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19.12.23

Taças

 


Taça Libélula em porcelana dura e esmalte translúcidos, Museu Nacional Adrien-Dubouché, Limoges, 1902-1906.
Fábrica Pouyat (Limoges).

Daqui.
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19.12.1915 – Édith Piaf

 


Piaf colou-se para sempre à pele da minha geração, como tantos outros cantores sobretudo franceses, quando este país era quase tão sombrio como os vestidos pretos que ela nunca largou.

Mas acrescento uma nota pessoal: acabada de regressar de Portugal, onde tinha vivido a primeira parte da crise académica de 1962, eu vi-a e ouvi-a, em Lovaina, no mesmo dia (vim a sabê-lo algumas horas mais tarde) em que muitas centenas de estudantes foram presos na Cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Ficou para sempre associada ao Dia do Estudante.








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Para quem estiver interessado

 

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Três dias sem migrantes em Portugal

 


«João acordou e foi tomar o pequeno-almoço na pastelaria de costume. Apenas uma pessoa a atender, um caos. Decidiu não esperar. A rua estava estranha. Algo se passava. Foi olhar as notícias: todos os migrantes de fora da Europa decidiram iniciar uma greve de três dias em protesto contra a crescente xenofobia em Portugal. Na TV, uma brasileira resumiu: "Estamos fartos de ouvir "volta p"ra tua terra", que não temos sangue puro, que estamos aqui para destruir o país. Não vamos voltar p"ra nossa terra, só vamos mostrar o que aconteceria se todos nós, que tanto trabalhamos, fossemos embora como alguns portugueses querem."

João pensou que estavam a exagerar, mas OK. Não se vai passar nada, Portugal não sobrevive apenas com o trabalho dos migrantes. Ao chegar ao trabalho, o assunto não era outro e faltavam muitos colegas. Da casa de banho, ouvia-se um alvoroço. Estava suja, sem papel higiénico e cheirava mal. O escritório também estava sujo e os caixotes de lixo cheios. Claro, as senhoras da limpeza, todas migrantes, iam às 5.00 da madrugada limpar tudo. Tentaram reclamar com os chefes, mas eles eram brasileiros!

As notícias repercutiam a paralisação. Registavam-se constrangimentos por todo lado. Faltavam motoristas, chamar um TVDE era quase impossível, os táxis disputados. Nas creches e escolas não havia funcionárias para cozinhar. O problema de limpeza era geral nas empresas. Alguns funcionários foram procurar esfregonas para dar um "jeitinho", mesmo contrariados, achavam que não era serviço pra europeus. No aeroporto, o caos era muito maior que o habitual, sem controladores de tráfego, responsáveis pelas bagagens e outros profissionais. Os turistas não percebiam nada do que se passava.

Os restaurantes anunciavam que não abririam para o almoço por não terem pessoas na cozinha, na sala e mesmo estafetas para entregas. João levava sempre o próprio almoço. Não precisava de restaurantes, nem de migrantes, pensou. Ao sair, foi a pé até o supermercado. As prateleiras estavam vazias com a falta dos repositores. As frutas e os legumes estavam escassos, assim como a carnes e o peixe. Comprou o que conseguiu e foi enfrentar a fila, onde os clientes disputavam as caixas automáticas e as poucas abertas operadas por portugueses.

João pensou que no dia seguinte já teriam acabado com o disparate da greve, ainda mais sem motivo, que malta folgada! Mas, pela manhã, as ruas estavam sujas e o lixo doméstico acumulava-se. Desocupados, pensou novamente. Chegou ao trabalho atrasado. Os chefes continuavam em greve, não havia como fazer teletrabalho sem autorização. A casa de banho estava ainda mais insalubre. Tudo estava pior e nas notícias não se falava noutra coisa. Aulas foram canceladas, os restaurantes continuavam fechados ou a "meio-gás". Os turistas tiveram as reservas canceladas nos hotéis e não tinham onde comer. Faziam posts nas redes sociais, indignados.

A situação nos mercados e frutarias era terrível: simplesmente não havia frutas, legumes ou hortaliças, pois são os migrantes que os colhem. As obras estavam paradas, as encomendas não chegavam. Em muitas empresas o serviço também ficou prejudicado, com panes em sistemas informáticos sem técnicos para resolver. Milhares de clientes com problemas de internet e TV Cabo não tinham assistência. Nem sequer atendiam as ligações, pois a maior parte dos operadores estava em greve. As consequências viraram notícias além-fronteiras. O mundo olhava perplexo para Portugal. O país estava caótico e sujo. Não havia cafés, bares, hotéis, atendimento ao público, construtores, motoristas, cozinheiros, trabalhadores nos aeroportos, estafetas, apanhadores de frutas ou profissionais no comércio em geral.

