«Garanto que não sou negacionista. Até já levei a terceira dose da vacina, no pavilhão da FIL, em Lisboa, a 27 de Dezembro, depois de me ter inscrito no dia em que abriu o auto-agendamento para maiores de 60 anos. Mas pergunto: será que a covid-19 existe mesmo? Ou será que as bandeiras partidárias são um escudo contra o SARS-CoV-2? As perguntas são disparatadas, mas elas surgiram-me depois de ver como a maioria dos partidos parlamentares se têm comportado nesta primeira semana de campanha eleitoral para as legislativas de 30 de Janeiro.
Quem vê nas televisões as acções de campanha diárias é levado a pensar que não existe uma pandemia altamente contagiosa – nem que o número de mortos e de novos contaminados com covid-19 são verdadeiros. Afinal, na terça-feira morreram 33 pessoas e houve 52.549 novos casos, na quarta-feira morreram 34 pessoas e houve 56.426 novos casos e na quinta-feira morreram 49 pessoas e houve 58.530 novos casos. E na quarta-feira havia 2004 pessoas hospitalizadas, um número que não era atingido desde Fevereiro.
Apesar da gravidade da situação, os líderes partidários decidiram repetir os modelos tradicionais de campanha, passeando-se em arruadas com pessoas aos molhos, umas em cima das outras e muitas vezes sem máscara. Dão beijos, abraços e apertos de mão, como se nada se passasse. Participam em sessões e comícios em salas em que é visível que as regras de distanciamento não são cumpridas.
O campeão da insensatez tem sido de facto o presidente do PSD, Rui Rio, com arruadas sucessivas (Barcelos, Lisboa, Viseu, Bragança, Vila Real). Deu-se mesmo ao disparate de dizer na terça-feira que, se apanhasse covid-19, logo via quem o substituía na campanha, pois o PSD também tem Joões – será que quer mesmo ser primeiro-ministro?
A piadola de Rui Rio fazia alusão ao facto de o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, ter tido de abandonar a campanha da CDU para ser operado de urgência à carótida interna esquerda, a 13 de Janeiro, sendo substituído na liderança da campanha pelo membro da comissão política e líder parlamentar, João Oliveira, e pelo membro da comissão política e vereador sem pelouro na Câmara de Lisboa, João Ferreira. Entretanto, a 18 de Janeiro, João Ferreira abandonou a campanha para ficar confinado depois de ter um teste positivo à covid-19.
Até o BE e o PS que tinham garantido não fazer arruadas não resistiram. Na quarta-feira, Catarina Martins e Mariana Mortágua mostraram-se aos jornalistas, em pleno Chiado, em Lisboa, cercadas de apoiantes, todos sem distanciamento. No mesmo dia, António Costa não resistiu a participar numa arruada em Faro com que os socialistas do Algarve o receberam. O mesmo aconteceu na quinta-feira em Évora, em total contradição com o que foi oficialmente dito ao PÚBLICO, pelo director de campanha, Duarte Cordeiro, antes de a campanha começar.
Já os líderes do CDS e do Chega e da IL passeiam-se pelo país quase sempre sem máscara e só não têm grandes arruadas porque o seu poder de atracção de apoiantes parece não funcionar assim tão bem como no PSD e no PS.
A imagem de desrespeito pelos cidadãos por parte dos dirigentes dos partidos com assento parlamentar que esta campanha está a demonstrar foi esta semana agravada com o final da novela sobre o voto dos confinados. A ministra da Administração Interna, Francisca Van Dunem, anunciou uma recomendação do Governo para que as pessoas que estão em confinamento, por estarem com covid-19 ou terem tido contactos de risco, votem no dia 30 de Janeiro entre as 18h e as 19h.
Esta novela é também ela representativa de como os partidos com assento parlamentar vivem numa bolha e estão longe de demonstrar que, de facto, estão empenhados em representar e defender o interesse dos cidadãos e o bem comum. Ao fim de quase dois anos de pandemia, os partidos parlamentares não acharam por bem adaptar as leis eleitorais à nova realidade sanitária. Aliás, ainda nem sequer se entenderam para produzir uma lei de emergência sanitária.
No discurso de vitória, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, prometeu empenhar-se em alterações à lei eleitoral que facilitem o exercício do voto, nomeando a necessidade de alargar o voto por correspondência, que concretamente defendeu para os emigrantes na eleição do Presidente da República.
A Assembleia da República, por mais de uma vez, debateu ajustamentos das leis eleitorais à pandemia, mas nunca assumiu frontalmente adaptações das regras eleitorais ao que é esta ruptura que está a trazer mudanças profundas à vida das sociedades e, logo, à democracia.
É triste que os partidos não cuidem de salvaguardar a sobrevivência da democracia. Nem se empenhem na defesa do bem comum. Depois da imagem de irresponsabilidade que os dirigentes partidários estão a transmitir aos cidadãos, não venham fazer discursos cínicos, se a abstenção subir exponencialmente a 30 de Janeiro.»
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