Surgiram apelos para que os migrantes voltassem aos postos de trabalho. O Governo começou a preocupar-se com o impacto na Segurança Social. Diante do caos, decidiram cancelar o último dia de greve. O recado estava dado: nem foram precisos três dias para perceber que, sem os milhares de migrantes, a vida em Portugal seria mais complicada. João refletiu e finalmente concordou. No dia seguinte, o chefe brasileiro estava de volta e perguntou aos colegas: "Então, ainda querem que voltemos p"ra nossa terra?"»

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18.12.23

Pratos

 


Prato Arte Nova, em esmalte, um excelente exemplo de arte norueguesa. 1904.1905.
Desenhado por Gustav Gaudernack.
Fabricado por David-Andersen.

Daqui e não só.
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A primeira machadada no império – Índia, 1961

 


Foi na manhã de 17 de Dezembro de 1961 que tiveram início as operações militares que levaram à ocupação da cidade de Pangim, capital de Goa, na noite do dia seguinte. O «império português» levou então uma grande machadada com a anexação de parte do seu território pela União Indiana. Lembro-me bem da consternação quase generalizada que os acontecimentos provocaram no país, mesmo em certos meios da oposição. Houve algum tempo depois uma peregrinação a pé a Fátima (julgo que para que os céus nos devolvessem a «católica» Goa).

Os factos são conhecidos, mas vale a pena recordar o célebre discurso que Salazar fez na Assembleia Nacional, em 3 de Janeiro de 1962 (*). É um longo elogio (de 24 páginas A5) ao «pequeno país» que manteve o seu território «com sacrifícios ingentes», ignorados e combatidos por quase todos e, antes de mais, pela ONU, desde sempre objecto de um ódio muito especial.

Ficam algumas passagens a começar pela primeira frase do texto: «Não costumo escrever para a História e sinto ter de fazê-lo hoje, mas a Nação tem pleno direito de saber como e porque se encontra despojada do estado Português da Índia». Mais: «Não sei se seremos o primeiro país a abandonar as Nações Unidas, mas estaremos certamente entre os primeiros. E entretanto recusar-lhes-emos a colaboração que não seja do nosso interesse directo.» Há que perguntar se vamos no bom caminho «quando se confiam os destinos da comunidade internacional a maiorias que definem a política que os outros têm de pagar e de sofrer».

Amplamente conhecida é a frase que encerra o discurso: «Toda a Nação sente na sua carne e no seu espírito a tragédia que se tem vivido, e vivê-la no seu seio é ainda uma consolação, embora pequena, para quem desejara morrer com ela.»

(*) Estava afónico «com as emoções das últimas semanas» e quem o leu, de facto, foi Mário de Figueiredo.
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Que Pedro Nuno Santos não se plastifique



 

«Quando o discurso de Pedro Nuno Santos levantou, em 2018, o congresso do PS na Batalha, obrigando António Costa a dizer que não tinha metido os papeis para reforma, estava ali o “carisma”, que se tem referido como se fosse coisa superficial na política. “Carisma” foi a palavra que Max Weber recuperou da religião para falar de um determinado tipo de autoridade política, para além da tradição e da legal e burocrática. No caso de Pedro Nuno Santos, esse “carisma” tem correspondido, para alem das suas características pessoais, à necessidade de preencher com um discurso aspiracional o vazio de propósito que parece ter tomado conta de grande parte do centro-esquerda europeu. A sua desconcertante autoconfiança, a sua impulsividade, o seu atrevimento, ajudaram a construir esse discurso de forma mobilizadora.

É verdade que Pedro Nuno Santos de 2023, depois da TAP, já não pode ser o Pedro Nuno Santos de 2018, quando era o pivot da experiência feliz da “geringonça”. Este não era o momento em que ele queria ir a votos. Precisava de tempo para que episódios graves, mas pouco relevante na substância do que se conseguiu na TAP, ficassem em perspetiva. Só que, em política, raramente se escolhem os momentos em que se avança. Mário Soares tornou-se Presidente quando as sondagens previam uma brutal derrota eleitoral. Foi a votos porque era aquele momento em que tinha de ir. António Costa foi obreiro de um entendimento à esquerda porque as circunstâncias assim o exigiam, não porque fosse o seu plano. São as circunstâncias que ditam as lideranças, raramente é o inverso.

Um jornalista assinalou, no sábado, que, cumprido o sonho de sempre de chegar a líder do PS, Pedro Nuno Santos estaria satisfeito, mas não eufórico. Na realidade, acho que até tem estado acabrunhado. Se foi condicionado pela campanha de José Luís Carneiro, para mostrar-se permanentemente mais doce e moderado, não é provável que não continue a sê-lo pelos clamores da bolha mediática e política que tenta construir as narrativas simples que moldem os confrontos políticos. E isso pode ser um problema, até porque Pedro Nuno Santos não é grande ator, como a maioria dos políticos.

Claro que Pedro Nuno Santos tem de segurar, em circunstâncias muito difíceis, uma parte considerável do eleitorado que votou no PS em 2022 (e não, como Carneiro parecia julgar, o eleitorado do PSD). E boa parte desse eleitorado não quer aventuras – nem queria eleições agora – e essa é umas das razões para não confiar num tão frágil Luís Montenegro atrelado à IL e muito provavelmente dependente do Chega. A questão não é, como se quer fazer crer, o radicalismo. Nem Pedro Nuno Santos alguma vez foi um radical, nem grande parte dos eleitores que tem de segurar quer saber disso. Gostou da “geringonça”, essa promessa de “gonçalvismo”, como dizia e diz a direita. Não gostou porque fosse radical, mas porque devolveu rendimentos e garantiu alguma estabilidade.

Segurar boa parte desse eleitorado (algum está irremediavelmente perdido) não será conseguido por um Pedro Nuno Santos plastificado. Porque se ele desistir de tudo o que lhe parece arriscado na sua imagem perde o que o realmente lhe dá perfil de líder. Como todas as pessoas, os políticos têm defeitos que estão ligados às suas virtudes. A capacidade de decidir, errando ou acertando, de que se gaba, está ligada à sua impetuosidade. Se esconder uma coisa esconde a outra. Da mesma forma que não pode dizer, em discursos, que é uma pessoa com convicções se depois fizer toda uma campanha com medo de as expressar.

O problema de Pedro Nuno Santos não é nem o radicalismo, nem sequer alguma impulsividade. São os episódios que, recentemente, conseguiram ofuscar, aos olhos dos portugueses, o sucesso que acabou por ser o resgate da TAP – um sucesso difícil de explicar às pessoas, porque não há história contrafactual das perdas brutais para a nossa economia de uma TAP falida e porque o preço da inércia de um político é sempre menor do que preço de agir.

Não se apagam os episódios infelizes que marcam a carreira de qualquer político que não opte pela paralisia segura, para nunca ser notícia. Apenas se valorizam as qualidades associadas a esses episódios. Neste momento, Pedro Nuno Santos deveria estar a explicar que a sua capacidade de decidir é o exato oposto do que Luís Montenegro tem para oferecer, prepando-se para bloquear o novo aeroporto depois do PSD ter entregue o comando da política aeroportuária nacional, nos próximos 40 anos, à Vinci e a Arnaut. Ou seja, que tomar decisões implica cometer erros, comprar inimigos e não ser consensual. De resto, Pedro Nuno Santos tem de recuperar a imagem da competência que tinha quando era o mais poderoso secretário de Estado da “geringonça”, em que dominava quase todos os dossiers, que tinham de passar por negociações difíceis. Moderado ou radical, impetuoso ou sereno, tem de se mostrar preparado, nesta campanha.

E precisa de escolher dois ou três eixos programáticos para uma campanha que não se pode resumir à defesa do legado de Costa, em que o próprio Pedro Nuno Santos só acredita parcialmente. No seu caso, costumava ser a defesa de uma política de industrialização do país (aquela que o Ministério Público pretende criminalizar). Ora aí está uma coisa em que se pode distinguir, nem pela direita nem pela esquerda, de António Costa e Luís Montenegro. Na realidade, de todas as governações que apostaram num país com uma cultura fortemente rentista, que adora monopólios e rendas públicas. Uma cultura que Montenegro e Arnaut representam na perfeição.

Pedro Nuno Santos lidera o Partido Socialista e o PS é um partido de regime e de continuidade, não de rutura. Assim como nunca será qualquer líder seu. Outros cumprem essa função. Mas o pior que Pedro Nuno Santos pode fazer é plastificar-se. Fica sem nada: carisma, discurso, mobilização. Tudo o que fez dele um extraordinário caso de resistência política. Para o mal e para o bem, Pedro Nuno Santos não é António Costa, hábil gestor do “vai-se andando”. Não vai correr bem se se quiser parecer com ele.»

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Bloco – Tempo de antena

 


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17.12.23

Um vaso verde

 


Vaso de vidro verde, decorado com um ramo de ouro em cascata e ligado a um pé de bronze dourado.
Fabricado por Moser.

Daqui.
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Leitura para uma tarde de domingo

 

Este texto de Nuno Ramos de Almeida:

Assassinato de um alegado jogador de padel
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Pedro Nuno Santos: não é virar a página, é colar as páginas

 


«Sérgio Sousa Pinto, um dos notáveis socialistas que estiveram contra a "geringonça" de 2015, terminou o seu texto no Expresso em que manifestou o seu apoio a Pedro Nuno Santos com a seguinte frase: “Por mim, estou com o virar de página.”

Sim, as directas do PS confirmaram o “virar de página” — na verdade, a não-eleição de Pedro Nuno Santos é que seria uma surpresa. O caminho estava feito e as acusações de “radicalismo” e “da não preservação da autonomia estratégica do PS” não colaram porque não eram credíveis: as pessoas que as exprimiram estiveram todas com a "geringonça" de 2015. Sérgio Sousa Pinto, como é mauzinho, chamou “bonzos” a quem, depois de ter ascendido a altos cargos com a "geringonça", criou toda uma nova teoria política para se opor a Pedro Nuno.

Mas vam’laver, como diria António Costa: a tarefa de “challenger” de José Luís Carneiro era praticamente impossível. Pedro Nuno Santos preparou meticulosamente o caminho para aqui chegar. Carneiro, como o próprio já disse, começou a pensar no assunto depois da polémica da indemnização da antiga administradora da TAP Alexandra Reis. Não há milagres e mesmo assim José Luís Carneiro registou um resultado bom para as circunstâncias. Mais ninguém quis avançar contra Pedro Nuno, entre os outros potenciais futuros sucessores, porque toda a gente sabia que “les jeux sont faites”.

E agora o que se segue? O “virar de página” com que sonha Sérgio Sousa Pinto, que, como o outro crítico da "gerigonça" Francisco Assis, foi afastado de cargos de topo no PS durante todo o tempo do costismo?

Não vai ser fácil o “virar de página”. Primeiro, o PS é o PS. Costa virou a página em relação a Seguro, criando uma narrativa de esquerda e alianças à esquerda, mas os tempos eram outros. E, muito importante, foi uma campanha de oposição a Seguro e o secretário-geral derrotado saiu de cena.

Se a moção de Pedro Nuno Santos revela diferenças com o Governo em funções, nomeadamente o uso dos excedentes para investir nos serviços públicos, em vez de os colocar no “cofre Medina”, e a devolução do tempo congelado a todas as carreiras da função pública, desta vez não é possível mudar páginas de repente.

Como é que se “vira a página” com um primeiro-ministro demissionário que tem também o seu destino político ligado ao resultado do PS a 10 de Março? Não se vira. Nem provavelmente é útil virar. Se, por um lado, António Costa pode impedir a afirmação política do novo secretário-geral, a verdade é que, a três meses das eleições, Costa – apesar dos 78 mil euros encontrados na sala do seu chefe de gabinete – é um activo eleitoral. E mais: quem vai a votos não é só o novo líder do PS, mas também António Costa e o seu legado.

Essa ideia de que Costa continua a ser um activo (da mesma forma que José Sócrates não o era) está ainda presente no eleitorado do PS. Se não achassem isso, Pedro Nuno Santos e José Luís Carneiro não se preocupariam em afirmar-se “herdeiros”.

Não haverá um virar de página óbvio nem imediato. Para o bem ou para o mal, são os oito anos do Governo PS que vão a votos. Uma vitória de Pedro Nuno Santos é uma vitória de António Costa. Uma derrota de Pedro Nuno Santos é uma derrota de António Costa. Não há como fugir ao “colar das páginas”.

O normal seria que o PS perdesse as próximas legislativas, tendo em conta a teoria dos ciclos políticas e da alternância. Mas, apesar de Luís Montenegro ter dado a ilusão de um novo impulso, com um discurso de encerramento do Congresso a falar para o eleitorado que o PSD perdeu (e até a elogiar a subida do salário mínimo, coisa notável, para falar ao eleitorado do centro), desapareceu depois.

Montenegro não aproveitou o embalo do Congresso para marcar a agenda, que foi nas últimas semanas exclusivamente dominada pelo PS, com uma mobilização grande dos militantes.

Ou seja, o PS pode ganhar as próximas legislativas — e a questão de o PSD só poder fazer alianças à direita se incluir o Chega, como mostram as sondagens, vai ter impacto.

Pedro Nuno Santos e António Costa nunca foram amigos íntimos. Tratam-se por “você”, o que é raro no PS, mas que o fosso geracional justifica. Nos últimos tempos, passaram mesmo a ser “inimigos íntimos”, uma categoria pouco estudada, mas que existe na política e na sociedade em geral. A desconfiança mútua marcou os últimos anos. Agora, inesperadamente, o sucesso ou insucesso de um é o sucesso ou insucesso do outro.»

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